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O federalismo e a repartição de competências na Constituição Federal

A concepção do Sistema Único de Saúde se insere no contexto de um Estado Social organizado de modo federativo, o que impacta diretamente a divisão de competências entre os entes federativos, União, Estados e Municípios, inclusive no que se refere à saúde. Desse modo, breves apontamentos sobre o federalismo brasileiro e a divisão de competências estatuída na Constituição de 1988 em matéria de saúde colaborarão para demonstrar a importância atribuída à saúde, responsabilidade de todas as esferas de governo. Posteriormente, com as linhas gerais sobre a organização, os princípios e a unidade do SUS, será possível perceber sua perfeita harmonia com o federalismo brasileiro, refletindo o federalismo de equilíbrio, cooperativo.186

Ou seja, pretende-se aqui apontar que: (i) a forma diferenciada com que a saúde – e, conseqüentemente, o fornecimento de medicamentos pelo Estado – é tratada pela Constituição Federal também está refletida na repartição de competências típica do federalismo; (ii) a divisão de competências constitucional é respeitada pela organização do SUS que, portanto, está de acordo com o federalismo brasileiro; e (iii) mais importante, todos os entes estão obrigados a dar conta da saúde da população e das prestações e necessidades daí advindas.

A origem da Federação e de suas características básicas encontra resposta na história do Direito Constitucional, ensina Michel Temer, mais especificamente no nascimento dos Estados Unidos da América. Indica o referido autor

186

O federalismo pode ser caracterizado de acordo com a direção tomada pela repartição de competências, acentuando a centralização ou a descentralização de poder. Desse modo, quando a maior soma de poderes fica a cargo da União, tem-se o federalismo centrípeto. A descentralização em prol da ampliação dos poderes estaduais caracteriza o federalismo centrífugo. Já o equilíbrio de atribuições entre as forças da União e dos Estados configura o federalismo de equilíbrio ou cooperativo. Têm-se, assim, relações de cooperação entre a União, soberana nas questões de sua competência, e os Estados-Membros com suas respectivas autonomia.

que as treze colônias, após se libertarem do domínio inglês, firmaram um tratado internacional criando uma Confederação de treze Estados soberanos, ordens jurídicas independentes. Posteriormente, diante de dificuldades para a execução do tratado, políticos e juristas como John Jay, Alexander Hamilton e James Madison passaram a defender a revisão do pacto inicial e a necessidade de se estabelecer uma união duradoura entre Estados. Vencidos os temores de perda da soberania, foi editada a Constituição, que previu que “os poderes legislativos conferidos pela presente Constituição serão atribuídos ao Congresso dos Estados Unidos, composto do Senado e da Câmara dos Representantes” (artigo I, secção I).187

Sobre os princípios, técnicas e instrumentos operacionais que integram a construção normativa do Estado Federal, Raul Machado Horta ressalta que, na prática, nem sempre todos estão atendidos. Ora se vê ênfase em certos deles, ora mesmo a ausência. E relaciona-os:

1. a decisão constituinte criadora do Estado Federal e de suas partes indissociáveis, a Federação ou União, e os Estados- Membros;

2. a repartição de competências entre a Federação e os Estados- Membros;

3. o poder de auto-organização constitucional dos Estados- Membros, atribuindo-lhes autonomia constitucional;

4. a intervenção federal, instrumento para restabelecer o equilíbrio federativo, em casos constitucionalmente definidos;

5. a Câmara dos Estados, como órgão do Poder Legislativo federal, para permitir a participação do Estado-Membro na formação da legislação federal;

6. a titularidade dos Estados-Membros, através de suas Assembléias Legislativas, em número qualificado, para propor emenda à Constituição Federal;

7. a criação de novo Estado ou modificação territorial de Estado existente dependendo da aquiescência da população do Estado afetado;

8. a existência no Poder Judiciário Federal de um Supremo Tribunal ou Corte Suprema, para interpretar e proteger a

Constituição Federal, e dirimir litígios ou conflitos entre a União, os Estados e outras pessoas jurídicas de direito interno.188

A distribuição de competências, que deve estar configurada na Constituição Federal, é elemento essencial à construção federal. Esta composição de poderes deve zelar pela conservação da autonomia189 das unidades federadas, as quais também têm participação garantida na formação da vontade estatal expressa nas leis nacionais, como pontuado acima.190

No Brasil, o federalismo assumiu várias formatações ao longo da história. Marlon Alberto Weichert indica que de um federalismo centrípeto de 1891, o Brasil caminhou para o federalismo centrífugo (e a maior descentralização de poder) de 1934, 1946 e de 1988, “acompanhado, outrossim, de crescente instituição de técnicas de concorrência de competências, típicas do federalismo cooperativo.”191 Descontados daí

