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Os princípios do Sistema Único de Saúde

Acrescentamos aqui os princípios específicos do Sistema Único de Saúde, previstos na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde, cujo tratamento se iniciou no primeiro capítulo deste trabalho, destacando que receberão tratamento mais bem detalhado aqueles que incidem mais diretamente na organização dos serviços públicos de saúde. Como se verá, esses princípios, ao lado da unidade do Sistema, ordenam e influenciam a distribuição de competências entre os três níveis de governo, o que é esmiuçado pela legislação infralegal.

Marlon Weichert bem localiza os princípios do SUS no ordenamento jurídico pátrio:

Os princípios do SUS não são isolados e dissociados dos demais princípios constitucionais, em especial dos estruturantes e dos consagradores de direitos fundamentais. Pelo contrário, eles estariam em relação a estes no patamar de subprincípios instrumentais para a concretização dos valores constitucionais que pairam no patamar mais alto da Constituição, em especial os previstos nos artigos 1º a 4º Conectam-se os princípios do SUS também ao sistema de direitos e garantias fundamentais

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Vale ressaltar que quando se fala em saúde, por todo o exposto até aqui e, levando em conta as ressalvas de Bandeira de Mello quanto à significação da atribuição de competências, não se trata de faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, órgão ou agente do Poder Público. A repartição de competência tem verdadeiro caráter mandatório. A Corte Suprema, ao atestar a responsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, vem colocando ponto final nas freqüentes tentativas dos entes públicos de se esquivarem da responsabilidade de prestar adequadamente os serviços de saúde.

(individuais, coletivos e sociais), concretizando o direito à vida, à integridade física, à saúde e ao bem-estar pleno. Ao mesmo tempo que são concretizadores de princípios constitucionais genéricos, os princípios do SUS exercem semelhante papel em face das demais regras do sistema.216

De início, porque o mais incisivo quanto à organização dos serviços de saúde trabalhada neste capítulo, tem-se o princípio da descentralização político- administrativa, com direção única em cada esfera de governo, que engloba duas determinantes: (i) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; (ii) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde, nos termos do artigo 7º, inciso IX, da Lei n. 8.080/90.

A descentralização é a espinha dorsal do SUS. Sem ela o sistema não caminha. A execução dos serviços e ações de saúde tornou-se dever de cada esfera de governo, de modo que cada uma delas, devendo agir juntas e de forma solidária, tem a sua competência administrativa definida pela Lei Orgânica da Saúde. A descentralização tem a vantagem de colocar o responsável pelos serviços face a face com os fatos.

O Município é o ente federado mais próximo da realidade, extremamente diversificada, da população do país, tanto em suas características socioculturais, como na profundidade dos problemas a serem enfrentados, o que requer também estratégias particulares para cada caso, ou para cada região. Estando mais próximo, mais fácil o acesso e o poder real de controle e fiscalização e maior agilidade para adoção de eventuais medidas corretivas. Assim, o que o Município pode fazer, os estados e a União não fazem; o que os Estados podem fazer, a União não faz. Isso imprime racionalidade ao sistema e aos recursos humanos disponíveis e permite ao usuário a identificação do responsável direto pela ação, aumentando o grau de consciência do cidadão e facilitando sua participação no governo. A municipalização da saúde é um

dos grandes avanços trazidos pelo SUS, efetivando a descentralização política, que constitui a base do federalismo.

A descentralização com direção única em cada esfera de governo significa que o SUS, embora único, em suas diretrizes e princípios básicos, em todo o território nacional, deve ser operado em cada esfera de governo pelo órgão responsável pela saúde. Assim, no âmbito da União, a direção compete ao Ministério da Saúde; nos Estados, Distrito Federal e Municípios, competirá à respectiva Secretaria da Saúde ou órgão equivalente dirigir o SUS, de acordo com as peculiaridades e interesses de cada região político-administrativa. Cada uma das esferas de governo é, portanto, autônoma, nos limites de sua atuação e de seu território, para praticar todos os atos referentes à organização e à execução dos serviços de saúde.

A regionalização e hierarquização são pressupostos da descentralização de serviços, constituindo-se em conceitos e fórmulas organizativas do SUS, que supõem operá-lo com racionalidade de meios e fins, instrumentalizando o processo de planejamento de ações e serviços de saúde.

A hierarquização supõe três ou quatro níveis de complexidade da atenção integral à saúde, organizados cada qual com resolutividade própria. A hierarquia rege a rede de serviços, mas não a relação entre os entes federativos – o que seria oposto ao princípio federativo que coloca em igual patamar União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A regionalização, por sua vez, é entendida como a distribuição espacial de serviços de saúde, em todos os níveis de complexidade, organizados para atender à população de uma região. Sendo assim, é necessário conhecer inicialmente as necessidades e os serviços, para depois hierarquizá-los e regionalizá-los.

A integralidade de assistência, outro princípio do SUS conforme artigo 7º, inciso II, igualmente estampado na Constituição Federal (artigo 198), deve ser entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e

curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.

