• Nenhum resultado encontrado

A Geomorfologia e a análise integrada da paisagem

4 METODOS E TÉCNICAS

2 BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

2.2 A Geomorfologia e a análise integrada da paisagem

A análise das paisagens de maneira integrada, ou seja, numa perspectiva do conjunto das estruturas da superfície terrestre e sua dinâmica, frequentemente tem tido como referencial básico a Teoria Geral dos Sistemas formulada nos anos de 1930 por Bertalanffy. No entanto, para Christofoletti (1980), a dinâmica do sistema Terra interpretada como um sistema aberto adveio com a Teoria do Equilíbrio Dinâmico, concepção teórica que foi originalmente formulada por Gilbert em 1877 e reativada por Hack em meados do século XX, sem desmerecer a importância das contribuições posteriores a essa teoria, efetuadas por Howard (1967). Ainda, segundo ele, parte do entendimento de que o equilíbrio dos sistemas geomorfológicos se daria como um ajustamento completo das variáveis internas da Terra, em relação às condições externas, equilibrando-se as forças internas e externas atuantes na evolução do modelado.

Períodos e épocas geológicas

Ciclos Fases Eventos

geomorfológicos

Sistemas geomorfológicos Movimentos

tectônicos e eustáticos Formas de relevo Clima dominante Processos Holoceno Atual Terraço

inferior

Forma atual do litoral: retomada de erosão sobre as planícies costeiras e fluviais Atual: quente e úmido no litoral e árido a semi- árido no sertão

Ações marinhas e eólicas sobre o litoral, escoamento superficial a fluvial, balanços morfogênese/ pedogênese ligados as variações climáticas. Movimentos eustáticos transgressões

Dunas – recifes, terraços marinhos e fluviais de 2 a 3 m; depressão e lagunas: pedimentos no sertão. Wurm- Visconsin Riss-Illi Ciclo Polifásico Paraguaçu Terraço médio, Terraço inferior

Formação das planícies costeiras, aprofundamento da drenagem sobre os Tabuleiros. Semi-árido a úmido. Retomada da erosão, pedimentação e erosão regressiva com aluvionamentos progressivos. Variações Gláucio- eustática do nível geral de base. Neotectônica

Dunas brancas, dissecação fluvial, terraços costeiros e fluviais em torno de 6 a 8 m. Pedimentos. Pleistoceno Médio e Inferior Superfície sertaneja e dos tabuleiros - Pediplanação

generalizada com recuo dos escarpamentos, exumação das superfícies antigas.

Semi-árido Escoamento superficial à torrencial em leitos temporários remanejando os materiais de alteração. Flexura continental Planícies de erosão degradadas, pedimento regional, superfície exumada. Pleistoceno Superior e Inferior, Mioceno, Albiano. Superfície Sul- Americana Superfícies Borborema e Cariris Velhos Inversão da topografia. Dissecação das zonas aplainadas anteriores. Sup. de aplainamento generalizado

Quente e úmido Dissecação fluvial.

Período de resistasia. Período de biostasia. Arqueamento. Epirogênese. Peneplano dissecado em altitudes de 200 a 900 m. Formação de um peneplano generalizado extenso. Cretaceo. Jurássico. Superficie Godwana Superfície Pós- Godwana Topografia regional fossilizada por sedimentos. Unifor- mização da topografia. Discordância regional.

Úmido Escoam. fluvial com sedi- mentação em depressões. Sedimentação Limítica c/fases em deltas e fases fluviais.

Reativação tectônica. Inicio da fase rift. Subsidência. Relevo em reativação. Peneplano.

Assim, a noção de equilíbrio dos geossistemas tem base no conceito de equilíbrio em geomorfologia, significando que materiais, processos e formas estão em constante interação, compondo um conjunto autorregulador. Nele toda forma de relevo corresponde ao produto do ajustamento entre materiais e processos, como resposta às condições do ambiente.

