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A fundamentalidade da dignidade da pessoa humana e da saúde

4 AS PRINCIPAIS OBJEÇÕES AO ACESSO AOS MEDICAMENTOS

5.2 A dignidade humana e o mínimo vital ante as supostas objeções ao

5.2.1 A fundamentalidade da dignidade da pessoa humana e da saúde

Em que pese a importância das classificações doutrinárias e do esforço em identificar o nível de eficácia e de exigibilidade das normas constitucionais, o certo é que o direito à saúde seja visto como regra ou como princípio, é direito fundamental diretamente relacionado com o direito à vida, que integra o núcleo mínimo do princípio da dignidade humana. Nesse sentido, o direito à saúde exige grau máximo de concretude, impondo deveres ao Poder Público em realizá-lo e, diante de omissão, confere aos seus beneficiários a possibilidade de exigir o cumprimento das obrigações

344 AC 1177761, 3ª Turma, Relator JUIZ CARLOS MUTA, DJU 23/05/2007, sem grifos no original. No mesmo

sentido, é possível indicar outras decisões de outros Tribunais, como: TRF4, AC 200171050025414, 3ª Turma, Relatora Silvia Marina Gonçalves Goraieb, DJU 26/11/2003; TJ/RS, Agravo de Instrumento n. 70025467838, Terceira Câmara Cível, Relator Nelson Antônio Monteiro Pacheco, julgado em 23/07/2008; TJ/RS, Agravo de Instrumento n 70025437104, Terceira Câmara Cível, Relator Nelson Antônio Monteiro Pacheco, julgado em 23/07/2008; TJ/SP, Apelação Com Revisão 7253235900, 12ª Câmara de Direito Público, Relator Prado Pereira, data do julgamento: 25/06/2008; TJ/SP, Apelação Com Revisão 7099435000, 12ª Câmara de Direito Público, Relator: Prado Pereira, data do julgamento: 25/06/2008.

a ele inerentes, como o fornecimento de medicamentos, inclusive por meio do Poder Judiciário.

Ana Paula Barcellos lembra que a identificação da “tonalidade” da eficácia jurídica atribuída a determinado dispositivo não deve ser feita de modo aleatório. Devem seguir a fundamentalidade social e jurídica do dispositivo em questão. Não por outra razão, os dispositivos que protegem os bens de maior valor para a sociedade, em cada época e lugar, vêm acompanhados de maior grau de eficácia jurídica e dos mecanismos mais consistentes para exigir-lhes o cumprimento, seja para afastar as iniciativas que contradizem seu comando, sejam para exigir aquelas que lhe dêem concretude. Quanto mais fundamental a matéria tratada pelo dispositivo for para a sociedade, quanto maior o seu grau de importância ou relevância social, mais consistente deverá ser sua eficácia jurídica. Este registro, como salienta a autora, é da maior importância para o intérprete do direito, visto que, por vezes, a eficácia positiva ou integral de um dispositivo é atribuída por meio de sua decisão.345

Por todo o exposto em item dedicado exclusivamente à dignidade da pessoa humana, não restam dúvidas acerca de sua fundamentalidade para a sociedade brasileira nos dias de hoje. A fundamentalidade social da dignidade humana decorre do senso comum brasileiro (e também internacional), que não admite situações de desrespeito ou esvaziamento das condições mínimas necessárias a uma existência digna. Por isso, a rejeição a situações degradantes como a falta de alimentação e de assistência à saúde.

Nesse sentido, embora não se vá aprofundar aqui, cumpre consignar que a fundamentalidade social está relacionada ao consenso social, tendo relevância significativa para o Direito, especialmente para o intérprete e para o administrador em sua atividade discricionária.346 Para refletir o consenso social no que se refere ao direito

345 A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, cit., p. 135 e ss.

346 Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “Assim, nada importará a concepção particular, pessoalíssima, que

alguma autoridade tenha (real ou pretensamente), sobre o que é ‘segurança pública’, ‘moralidade pública’, ‘urgência’, ‘interesse público relevante’, ‘tranqüilidade pública’, ou de outros conceitos fluidos do gênero. A

à saúde (e à dignidade humana), apesar da obviedade, cumpre destacar que entre os temas que mais preocupam os brasileiros está a saúde, talvez justamente em virtude de sua essencialidade para o exercício de quaisquer outros direitos e realização de quaisquer atividades, de sua ligação direta com a dignidade humana e com a manutenção da vida. Em pesquisa realizada pelo Datafolha Instituto de Pesquisa, em novembro de 2007, 21% dos entrevistados mencionaram a saúde como sua principal preocupação, ao lado da violência (21%) e do desemprego (18%). Outra pesquisa realizada pelo Ibope – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Pesquisa – em dezembro de 2006 mostrou que a população considerava a saúde como a ação prioritária a ser implementada pelo governo federal no período 2007-2010.347

No que se refere à fundamentalidade jurídica, tanto a dignidade humana como o direito à saúde estão reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro e também na esfera do direito internacional. Como já dito, a Constituição Federal de 1988 privilegiou a dignidade humana, erigindo-a a valor central do sistema jurídico. Na esfera internacional, tratados, pactos e convenções têm reiteradamente reconhecido a importância de se garantir a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, embora os meios para provê-los ainda não sejam consenso.348 Agregue-se aqui a

fundamentalidade material e formal do direito à saúde, especificamente referida por Ingo Sarlet e já citada anteriormente. Daí, a vinculação inequívoca do intérprete em conferir à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, a maior eficácia possível e eficácia integral quanto ao seu núcleo essencial, onde está a saúde.

intelecção bizarra, original ou as peculiares idiossincrasias que informem a intelecção desatada que algum agente público porventura possa fazer dos conceitos vagos mencionados na lei, evidentemente, não pode ter o condão de sobrepor-se ao sentido que razoavelmente se lhes reconhece dado meio social.” (Discricionariedade e controle

jurisdicional, cit., p. 30).