188 Direito Constitucional, cit., p. 307. Sobre as notas essenciais ao federalismo, Michel Temer também anota:

“Verifica-se, pois, que duas notas são essenciais à caracterização federal: a) descentralização política fixada na Constituição (ou, então, repartição constitucional de competências) e b) participação da vontade das ordens jurídicas parciais na vontade criadora da ordem jurídica nacional. [...] Se estes requisitos são indispensáveis para a caracterização da Federação, dois outros colocam-se necessários para sua mantença. São eles: a) a rigidez constitucional e b) a existência de um órgão constitucional incumbido do controle da constitucionalidade das leis (Considerações sobre o Estado Federal. Revista da Procuradoria do Estado de São Paulo, n. 16, 1980, p. 296).

189 A autonomia é princípio essencial da Federação e relaciona-se diretamente com a repartição de competências.

Segundo Fernanda Dias Menezes de Almeida, autonomia “é a capacidade de estabelecer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem subordinação hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas. Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias regras” (Competências na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 97). Michel Temer destaca a autonomia política da autonomia administrativa: “Seu valor [da autonomia] reside na visão interior que se tem do Estado. É o encaixe das várias peças componentes da ordenação jurídica global que lhe dá significado. Repita-se que a autonomia comporta graduação. Se ela vai ao ponto de criação de diversos núcleos capazes de dizer a respeito das atribuições próprias, ou seja, com aptidão para inovar a ordem jurídica sobre aquela matéria, tem-se a autonomia política. Se, ao contrário, o novo centro pode apenas executar o estabelecido por outro núcleo, original, encontra-se a autonomia administrativa. Naquela o grau autonômico é máximo; nesta é mínimo” (Considerações sobre o Estado Federal, cit., p. 294).

190 Como ensina Raul Machado Horta: “A Constituição Federal dirá onde começa e onde termina a competência da

Federação. Onde se inicia e onde acaba a competência do Estado-Membro. A relação entre Constituição Federal e repartição de competências é uma relação causal, de modo que, havendo Constituição Federal, haverá, necessariamente, a repartição de competências dentro do próprio documento de fundação jurídica do Estado Federal. Por isso, a repartição de competências é tema central da organização federal” (Direito Constitucional, cit., p. 342).

191 Alguns autores criticam o ainda excesso de poder central. Entre outros, cf. HORTA, Raul Machado. Direito

Constitucional, cit., p. 305 e ss.; Clenir de Assis Lopes, A centralização no Estado federal. Revista da Faculdade de

Direito da Universidade Federal do Paraná, v. 22, n. 22, Curitiba, 1985. p. 127.; ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. A Repartição de Competências na Constituição Federal de 1988, cit., p. 90 e ss.; BASTOS, Celso.

os períodos de Estado unitário das épocas de ditadura, especialmente sob o comando de Getúlio Vargas e dos militares pós-1964.192

A Constituição brasileira de 1988 inovou ao inserir a cláusula de indissociabilidade do vínculo federativo em seu título inaugural, que compreende os Princípios Fundamentais. Além disso, integrou os Municípios na união indissolúvel, conforme prescreve o artigo 1º: “A República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”. Sobre esta novidade, Paulo Bonavides ressalta que o raio de autonomia municipal na organização política do país faz o Município essencial ao próprio sistema federativo, colocando luzes na dimensão trilateral do novo modelo de federação trazido pela Carta de 1988. Por suas palavras:

Todavia, no Brasil, com a explicitação feita na Carta de 1988, a autonomia municipal alcança uma dignidade federativa jamais lograda no direito positivo das Constituições antecedentes. Traz o art. 29, por sua vez, um considerável acréscimo de institucionalização, em apoio à concretude do novo modelo federativo estabelecido pelo art. 18, visto que determina seja o município regido por lei orgânica, votada por quorum qualificado de dois terços dos membros da Câmara Municipal – requisito formal que faz daquele estatuto um diploma dotado de grau de rigidez análogo ao que possuem as cartas constitucionais.

Enfim, o art. 30, discriminando a matéria de competência dos municípios, tem uma latitude de reconhecimento constitucional desconhecida aos textos antecedentes de nosso constitucionalismo.193

O texto constitucional, utilizando-se de várias técnicas de repartição de competências, fixou a convivência das atribuições e das esferas jurídicas delineadas pela União, pelos Estados e pelos Municípios, do que se passa a tratar.

192 Saúde e Federação na Constituição Brasileira, cit., p. 64. 193 Curso de Direito Constitucional, cit., p. 345-346.