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CAPÍTULO II – O processo de ensino e de aprendizagem da Geometria no 1º Ciclo do Ensino Básico numa

GRANDEZAS E MEDIDAS Estimativa de valores de

2. O ensino e a aprendizagem da geometria

2.1. A geometria nos planos curriculares

Ponte (2000a), numa análise à evolução do currículo de Matemática do 1º Ciclo do Ensino Básico, verifica que “há quarenta anos, no ensino Primário, não existia uma área de Matemática mas sim de Aritmética” (71) e que nessa área, “eram trabalhadas destrezas e procedimentos relativos aos números e operações, envolvendo a resolução de problemas rotineiros, e estudavam-se as principais medidas – mas não se abordavam outras áreas da Matemática” (ib: id). Em termos práticos, ensinar – a principal função do professor do Ciclo do Ensino Básico – consistia em não permitir que os alunos deixassem a Escola “se não soubessem ler, escrever e contar” (Serrazina, 1996: 1) reduzindo-se o conhecimento matemático aos seus aspectos aritméticos.

Com efeito, num extenso documento produzido pelo Ministério da Educação (1911) – Reforma de 1911 – partindo-se do princípio que:

Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria prima de todas as pátrias, e, por mais alto que se afirme a sua consciência colectiva, Portugal só pode ser forte e altivo no dia em que, por todos os pontos do seu território, pulule uma colmeia humana, laboriosa e pacífica, no equilíbrio conjugado da fôrça dos seus músculos, da seiva do seu cérebro e dos preceitos da sua moral. [...]

A República libertou a criança portuguesa, subtraindo-a à influência jesuítica, mas precisa agora de a emancipar definitivamente de todos os falsos dogmas, sejam os de moral ou os de sciência, para que o seu espírito floresça na autonomia regrada, que é a fôrça das civilizações. [...]

A instrução foi sempre um dos principais elementos da educação. [...] (3), considera-se que:

É preciso saber ler, conhecer de maneira elementar, ao menos, êsse alfabeto maravilhoso, onde se estratifica a notícia dos acontecimentos e se agita a opinião dos homens. O a b c, segundo a velha designação, é por isso hoje o fundamento lógico do carácter, e, quem o ensina e evangeliza, o guia supremo da consciência dos povos. [...] A criança, de hoje para o futuro, conhecerá os rudimentos das artes, da agricultura, do comércio, da indústria, familiarizando-se, numa educação essencialmente prática com a terra e com os utensílios que o homem põe ao serviço da vida. (3)

É neste contexto que no então ‘ensino primário elementar’ que percorria os três primeiros anos de escolaridade, se definiam os seguintes objectos de estudo:

1º Leitura; escrita; rudimentos da língua portuguesa; contos de história e lendas tradicionais;

2º Operações fundamentais da aritmética; noções do sistema métrico decimal; 3º Desenho e modelação;

4º Higiene individual; gimnástica: jogos educativos e especialmente os nacionais. (5)

O estudo da Geometria – Geometria prática elementar – só viria a constituir “objecto do ensino primário complementar”25 (5) e, ainda assim, encarada, à semelhança da “aritmética e das ciências físico-químicas e histórico-naturais” especialmente aplicáveis à agricultura, à indústria e à astronomia descritiva (Ponto 2, Artº 10, Capítulo I). (Anexo 1).

Note-se que, no mesmo documento – Reforma de 1911 – a propósito da regulamentação para a admissão, frequência e encerramento das aulas e exames dos alunos candidatos e que frequentavam escolas ‘normais para o magistério’ se previa:

25

Nas Reformas de Ensino em Portugal – Reforma de 1911 definia-se que a) o ensino primário abrangia três graus: elementar, complementar e superior; b) o ensino primário elementar tinha a duração de três anos e nenhuma criança se poderia matricular se não tivesse sete anos ou mais; c) o ensino primário complementar tinha duração de dois anos e não podia ser frequentado por alunos com menos de dez anos e que, em simultâneo, tivesse feito exame (com sucesso) no ensino primário elementar e d) o ensino primário superior que tinha a duração de três anos e que não poderia ser frequentado por alunos com idade inferior a 12 anos e sem o exame do curso complementar.

a) Para admissão a realização de provas escritas e orais sobre diversos assuntos entre os quais se encontravam “resolução de um problema de aritmética e de um de geometria” (Reforma de 1911, Capítulo III, Artº 25, alínea d)) ou seja, não se falava de matemática, falava-se de forma separada em aritmética e em geometria; b) Para frequência, o plano de estudos previa, para o estudo da disciplina de