A rede pública de saúde deve propiciar aos indivíduos atendimento integral, ou seja, deve atuar desde na prevenção de doenças, no fornecimento de atendimento médico e hospitalar e na prestação da assistência farmacêutica, possibilitando o acesso aos medicamentos necessários ao tratamento e à cura. Trata- se de combinar, de forma harmônica e igualitária, as ações e serviços de saúde preventivos com os assistenciais ou curativos, tentando, em última instância, terminar com a divisão existente no sistema anterior, que privilegiava a assistência curativa.

Por universalidade, terceiro princípio específico do Sistema Único abordado, entende-se que os serviços públicos de saúde devem ser destinados a toda a população indistintamente, nos termos do artigo 7º, inciso I, da Lei n. 8.080/90. Além disso, o princípio da universalidade traz, implicitamente, a gratuidade no atendimento, instaurando uma nova lógica na garantia da saúde. Isso porque a política de saúde pública que existia anteriormente era fragmentada e excludente, uma vez que cobria, através da previdência social, somente a saúde dos trabalhadores inseridos formalmente no mercado de trabalho. Para os demais brasileiros, restavam os hospitais-escola, os hospitais públicos e as instituições filantrópicas, que tinham como preocupação exclusiva a chamada medicina curativa ou assistência médica centrada na doença. Por meio do princípio do acesso universal a Constituição Federal e Lei Orgânica da Saúde asseguraram que os recursos e ações na área da saúde se destinem a toda população, independentemente de qualquer requisito, não podendo, dessa forma, ser restringidos a um grupo, categoria ou classe de pessoas. Toda pessoa tem direito à saúde.

A igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, consignada no inciso IV do artigo 7º, é mais um dos princípios específicos. Seu significado estabelece que as pessoas, na mesma situação clínica, devem receber igual atendimento, sendo vedado – em órgãos públicos de saúde, ou

em órgãos privados que, conveniados, integram o SUS – o atendimento privilegiado daqueles que possam pagar pelo serviço. O tratamento diferenciado apenas se justifica na medida da situação de desvantagem, em comparação com as demais, de forma que propicie a igualdade material e justiça no tratamento. Dessa forma, aqueles que apresentem maior grau de debilidade física, mental ou psicológica farão jus ao tratamento diferenciado na exata medida de sua desigualdade. Podem ser citados como exemplos a assistência às pessoas portadoras de deficiências, o atendimento à criança e ao idoso, que, regra geral, necessitam de uma série de medidas de assistência especial e prioritária, mas que não desnaturam o princípio da igualdade.

Aproveitando a referência aos princípios da universalidade e da igualdade, que juntos apontam à eqüidade, pontuam-se aqui duas questões bastante intrincadas que dizem respeito ao acesso aos serviços públicos de saúde e, especialmente, ao fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único. A primeira delas refere-se à origem – se emitida por profissional do próprio serviço público ou não – da solicitação de um medicamento ao SUS. Ou seja, cuida-se de analisar se a receita médica, documento essencial para a solicitação e fornecimento de um medicamento pela rede pública de saúde, deve ser prescrita por profissional integrante do SUS, ou se aquelas prescritas por profissionais particulares, aí incluídos aqueles vinculados a planos de saúde, também geram o dever de atendimento quando apresentadas à rede pública. A segunda diz respeito às características socioeconômicas daqueles que utilizam os serviços e solicitam medicamentos ao SUS – se carentes de recursos ou não – como condição para o fornecimento do pedido.

Ressalvando que as considerações acerca dessas questões não são conclusivas, até pela falta de profundidade da abordagem aqui apresentada, acredita- se que a exigência de prescrição médica originada no próprio Sistema Único de Saúde se faz adequada diante de atendimento básico de saúde regular e em tempo razoável, ou seja, satisfatório. Lamentavelmente, não são raros os relatos, divulgados com freqüência pela grande mídia, de longas filas de espera para a realização de uma consulta e de exames simples. Em contrapartida, as camadas mais pobres da

população vêm adquirindo cada vez mais planos de saúde, cuja oferta também está se adaptando aos menores bolsos.217 Por óbvio, estes planos de saúde ficam longe de garantir uma cobertura minimamente satisfatória, servindo apenas para os atendimentos mais simples. No caso de medicamentos, vale destacar que a Lei n. 9.656/98, Lei dos Planos de Saúde, não obriga a cobertura destes insumos por parte das operadoras de planos de saúde, sendo certo que a assistência farmacêutica não está incluída nos planos mais básicos. Diante deste cenário, não parece razoável exigir que aquele que já tem uma receita médica espere em longas filas por uma consulta com médico da rede pública para, somente depois disso, poder iniciar seu tratamento. Essa imposição nos dias de hoje acabará por prejudicar especialmente aquelas pessoas que não têm condições de arcar com os custos do medicamento, em prejuízo de sua saúde e, por vezes, de sua vida. É razoável supor que a grande maioria das pessoas que batem às portas do SUS apenas se dispõe a enfrentar as intempéries que muitas vezes se colocam no caminho até o tratamento, serviço ou medicamento necessário, quando não têm condições de arcar com seus custos.