Partindo desse pressuposto, Christofoletti (1980, p.69) destaca que

em uma bacia hidrográfica as condições climáticas, litológicas, biogeo- gráficas e outras vão condicionar a estruturação de determinada rede hidrográfica e de determinadas formas de relevo. Alcançando o estado de estabilidade, a geometria da rede fluvial e da morfologia encontram-se em estado de equilíbrio e só sofrerão modificações se houver alterações nas variáveis condicionantes. [...] Assim, o estado de equilíbrio é independente do tempo, e as suas formas e organização não se modificam pelo simples transcorrer da variável temporal, mas até o limite de absorção das variações pela flexibilidade existente na estrutura do sistema.

Da mesma forma, os geossistemas e os demais sistemas geográficos não são imutáveis, mas estão sempre funcionando perante flutuações no fornecimento de matéria e energia. E então, ao ocorrer ruptura do equilíbrio pelo rompimento do limite crítico da faixa de absorção das variações, o sistema espontaneamente se modifica em busca de um novo equilíbrio. O autor ressalta, ainda, que no geossistema os diversos subsistemas, como relevo, solos, vegetação, etc, possuem escalas diferentes para se reajustarem às modificações do meio e, assim, esse novo estado de equilíbrio poderá oscilar da escala medida em anos até a de milhões de anos.

Dessa maneira, de acordo com Marques Neto (2008, p. 79) “a adoção da Teoria dos Sistemas pela escola anglo-americana, já preconizada pelos estudos de Horton, Strahler, Hack e outros, representou a ruptura definitiva frente ao paradigma davisiano”. Referindo-se à articulação entre a Teoria Geral dos Sistemas e a análise quantitativa/uso dos modelos, que teve grande impulso na Geomorfologia principalmente através dos estudos de bacias hidrográficas e canais fluviais, reforça a excelência de tal unidade de análise como unidade processo-resposta e corrobora a ideia da conveniência de utiliza-la como unidade espacial para os programas de planejamento e gestão. Isto porque, segundo o autor, o ajustamento das formas em face aos fluxos de matéria e energia vigentes no interior da bacia de drenagem é facilmente identificado em campo, viabilizando uma abordagem pautada na geomorfologia ambiental, mediante uma terminologia qualitativa. Tal concepção prevê ainda a capacidade de retroalimentação dos sistemas, afirmando seu caráter caótico e não-linear.

Essa perspectiva foi retomada por Abreu (2003), ao chamar a atenção para a contribuição da escola alemã na evolução da epistemologia da Geomorfologia, a partir do

paradigma de cunho sistêmico dos naturalistas, indicando como exemplo, os estudos de Gerasimov de 1946, utilizando a proposta penckiana como base conceitual para a análise estrutural e sua correspondente cartografia geomorfológica. Como outro exemplo dessa contribuição teórico-metodológica da Escola Alemã, esse autor aponta o desenvolvimento do conceito de Ecologia da Paisagem proposto por Carl Troll no final da década de 1930, e que se encontra na base do desenvolvimento da Geomorfologia Climática e Ambiental, numa postura historicamente permeada pelo pensamento holístico, herdado dos primórdios da sistematização da Geografia moderna de Humboldt. O efeito dessa abordagem se fez sentir em outros tipos de pesquisa, em especial naquelas em que a base analítica é a espacialização da interação dos elementos biofísicos, criando padrões indicativos de inter-relação entre eles, padrões este reconhecíveis na paisagem. E conclui que o conceito de geossistema foi finalmente concebido entre os muros da Escola Soviética e apresentado por Sotchava em 1962.

A Teoria Geral dos Sistemas introduz, assim, uma interpretação integrada da natureza em uma perspectiva sistêmica, na medida em que exige visões mais abrangentes que escapam da óptica reducionista. Nesta visão o todo deve ser considerado como sendo algo mais que a simples soma das partes e, ainda, que a fragmentação do objeto implica em um obscurecimento das relações de interdependência entre as partes de um todo e que constituem a realidade principal (BRANCO, 1989).

