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A Discricionariedade Administrativa

4 AS PRINCIPAIS OBJEÇÕES AO ACESSO AOS MEDICAMENTOS

4.3 A Discricionariedade Administrativa

Vale destacar que a discricionariedade está intimamente relacionada com a separação de poderes, visto se tratar de característica da função executiva utilizada para justificar a limitação ou mesmo a impossibilidade de análise e contestação por parte do Poder Judiciário. Nesse sentido, a caracterização do fornecimento de medicamentos, em especial no que se refere à escolha daqueles que integrarão as relações públicas, como atividade discricionária da Administração Pública também é

255 Direitos Fundamentais Sociais. Funções, Âmbito, Conteúdo, Questões Interpretativas e Problemas de

freqüentemente utilizada como objeção aos pedidos judiciais de medicamentos. A discricionariedade ora se coloca como empecilho à compra e disponibilização imediata destes insumos, ora como vedação ao fornecimento pelo SUS de medicamento não constante das relações públicas.

Discricionariedade é a margem de liberdade, conferida por determinadas normas ao administrador, para escolher, “segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal”.256 Nada mais é, portanto, do que a liberdade de escolher

garantida ao Poder Público, dentro dos parâmetros legais. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito. Nesses casos, o poder da Administração é discricionário, porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, eqüidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador.257

Em contraposição aos atos tidos como discricionários estão os chamados atos vinculados. Por decorrência lógica, os atos vinculados são aqueles cuja prática não deixa margem a qualquer apreciação subjetiva, existindo “prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta”.258 Apesar da

diferença entre discricionariedade e vinculação, todos os atos administrativos devem ser guiados pela lei e, mais do que isso, devem observar estritamente as finalidades

256 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros,

2006. p. 48.

257 Direito Administrativo, cit., p. 205.

258 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 401. O autor explica também ainda

o conceito de atos discricionários: “atos discricionários, pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles” (Curso de Direito Administrativo, cit., p. 402).

legais. Nesse sentido, é o alerta de Lúcia Vale Figueiredo, de que "atos administrativos são todos, quer vinculados, quer discricionários, atos jurídicos, atos legais, portanto, debaixo estritamente da lei e que perseguem finalidades por estas traçadas".259

Sendo assim, a lei concede à Administração Pública determinada margem de liberdade discricionária com um objetivo muito claro: para que, diante do caso concreto, o administrador possa melhor atingir a finalidade legal. Portanto, a discricionariedade deve ser entendida como um instrumento para se atingir a finalidade prevista na lei. Conclui-se daí que, quanto à finalidade, sempre haverá vinculação e nunca discricionariedade, ou seja, o ato administrativo emanado sempre deverá atingir a finalidade estabelecida pela lei. Não cabe ao administrador optar se quer ou não atingi-la ou se prefere atingir finalidade diversa.

Juarez Freitas relaciona a discricionariedade administrativa ao direito fundamental à boa administração pública e esclarece:

[...] pode-se conceituar a discricionariedade administrativa legítima como a competência administrativa (não mera faculdade) de avaliar e de escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante justificativas válidas, coerentes e consistentes de conveniência e oportunidade (com razões juridicamente aceitáveis), respeitados os requisitos formais e substanciais da efetividade do direito fundamental à boa administração pública.260

Por meio da contribuição de Celso Antonio Bandeira de Mello tem-se mais bem desenhada a delimitação da atuação discricionária. Explica o autor que a interferência de um “juízo subjetivo do administrador”, característica da discricionariedade, pode ocorrer quanto:

a) à determinação ou reconhecimento – dentro de certos limites mais além referidos – da situação fática; ou

259 Curso de direito administrativo, cit., p. 214-215.

260 Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros

b) no que concerne a não agir ou agir; ou

c) no que atina à escolha da ocasião para fazê-lo; ou

d) no que diz com a forma jurídica através da qual veiculará o ato; ou

e) no que respeita à eleição da medida considerada idônea perante aquela situação fática, para satisfazer a finalidade legal. 261

