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4 AS PRINCIPAIS OBJEÇÕES AO ACESSO AOS MEDICAMENTOS

4.5 A Reserva do Possível

Reforçando a idéia de que na interpretação do Direito é preciso levar em conta não só elementos jurídicos, mas também elementos da realidade, como as condições financeiras para a realização das prestações que estão atreladas à concretização dos direitos sociais,290 vem ganhando espaço a figura da reserva do possível.291

É justamente o condicionamento da efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais à dependência de recursos econômicos que recebe a denominação de reserva do possível. Tem-se falado em duas espécies de reserva do possível, a fática e a jurídica. A reserva do possível fática, como sugere a própria denominação, diz respeito à inexistência fática de recursos, ou seja, o vazio dos cofres públicos. A jurídica, por sua vez, corresponde à ausência de autorização orçamentária para determinado gasto ser levado a cabo, do que se depreende a estreita ligação deste instituto com as colocações dedicadas aos princípios orçamentários.292

290 Apesar de, como antes pontuado, os direitos civis e políticos também demandarem recursos para sua garantia, a

reserva do possível vem sendo mais freqüentemente colocada como objeção aos direitos econômicos, sociais e culturais.

291 Paulo Gilberto Cogo Leivas atenta que: “Na discussão sobre as restrições aos direitos fundamentais sociais, a

cláusula da reserva do possível é amiúde invocada. Ela foi referida no julgamento do caso Numerus Clausus I pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha. Numerus clausus é a denominação de uma política adotada na Alemanha, em 1960, para limitar numericamente os ingressos de estudantes em determinados cursos universitários face à grande quantidade de interessados em áreas como o direito, medicina, farmácia e outras. Estudantes que não lograram ser admitidos nas escolas de medicina das Universidades de Hamburgo e Munique contestaram a limitação com base no art. 12 da Lei Fundamental, que prevê o direito de todo alemão à livre escolha de sua profissão, seu posto de trabalho e seu centro de formação” (Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2006. p. 97-98).

292 Américo Bedê Freire Júnior acrescenta que há questões interessantes relacionadas ao problema da reserva do

possível no seu aspecto jurídico, como, por exemplo: “(a) política pública prevista no plano plurianual, mas não prevista na lei orçamentária; (b) política pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária na lei orçamentária anual, porém não realizada a despesa até o fim do exercício em curso; (c) política pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária na lei orçamentária anual, porém realizada apenas em parte no exercício próprio; (d) possibilidade de o juiz determinar a inclusão de política pública no próprio plano plurianual; (e) problema de que a previsão na lei orçamentária anual não gera direitos subjetivos nem obriga o administrador a realizar a despesa prevista; (f) política pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária na lei orçamentária anual, mas ainda não efetivada.” Quanto à hipótese (e) o autor ressalva que, apesar de não exigir uma obrigatoriedade da realização da despesa prevista na lei orçamentária anual, isto não pode ser utilizado para justificar o não atendimento de direitos fundamentais. Poder-se-ia dizer, conclui o autor, que comprovada a necessidade fática,

Muitas conclusões vêm sendo extraídas a partir da consideração de que a reserva do possível é sempre aplicável quando se trata de direitos sociais, incluindo entre eles o direito à saúde. São exemplos: a reserva do possível implica a total desvinculação jurídica do legislador quanto à concretização dos direitos sociais; significa “tendência zero” da eficácia jurídica das normas constitucionais sobre direitos sociais; a reserva do possível impõe gradualidade na implantação desses direitos, tendo em conta especialmente os limites financeiros; e ainda implica insindicabilidade, ou seja, impossibilidade de judicialização, das opções legislativas que dão densidade às normas constitucionais que abrigam direitos sociais.

J. J. Gomes Canotilho não deixa de ressaltar a problemática dos custos dos direitos, especialmente dos que exigem prestações positivas, mas pondera sobre o conceito de reserva do possível a partir das assertivas acima, que ele mesmo traz para seu raciocínio:

Há uma dose de verdade em todas estas afirmações, mas, ao mesmo tempo, torna-se imperioso relativizá-las. Parece inequívoco que a realização dos direitos económicos, sociais e culturais se caracteriza: (1) pela gradualidade da realização; (2) pela dependência financeira relativamente ao orçamento do Estado; (3) pela tendencial liberdade de conformação do legislador quanto às políticas de realização destes direitos; (4) pela

insusceptibilidade de controlo jurisdicional dos programas

políticos-legislativos a não ser quando se manifestam em clara contradição com as normas constitucionais ou transportem dimensões manifestamente desrazoáveis. Reconhecer estes aspectos não significa a aceitação acrítica de alguns “dogmas” contra os direitos sociais.293

há sim uma obrigatoriedade de realização da despesa, não existindo qualquer discricionariedade ao administrador público (Controle Judicial de Políticas Públicas, cit., p. 76-77).