“Matemática e cosmografia”, para o 1º Ano, 3 horas num total de 23; para o segundo ano, 2 horas num total de 26 e, para o 3º Ano, 2 horas num total de 21, ou seja cerca de 10% da carga lectiva total e, no 4º Ano, já não se abordava qualquer assunto de matemática (19);

c) As provas escritas para os exames do 3º ano compreendiam uma “redacção sôbre algum assunto dalguma das seguintes disciplinas:

1. Língua e literatura portuguesa, pedagogia e história geral (uma hora); 2. Execução dum desenho à vista e resolução dum problema de desenho

geométrico (duas horas)

3. Um problema de física ou de química (uma hora);

4. Um problema de álgebra e outro de contabilidade (hora e meia)”. (Reforma de 1911, Capítulo VIII, Artº 81)

Ou seja, a geometria acabaria por desaparecer nem chegando a constituir elemento de avaliação daqueles futuros professores do 1º Ciclo do Ensino Básico. Não nos surpreende pois que, face à formação dos professores e tal como refere Porfírio (1998), a geometria fosse estudada, apenas, na então 3ª classe e que fosse, como referem outros investigadores (eg. Ponte, 2000a; Ponte & Serrazina, 2000; Ponte & Varandas, 2002), muito menos desenvolvida do que a aritmética.

Esta situação vigorou, segundo Ponte e Serrazina (2000), até aos anos 70/80, altura que ficou marcada pela matemática moderna que “sobrevalorizava a linguagem Lógica e as estruturas abstractas da Álgebra, ignorava a Estatística e reduzia ao mínimo a Geometria” (57) constituindo, ainda de acordo com os mesmos investigadores, “uma autêntica deriva

formalista que marcou negativamente várias gerações de alunos e professores”. (itálico no

original) (Ponte & Varandas, 2002: 19)

Apesar de se terem verificado outras reformas, uma em 1929 e outra em 1936 ambas representaram, na opinião de Matos (2002), um retrocesso. A primeira porque fixou a escolaridade obrigatória em tês anos quando a reforma de 1911 chegava a prever cinco anos (3 anos de ensino primário elementar e mais 2 de ensino primário complementar) e a

segunda porque determinou uma grande simplificação dos programas do ensino primário de 1936. (Matos, 2002)

Nos Programas do Ensino Primário Elementar, 1980, uma publicação do então Ministério da Educação e Ciência – Secretaria de Estado da Educação, pode ler-se:

Nos últimos anos, a aprendizagem da Geometria, em todos os níveis de ensino, atingiu entre nós índices extremamente baixos. Esta situação não pode deixar de ser preocupante pelas consequências negativas de tal fenómeno na formação integral dos alunos.

Com o presente texto programático pretende-se fornecer aos professores um conjunto de sugestões para iniciarem as crianças na exploração e organização do espaço. Sugere-se ainda que as actividades relacionadas com a geometria sejam introduzidas desde o início da escolaridade, simultaneamente com outras actividades.

Verifica-se, aliás, que, em regra, as actividades de geometria são muito do agrado das crianças o que reforça a necessidade de as desenvolver. (116)

Pode-se concluir que, já por esta altura, se reconhecia que a ausência de conteúdos de geometria nos planos de estudo deste nível de ensino poderia comprometer a formação integral dos alunos e se acreditava que, a geometria, constituía uma área de interesse para as crianças, o que reforçava a necessidade de a desenvolver em contexto escolar.

Analisando os factores de natureza curricular que mais contribuíram para os problemas da aprendizagem em matemática, Ponte et al. (2002) destacam três aspectos, um dos quais é, precisamente, o esvaziamento e desvalorização persistentes e sistemáticas de áreas da matemática que mais significado, utilidade e interesse poderiam ter para os alunos:

Portugal nunca teve uma grande tradição de desenvolvimento curricular em Matemática. Durante muitas décadas vigorou a política do livro único. [...] Até há cerca de dez anos, o currículo de Matemática português estava extremamente desfasado das necessidades dos alunos. (19)

Alguns dos professores que frequentaram os planos de estudo em vigor desde 1911 e outros planos de estudo posteriores que também não contemplavam o estudo da geometria foram os professores dos professores de hoje. Tendo tido um contacto mínimo com a geometria, motivá-los para a abordar, corresponde a “motivá-los para comer nabo cru, em vez de motivá-los para comer um sorvete” (Alves, 2002, disponível a 11/6/2002 em http://www.sic.pt/article1445visual4.html). Esta comparação foi utilizado por Ruben Alves (2002) a propósito do desajustamento que ele entende existir entre aquilo que a

Escola oferece e aquilo que considera ser as motivações das crianças mas ajusta-se ao que, de facto, parece ter acontecido, anos a fio, no caso da geometria.