Nessa linha, o autor ensina que as "causas normativas geradoras da discricionariedade" decorrem: (i) da hipótese da norma, quando a lei descreve de forma imprecisa o fato que deflagra a sua aplicação; (ii) do comando da norma, quando conceder ao administrador público alternativas de atuação quanto a expedir ou não o ato, a avaliar a melhor oportunidade de expedir o ato, a forma que revestirá o ato ou a medida mais satisfatória diante das circunstâncias; (iii) da finalidade da norma, já que a finalidade se expressa em valores ou palavras com conceitos vagos ou fluidos.262

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello acrescenta que o crivo da discricionariedade, quando da prática de certo ato administrativo, deve estar orientado pelo interesse público especificamente sopesado para determinado caso concreto. Por suas palavras destaca:

Esses limites dos poderes discricionários se encontram nos motivos determinantes do ato jurídico e no fim com que é praticado, tendo em vista a preocupação do seu agente e a razão de ser do próprio instituto jurídico. Toda a atividade do Estado- poder tem por baliza o interesse público. Por conseguinte, não se

261 Discricionariedade e controle jurisdicional, cit., p. 17.

262 Discricionariedade e controle jurisdicional, 2. ed., 7. tiragem, São Paulo, Malheiros, 2006. p. 18-22. O autor

exemplifica quando a discricionariedade se dá na finalidade da norma: "Se a lei disser, figure-se, que deverão ser expulsas da praia, a bem da moralidade pública, as pessoas que estejam trajando vestes de banho indecorosas, o pressuposto deste comando (hipótese da norma), impositivo da obrigação de expulsar, seria estar trajando veste pouco decorosa. Este seria o pressuposto de fato: a veste ser pouco decorosa. A finalidade seria a defesa da moralidade pública. Dir-se-á: o pressuposto é fluido, porque a noção de veste pouco decorosa, sofre variável no tempo e no espaço, mesmo num dado tempo e espaço pode ensachar algumas dúvidas. Mas, em rigor, se bem se atentar para a questão, perceber-se-á que a falta de precisão do conceito de pouco decoro no traje não está residente no pressuposto de fato, em si considerado. Está residente na finalidade da norma que fala em moralidade pública, pois, dependendo da noção que se tenha de moralidade pública, determinado traje será pouco decoroso ou será decoroso. Logo, o pressuposto de fato ganha fluidez não porque a tenha em si mesmo, mas em decorrência da finalidade da norma estar manejando conceitos de valor que, eles sim, são altanto vagos, altanto imprecisos” (Discricionariedade... cit., p. 20).

tolera motivo determinante estranho ao interesse coletivo e nem preocupação da autoridade pública em conflito com ele. Por outro lado, não basta seja praticado o ato tendo em mira o interesse coletivo; outrossim, impõe-se a consideração do interesse coletivo específico, objeto do instituto jurídico a que se refere o ato. Portanto, mesmo os atos administrativos praticados pela Administração Pública no exercício dos seus poderes discricionários encontram os limites acima expostos. Não podem transpô-los, sob pena de envolver exercício abusivo de direito.263

No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello conclui que a possibilidade de soluções diferentes, conferida pela lei, apenas existe devido à diversidade de situações, de modo que dado tipo de casos reclama uma solução e outro tipo exige solução diferente. Assim, a razão da discricionariedade é tão-somente viabilizar a adoção da decisão pertinente, mais adequada para atender a finalidade traçada pela lei. As variadas soluções comportadas na lei não significam autorização para adotar qualquer uma delas indiferentemente. Pelo contrário, implica o dever de escolher entre elas a mais adequada para determinado caso, não necessariamente a mesma para outro caso. Diante do caso concreto a discricionariedade, então, se esvai.264

Acrescente-se ainda que a assunção do Estado Democrático de Direito, vinculando a justiça à legalidade, permite concluir que a discricionariedade administrativa encontra-se limitada tanto pela lei como pela idéia de justiça. Assim, o administrador está obrigado a interpretar o conceito adotado pela norma jurídica valorizando os princípios constitucionais, determinando as diretrizes aplicáveis ao caso e buscando na realidade os elementos que lhe permitirão precisar os termos que o exprimem.

O Desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Luis Carlos de Castro Lugon, bem reflete os limites da atuação administrativa que não pode

263 Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. v. I. 264 Cf. Discricionariedade e controle jurisdicional, cit., p. 36-37.

se distanciar das diretrizes constitucionais e da perseguição do interesse público, o que pode ser examinado pelo Judiciário, conforme se depreende do trecho de sua decisão abaixo:

Após a Constituição de 1988, o Direito Administrativo trilhou novos rumos, flexibilizando-se a antiga lição que vedava ao juiz imiscuir- se no chamado "mérito" do ato administrativo, reservado à área de oportunidade e conveniência, onde imperava a discricionariedade. Evidentemente, não se há que permitir ao julgador substituir-se ao administrador na tomada de decisões entre opções de natureza política. No entanto, hoje já se tem assente que as escolhas políticas não podem divergir das diretrizes constitucionais, às quais está o agente público sempre vinculado, sendo, pois, correta a assertiva de que ausente discricionariedade pura do administrador, facultando-se ao Judiciário o exame da motivação, à luz do interesse público e dos princípios fundamentais ínsitos na Lei Maior.265

Na mesma linha, Andreas J. Krell também ressalta a possibilidade de controle jurisdicional de qualquer ato administrativo, inclusive os discricionários e os que decorrem de valoração administrativa de conceitos indeterminados, com base nos princípios constitucionais e nos princípios gerais de direito. Segundo este autor:

na atual fase “pós-positivista”, que foi instaurada com a ampla positivação dos princípios gerais de Direito nos novos textos constitucionais, os atos administrativos discricionários não devem ser controlados somente por sua juridicidade. Essa “principialização” do Direito brasileiro (proibição de arbitrariedade, razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, proteção da confiança legítima etc.) aumentou a margem de vinculação dos atos discricionários.266

265 TRF4, REO 2005.71.00.031144-5, Terceira Turma, Relator Luiz Carlos de Castro Lugon, publicado em

07/02/2007.

Tem-se, portanto, que a atuação discricionária não pode se afastar de seu objetivo principal: atender, da maneira mais satisfatória possível, o interesse público. Sendo assim, não há qualquer óbice ao controle judicial da atividade administrativa. Ao contrário, “se o Judiciário deve conhecer de qualquer lesão a direito, ipso facto, é o Judiciário titulado a dizer quando a conduta administrativa quedou-se dentro da moldura legal, não a desbordando”, ensina Lúcia Valle Figueiredo.267

No caso do acesso a medicamentos, a discricionariedade está presente na eleição daqueles que compõem as listas do SUS, cuja escolha não é feita livremente, ao bel-prazer do gestor da vez, mas, ao contrário, deve seguir critérios predefinidos, conforme apontado no capítulo anterior. A escolha dos medicamentos integrantes das relações de medicamentos nacionais, estaduais e municipais deve ser precedida por uma série de procedimentos orientados por critérios hábeis a proporcionar as melhores escolhas. O funcionamento dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, exposto anteriormente, bem indica a restrita margem de liberdade daqueles que se dedicam à elaboração e à revisão das relações de medicamentos.

Porém, tais listas são acessórias, destinando-se a colaborar para a mais satisfatória possível administração do SUS, considerando o seu funcionamento regular e a visão geral dos principais problemas de saúde que atingem a população. Nesse sentido, as ditas relações não podem ser usadas para impedir o acesso a outros medicamentos eventualmente necessários, o que ficará mais evidente no capítulo seguinte. Mais despropositado será suscitar a discricionariedade como justificativa para desobrigar o administrador da compra imediata daqueles constantes das listas, mas faltantes na rede pública, ainda que sob justificativas de limitação ou insuficiência de recursos.