Para Tricart (1977) o conceito de sistema corresponde a um conjunto de fenômenos que se desenvolvem a partir dos fluxos de matéria e energia que tem origem a partir de uma interdependência, no qual surge uma nova entidade global, integral e dinâmica, permitindo assim uma atitude dialética, a partir da visão do todo embutida na análise sobre o meio ambiente. Já Ross (2006) chama a atenção para o fato de que num sistema aberto é possível identificar um sistema maior ou menor, a partir dos fluxos de matéria e energia, espontâneos ou ativados pela ação humana, regidos pela lei da física e da química, no qual definem a funcionalidade dinâmica (estável) ou desequilíbrio temporário (instável). Acrescenta ainda que o que diferencia um sistema de outro, é a intensidade dos fluxos e da dinâmica das trocas de energia e matéria, na atmosfera, hidrosfera, litosfera e a biosfera, incluindo a sociedade como componente que interfere de alguma forma na funcionalidade de um sistema.

A abordagem sistêmica influenciou vários segmentos do conhecimento científico, dentre eles a Geografia Física e, principalmente, a Geomorfologia, na medida em que o estudo da paisagem passou a ser realizado segundo sua funcionalidade e com interesse na organização resultante do jogo de interações e interdependência entre os elementos e atributos

que a constituem. O advento dos estudos geográficos à luz da análise integrada da paisagem e dos sistemas naturais foi, portanto, muito importante como contribuição para consolidar a abordagem sistêmica no âmbito da Geografia teórica e aplicada (MARQUES NETO, 2008). No entanto, segundo Augustin (1985), antes mesmo da consolidação da Teoria dos Geossistemas, a concepção de análise integrada do meio natural encontrava-se na base teórica e aplicada de vários estudos, embora de forma não explícita. Este foi o caso da base teórica que fundamentou a metodologia dos levantamentos integrados dos recursos naturais, que “foram originalmente concebidos na Austrália, Canadá e União Soviética, logo após a II Guerra mundial” e que tiveram como “fato comum entre eles a ocorrência de imensas áreas pouco conhecidas e a necessidade de informações para embasar o uso e ocupação de tais áreas” (AUGUSTIN, 1985, p. 147).

Os resultados desses levantamentos foram apresentados principalmente por mapeamentos de unidades espaciais que internamente apresentavam-se com relativa homogeneidade e externamente diferentes das demais. Foram denominadas de land e se constituiriam um elemento de integração dos componentes fundamentais do terreno: geologia, relevo, solo, vegetação e clima, cuja análise poderia indicar seu valor em termos de recursos naturais (AUGUSTIN, 1979).

Neste sentido, já havia desde a década de 1960 uma visão integrada da questão ambiental, na qual a geomorfologia tinha importância fundamental, uma vez que as avaliações integradas dos recursos naturais tinham por base as inter-relações ambientais de unidades do terreno. O meio ambiente, nessa perspectiva, é entendido como aquele que congrega “todo o conjunto de feições naturais de uma área, desde aquelas relativas ao meio físico (água, solo, substrato rochoso, forma de relevo, etc) até aquelas decorrentes do meio ecológico (espécies vegetais, e animais, habitats, etc)” (AUGUSTIN, 1985, p. 142).

Já no início da década de 50 do século passado, Christian e Stewart (1953, apud AUGUSTIN, 1979), adotaram essa perspectiva teórica na definição de metodologia em trabalhos pioneiros dos levantamentos integrados de unidades da paisagem na Austrália, realizados pelo The Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), através da Divisão de Investigação da Terra desse país. Mias tarde, Wright (1973) introduz como base o estudo de unidades da paisagem em que a menor unidade taxonômica corresponde às unidades espaciais denominadas de sítios geomorfológicos, que são morfologicamente uniformes, delimitados interna e externamente por descontinuidades nas encostas. Evidencia-se, então, o papel das análises geomorfológicas nesses estudos integrados uma vez que, apoiados no uso de imagens aéreas, proporcionam informações sobre as inter-

relações ambientais, envolvendo clima, sistemas de processos naturais, tipos de minerais, solos, características da água e da vegetação, principalmente porque os atributos geomorfológicos podem ser facilmente identificados, delimitados, mensurados e interpretados (AUGUSTIN, 1979).