Quanto à situação socioeconômica do solicitante do medicamento, vale lembrar, em princípio, que o SUS veio justamente em contraposição a um modelo de atenção à saúde excludente, garantindo assistência a todas as pessoas. Dito de outro modo, a carência socioeconômica da pessoa que se apresenta ao Sistema Único necessitando de tratamento ou de um medicamento para a recuperação de sua saúde não pode ser vista como condição para o acesso e para a fruição dos serviços públicos de saúde, sob pena de ofensa à Constituição Federal. Apenas as diferentes situações clínicas justificam tratamento diferenciado, o que pode implicar inclusive maior ou menor rapidez no atendimento, mas não a vedação do acesso aos serviços.

Sendo assim, sustenta-se aqui que, regra geral, levando em conta o atendimento corriqueiro prestado pelo Sistema Único de Saúde, a receita prescrita por

217 Apenas para ilustrar, considerando um plano de saúde individual para uma pessoa na faixa etária de 34 a 38 anos,

e o plano de menor preço de cada empresa tem-se: plano da Medial Saúde por R$ 79,35; da Samcil por R$ 83,60; da Itálica Saúde por R$ 54,91; da Saúde Serma por R$ 81,66. Os preços foram consultados nos sítios eletrônicos das próprias operadoras de planos de saúde e também nos de corretoras de saúde, em 20 de julho de 2008.

qualquer médico ou profissional autorizado deve ser documento hábil para solicitação de um medicamento, gerando o dever da rede pública de saúde em fornecê-lo. De outra parte, o SUS está obrigado a atender todas as pessoas e a condição socioeconômica de cada uma delas não é condição ou requisito para tanto. Caso o atendimento básico de saúde fosse prestado de forma regular e eficiente, poder-se-ia exigir a receita de médico integrante do Sistema, como condição essencial para toda e qualquer pessoa receber o medicamento.

Entretanto, é preciso transpor essas variáveis ao ponto central deste trabalho, medicamentos cuja solicitação é feita por meio do Judiciário em virtude de não estarem incorporados pelo SUS, ou seja, não constam das relações públicas de medicamentos utilizadas como parâmetro orientador da assistência farmacêutica prestada pelo Sistema Único. Nesses casos, parece ser razoável que a origem da receita médica218 seja levada em conta pelo magistrado. Isto porque, vindo de médico habituado ao Sistema, que, presume-se, conhece os protocolos, consensos e diretrizes terapêuticas do SUS, a prescrição do medicamento ganha status de prova robusta no que se refere à falta de alternativa satisfatória, para o tratamento do paciente em questão, que se encaixasse ao funcionamento ordinário do serviço público de saúde. Ter-se-ia, dessa forma, a garantia da igualdade e também da universalidade exigidas constitucionalmente.

Todavia, o raciocínio apresentado não implica completa vedação ao magistrado, não pretendendo transformar a receita médica originada na rede pública em condição sine qua non para uma decisão judicial que obrigue o Estado ao fornecimento de medicamento. Algumas condições do caso concreto, a exemplo da gravidade do estado de saúde da pessoa ou mesmo diante da comprovação de grande dificuldade para conseguir consulta na rede pública, podem servir para motivar ordem judicial baseada mesmo em receita de médico particular. Nesse sentido, como se verá mais adiante, a condição financeira daquele que pleiteia o medicamento não

218 Vale mencionar que muitos médicos e profissionais de saúde integram o Sistema Único de Saúde e também

prestam seus serviços de modo particular, sendo credenciados de operadoras de planos de saúde ou mesmo em consultórios particulares.

incorporado na rede pública é sempre pontuada pelas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Apesar de não parecer critério legítimo diante da lógica e dos princípios que a Carta de 1988 estabeleceu para o Sistema Único de Saúde, diante de prestação excepcional, medicamento que não integra relação pública, o Pretório Excelso tem consignado a falta de condição financeira em suportar a compra do medicamento. A temática abordada aqui é bastante intrincada, como se ressalvou desde o início deste trabalho, e, dessa forma, a ponderação das características do caso concreto parece ser essencial para conduzir a melhor decisão, como detalhado no capítulo cinco.

Voltando aos princípios do SUS, outro importante princípio é a participação e o controle social da comunidade na gestão, no controle e na fiscalização dos serviços e ações de saúde da comunidade, previstos na Constituição Federal, na Lei Orgânica da Saúde, artigo 7º, inciso VIII e especialmente na Lei n. 8.142/90.

A participação da comunidade se dá através dos Conselhos de Saúde e das Conferências de Saúde, em todos os níveis de governo, com poder deliberativo e com composição paritária. Segundo a lei, os Conselhos de Saúde devem ser compostos por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais da saúde e usuários, que atuarão na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente. A representação dos usuários deve ser a metade de todos os Conselheiros ou Delegados.219

219 São ainda princípios do Sistema Único de Saúde, conforme artigo 7º da Lei n. 8.080/90: a preservação da

autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral na prestação dos serviços públicos de saúde (inciso III); direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde (inciso V); divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e sua utilização pelo usuário (inciso VI); utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática (inciso VII); integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico (inciso X); conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população (inciso XI); capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência (inciso XII); organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos (inciso XIII).

3.4 A divisão de competências no Sistema Único de Saúde, em especial quanto ao