347 Os dados foram retirados dos seguintes sítios eletrônicos, consultados em junho de 2008:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0412200711.htm

http://www.ibope.com.br/Eleicoes/2006/download/opp494_cni_dez06.pdf

348 A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, cit., p. 155 e ss. Nas palavras de Ana Paula: “Ou seja: o

direito internacional encontra-se comprometido com a dignidade humana e com a proteção dos direitos humanos. Não é apenas a Constituição brasileira de 1988 que consagra a dignidade humana como fim central do sistema jurídico e do Estado, para o qual todos os demais elementos devem convergir. Não se trata de uma idiossincrasia nacional. Também o direito internacional compartilha dessa mesma opção substantiva. Ou seja: é possível afirmar que a fundamentalidade jurídica de que se cuida aqui pode ser encontrada não apenas no sistema brasileiro, mas também no sistema internacional” (A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, cit., p. 164).

Baseando-se nas lições de Len Doyal e Ian Gough,349 Paulo Gilberto Leivas, engrossando o entendimento de Sarlet, acima exposto, assevera que a saúde e a autonomia constituem as necessidades humanas mais elementares e formam as pré- condições básicas para evitar prejuízos graves. Para Leivas, “a saúde física, antes que a mera sobrevivência, constitui uma necessidade humana básica. Para desenvolver-se bem na vida cotidiana – com independência de sua atividade ou contexto cultural –, os seres humanos precisam ir muito mais além da mera sobrevivência. Eles devem gozar de um mínimo de boa saúde”.350

Por tudo o quanto exposto ao longo deste trabalho, não parece ser possível, considerando os apontamentos feitos acima, pensar em divisão do direito à saúde e nesse sentido dos diferentes tipos de medicamentos de modo que apenas seja permitido o pedido judicial do básico ou do integrante das relações públicas de medicamentos. Em sua tomada de decisão, o magistrado deverá ter em mente o valor absoluto do ser humano, as disposições constitucionais e legais acerca da saúde e do fornecimento de medicamentos e o caráter organizatório e acessório das listas públicas de medicamentos. Ao mesmo tempo deverá sopesar alguns aspectos relevantes como: (i) a gravidade do estado de saúde do indivíduo; (ii) o grau das limitações ou restrições ao gozo de uma existência digna, o que significa ir além da garantia apenas da sobrevida; (iii) a comprovação da eficácia do medicamento em questão; e (iv) a existência ou não de alternativa equivalente nas listas de medicamentos do Sistema Único de Saúde.

Alguns dos aspectos sugeridos como relevantes para a decisão judicial, muitos deles também referidos por alguns dos autores citados ao longo do trabalho, ainda são sobremaneira genéricos e de difícil avaliação. Outros dependerão de esclarecimentos do médico que prescreveu o medicamento e da crença em seu entendimento, ou mesmo de auxílio de peritos ou de técnicos administrativos, o que

349 Cf. Teoría de las Necesidades Humanas. Traduzido por José Antonio Moyano y Alejandro Colas. Barcelona:

Içaria, 1994.

nem sempre extinguirá eventuais dúvidas acerca da existência ou não de alternativas já incorporadas na rede pública de saúde. Sendo assim, os aspectos a serem considerados pelo magistrado devem ser revistos sempre, especialmente diante de novas alternativas e da evolução do debate público já iniciado.

Como mais uma contribuição nesse sentido, cabe lembrar por fim que a razoabilidade costuma trazer a orientação necessária ao intérprete. Sendo assim, a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade. E para ilustrar o razoável em matéria de saúde, têm-se mais uma vez as palavras de Ingo Sarlet:

Embora tenhamos que reconhecer, a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e da efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente – em se cuidando da saúde – da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo. Tal argumento cresce em relevância em se tendo em conta que a nossa ordem constitucional (acertadamente, diga-se de passagem) veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar – pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça – que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos – se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento.351

351 Algumas Considerações em torno do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de

Em complemento, Andreas Krell pondera sobre raciocínio de outro autor, Gustavo Amaral, que, defendendo a prevalência da reserva do possível e a impossibilidade de judicialização das prestações positivas oriundas de direitos sociais, atribui ao Executivo a prerrogativa de escolher empregar os recursos disponíveis para tratar “milhares de doentes vítimas de doenças comuns à pobreza ou um pequeno número de doentes terminas de doenças raras ou de cura improvável”.352 Para Krell:

A resposta coerente na base da principiologia da Carta de 1988 seria: tratar todos! E se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?”, etc.353

Dessa forma, diante da possibilidade da cura de uma doença ou mesmo da melhora significativa das condições de vida de um indivíduo por meio do acesso a medicamentos, fazer prevalecer quaisquer dos supostos impedimentos acima aventados implica verdadeira violência contra a pessoa doente que é diretamente prejudicada na sua vida e integridade. Daí se depreende que os direitos fundamentais de primeira geração podem ser tomados como fonte de direitos subjetivos a prestações positivas do Estado.354