Sobre a identificação e mapeamento dessas unidades, a autora aponta que “na abordagem do CSIRO, as unidades geomorfológicas maiores eram representadas pelos sistemas da terra (land systems). Estas correspondem a principal divisão regional para propostas de mapeamento territorial com vistas à utilização dos recursos naturais”, tendo

essa base conceitual sido utilizada para a delimitação espacial de unidades de sistemas ambientais, os land systems, adotada pelas pesquisas aplicadas canadenses e russas. Estas foram descritas por Solntsev (1962) como sendo ecocomplexos, uma vez que o desenvolvimento de seus componentes biológicos e hidroclimáticos são dependentes da base geomorfológica [...], definindo a paisagem como ‘uma montagem de pequenas unidades geomorfológicas repartidas em padrões regulares’ (AUGUSTIN, 1979, p. 7).

Da mesma forma, estudando a área da APA do rio São Bartolomeu, no Distrito Federal, com o objetivo de estabelecer um disciplinamento de uso dos recursos naturais, Pinto (1986-87), utilizou a geomorfologia como fator básico de integração, ao considerá-la uma resposta integrada do meio ambiente, por refletir os componentes mais estáveis, incluindo a cobertura vegetal. Conceitualmente, optou por uma fusão de correntes metodológicas anglosaxônica e francesa, com terminologia de origem inglesa, para definir as unidades da terra, ou seja, Land Systems (Sistemas de Terra) e Facets (Facetas) para, a partir da integração dos parâmetros do meio, identificar facetas que foram agrupadas em oito classes nomeadas de Sistema de Terra. Estas, por apresentarem características intrínsecas marcantes, viabiliza a tomada de decisões específicas em cada um desses sistemas (PINTO, 1986-87).

Essa base metodológica tem sido utilizada para análise e mapeamentos da dinâmica do terreno, tendo o relevo como eixo condutor, em escala de estados em diversas partes do mundo, encontrando-se no Brasil, dentre outros, mapeamentos geomorfológicos dos estados do Paraná (SANTOS et al., 2006) e de São Paulo (ROSS; MOROZ, 1997). Em outros países encontram-se mapeamentos voltados para a avaliação dos recursos naturais, dinâmica da paisagem e identificação de riscos naturais, como no sudoeste da Arábia (WACK, 1990) e Espanha (MARTIN-SERRANO, 2005).

Embora desenvolvida inicialmente para levantamentos integrados de recursos naturais, essa abordagem mostrou-se apropriada para análise da dinâmica do relevo, em um

contexto integrado da paisagem, no qual todos os elementos presentes nas formas de relevo são considerados e, portanto, identificados, analisados, interpretados e mapeados. Para isto, o mapeamento e seu instrumental são fundamentais para viabilizar a espacialização, tanto nas etapas iniciais da pesquisa, para permitir a identificação dos padrões recorrentes do relevo, como nas fases intermediárias, quando há necessidade de localizar e alocar os sistemas encontrados (LAUT; PAINE, 1982).

A discussão sobre o geossistema como unidade de análise espacial, ampliou-se por vários países do mundo. Na França, destaca-se o estabelecimento de uma classificação dos fenômenos geográficos que conceitua o Geossistema como o conjunto que abarca elementos ecológicos relativamente estáveis (embora não necessariamente tendo uma grande homogeneidade fisionômica), em escalas que compreendem alguns quilômetros até centenas de quilômetros quadrados, proposta por Bertrand (1972) e retomada por Bertrand e Bertrand (2007). Nessa perspectiva, dentro do geossistema há unidades fisionomicamente homogêneas na dimensão média de algumas centenas de metros quadrados, onde se desenvolve uma mesma fase de sua evolução geral. Pissinati e Archela (2009) sintetizaram os conceitos propostos por essa abordagem, considerando o geossistema como um complexo formado de relações naturais existentes entre os elementos bióticos e abióticos; o território como a forma de uso político, social e econômico do espaço geográfico; e a paisagem como uma expressão cultural, manifesta através da apropriação, da utilização e do significado que é atribuído aos elementos do geossistema, pela comunidade local. A utilização dessa base conceitual teve impacto sobre vários estudos, em especial nos mapeamentos geomorfológicos, de pesquisas básicas ou aplicadas.