293 Metodologia “Fuzzy” e “Camaleões Normativos” na Problemática Actual dos Direitos Econômicos, Sociais e

Andreas J. Krell explica que esta teoria representa uma adaptação de criação da jurisprudência constitucional alemã, que vem sustentando que os direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado estão condicionados à disponibilidade de recursos financeiros e que, por sua vez, as decisões acerca desta disponibilidade ficam a cargo dos governos e parlamentos.294

Contudo, como salienta o mesmo autor, é preciso tomar cuidado com os conceitos constitucionais transplantados. O Brasil faz parte de contexto socioeconômico e cultural completamente diferente do europeu, onde o Estado Providência ainda não está devidamente implantado. A transferência mal conduzida do conceito da reserva do possível implicaria a adoção de solução estrangeira que não guarda coerência com a realidade e as necessidades da sociedade brasileira. Segundo o autor:

Não é à toa que os estudiosos do Direito Comparado insistem em lembrar que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de um contexto cultural e sócio- econômico diferente, o que exige um máximo de sensibilidade. O mundo “em desenvolvimento” ou periférico, de que o Brasil (ainda) faz parte, significa uma realidade específica e sem precedentes, à qual não se podem descuidadamente aplicar as teorias científicas nem as posições políticas trasladas dos países ricos. Assim, a discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode absolutamente ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implantado. 295

294 Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Os (Des)Caminhos de um Direito Constitucional

“Comparado”, cit., p. 52. Ele explica que: “Segundo o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, esses direitos a prestações positivas (Teilhaberechte) ‘estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade’. Essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social; a Corte recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos (Direitos Sociais e Controle Judicial... cit., p. 52).

295 Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, cit., p. 54. E o autor ainda pontua: “O modelo de

Estado Social vigente na Alemanha de hoje tem como pontos básicos a industrialização, a tecnologia, a comunicação e a racionalidade na gestão dos serviços públicos. O estado não é chamado somente para preservar e proteger o funcionamento livre da ordem econômica, mas para desenhar e planejar a vida social e o futuro da sociedade como um todo. Esse tipo de Estado Social já ultrapassa nas suas finalidades e pretensões o modelo clássico do Welfare State e procura a harmonia entre, num lado, idéias liberais de uma economia livre e, no outro, a igualdade de chances e distribuição de riquezas” (Direitos Sociais e Controle Judicial . cit., p. 44).

Ainda mais cautela deve-se ter ao utilizar a reserva do possível e as conseqüências dela advindas nos casos brasileiros. Este é o alerta do autor trazido aqui, o que não significa afastar de pronto os problemas da limitação de recursos públicos para dar conta de todos os anseios da sociedade brasileira.

Se, de um lado, a prática de assegurar direitos sem se preocupar com os meios hábeis a realizá-los pode ocasionar a desmoralização e inocuidade dos mesmos no mundo real; por outro, deixar de fazê-lo sob o argumento cotidiano de falta de recursos pode impedir mudanças sociais conforme ambicionado e determinado pela Constituição.

Tomando as lições de Flávia Piovesan e Renato Stanziola Vieira que adiantam o entendimento de que o mínimo vital pode afastar a alegação da reserva do possível, onde está incluída a saúde:

A “reserva do possível” não pode acarretar a ineficácia do direito. Ainda assim, chama atenção o caso concreto [Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45], no que se discutiu a abrangência da cláusula da “reserva do possível” para o direito à saúde, o que beira uma ousadia indevida. Isso porque, no caso brasileiro, como se ensina, o mínimo essencial dos direitos seria a garantia à saúde e à educação básica, pontos nos quais não se poderia chegar a cogitar de descumprimento “justificado” da Constituição Federal, por questões de caixa. Com sinceridade à Constituição, tamanha a essencialidade do direito que seria incogitável sua análise à luz de discussões técnico- orçamentárias.296

Veja-se, portanto, que há modos de se tratar a reserva do possível: como “cláusula supralegal de descumprimento da Constituição” e com seriedade, buscando “o diálogo entre as funções estatais em prol do respeito aos direitos fundamentais”.297

296 Justiciabilidade dos Direitos Sociais e Econômicos no Brasil: Desafios e Perspectivas. Araucaria - Revista

Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades. Ano 8, n. 15, 2007. Disponível em

http://www.institucional.us.es/araucaria, acesso em 15 de setembro de 2007.

297 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Controle Judicial de Políticas Públicas. São Paulo: Editora Revista dos

5 A PREVALÊNCIA DA DIGNIDADE HUMANA SOBRE INTERESSES ADMINISTRATIVOS E FINANCEIROS