Apesar de tudo, também não podemos dizer que, pelo menos ao nível do plano teórico, não tivesse havido reformas. Como dizem Loureiro et al. (1997):

O ensino da geometria tem sofrido muitas vicissitudes nos últimos decénios, tanto a nível elementar como superior, e não apenas em Portugal. O resultado final de tais vicissitudes tem sido, genericamente, a impreparação de docentes e discentes para as coisas da geometria e a criação de um espaço vazio ou «terra de ninguém» onde pululam as mais variadas teorias sobre os conteúdos e os métodos mais adequados para colmatar as grandes falhas na formação geométrica que todos ou quase todos, entretanto, reconhecem como graves e a necessitar de reparação urgente. (33)

Esta situação não foi muito diferente noutros países. A este propósito e referindo-se ao que se passou no Brasil, Reis (2002) afirma que “a Educação Matemática a partir dos anos 80, trouxe uma forte crítica à ausência de Geometria nas aulas de matemática em todos os níveis e à formação do círculo vicioso, no qual os estudantes não estudam Geometria no ensino básico, depois não vêem o suficiente nos cursos que formam professores de Matemática e portanto não se interessam por ensinar Geometria depois” (Disponível em 17/11/2002 em http://www.tvebrasil.com.br/salto/gq/gqtxt1.htm).

Jauregui (1981) referindo-se ao caso de Espanha afirma que:

Uma das críticas que mais repetidamente se tem feito ao ensino da matemática é a de que se tem descuidado muito o papel da geometria. Chegaram-se a escrever frases como esta: «A Matemática moderna é a morte da Geometria». Em torno deste tema têm-se promovido numerosos colóquios e discussões que conduzem, pelo menos, a um ponto em que as opiniões são unânimes: o ensino elementar da

geometria é uma questão de conflito que preocupa profundamente matemáticos e educadores. (itálico no original) (115)

Pavanello (2002), um outro exemplo, também considera que, por influência do movimento ocorrido nos anos 60, que vulgarmente é conhecido por Matemática Moderna e cuja influência se manifestou, fundamentalmente, nalguma ênfase desproporcionada nos aspectos numéricos e algébricos da matemática em detrimento da geometria, levou a que o ensino deste ramo da matemática fosse, gradualmente, abandonada nas salas de aula o que, em sua opinião, justifica que a investigação realizada nos anos 80 e 90 tenham vindo a demonstrar que “a geometria é pouco ensinada nas escolas porque muitos professores, principalmente aqueles que tiveram formação escolar realizada a partir desses eventos, consideram sua formação em relação a esse conteúdo bastante precária”. (119)

Tendo em conta que, “em cada época, há forças políticas e sociais e valores que se afirmam como importantes e que influenciam de modo mais ou menos directo os currículos” (Vale, 2000: 19) e que, a ‘reboque’, vão as políticas educativas e os seus protagonistas, a ausência prolongada de conteúdos significativos de geometria nos sistemáticos planos de estudo, deve-se, em parte, ao facto de a sociedade lhe não atribuir grande importância. Porém, existem outros motivos. Alguns investigadores (e.g. Guzmán, 2003; Porfírio, 1998) alegam que, até dada altura, de acordo com algumas correntes psicológicas, se considerou que os alunos que frequentavam os níveis de escolaridade mais baixos não tinham maturidade suficiente para que pudessem aprender conteúdos de geometria.

Seja como for, o declínio em termos de interesse, em parte justificado por uma alegada falta de maturidade dos alunos que frequentam níveis de escolaridade mais baixos, em parte justificado pela falta de interesse da sociedade por estes assuntos e em parte, ainda, devido à falta de formação adequada por parte dos professores, conduziu a uma ausência sistemática de geometria nos planos de estudo e, em consequência disso, a um progressivo abandono. Alguns professores, que talvez se tenham destacado da maioria, no caso de ‘sobrar’ algum tempo, lá iam dando, como diz Veloso (1998), “umas pincelada aqui e ali” (20), numa perspectiva ‘algébrica’, ignorando os seus aspectos mais positivos e os contributos que poderia representar em termos de educação matemática.