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2.3 Retrato da conjuntura global atual: a crise

2.7.4 A globalização negativa

Observa-se que a sociedade atual é caracterizada pela insaciável sede de consumo, pelo bombardeio de informações, por avanços tecnológicos e pela globalização.

Todos esses elementos (consumo, informação, tecnologia e globalização) atuam simultaneamente na coletividade, evidenciando, ademais de aspectos positivos para a humanidade, forças negativas ligadas à volatilidade da economia em âmbito mundial.

Isso quer dizer que a integração econômica unificou o mundo, revelando efeitos não desejados e imprevistos da globalização. É a chamada globalização negativa.

A primeira das consequências mais evidentes da globalização negativa é a configuração do risco de origem humana como fenômeno social estrutural, ou seja, os riscos que decorrem da decisão de outros concidadãos e envolvem possíveis danos amplos, não delimitáveis, globais e irreparáveis. O tema referente aos riscos na sociedade será oportunamente retomado.

No entanto, neste momento é importante ressaltar que existe um imenso poder concentrado nas mãos dos investidores (detentores do capital, dinheiro necessário para investir)177. A mobilidade do capital distanciou ainda mais os verdadeiros tomadores de decisão (pessoas que investem) dos empregados, dos fornecedores e da própria comunidade onde está situada a empresa.

177

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

Novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais podem ser criadas e destruídas em qualquer parte do mundo e a qualquer momento. O fluxo de renda é flexível, o que gera completa desconexão do poder com as obrigações (referentes aos empregados, jovens, comunidades, gerações futuras, meio ambiente e condições de vida em geral).

Esse extraordinário poder revela uma assimetria extraterritorial, já que o investidor é livre para alterar, inadvertidamente, seu âmbito de exploração, transferindo os lucros e fluxos de renda e desprezando as consequências da decisão, pois os ônus da própria deliberação não o atingem diretamente.

Também identifica-se o fenômeno que Loretta Napoleoni178 descreve como “transformação do mundo moderno pela ação de forças econômicas que buscam locupletar-se sobre a rede de ilusões econômicas e políticas que aprisiona os consumidores num mundo de fantasia construído por bandidos emergentes”.

É fato que o acúmulo de fortunas sempre existiu, bem como alianças políticas para ampliar, restringir e manipular o poder, em benefício de quem detém o domínio econômico.

No entanto, a economia bandida179 amplia o espectro da corrupção, que evolui em escala global e passa a coexistir com valores opostos, dificultando ou mesmo impossibilitando sua identificação.

O consumismo invade todas as esferas da existência humana. Objetos, estilos de vida, aparências, artigos virtuais, enfim, tudo é exposto e desejado.

178

NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 18.

Esse mercado global encobre, amplia e fomenta a miscigenação entre a economia regular e as práticas nocivas – que podem ser qualificadas como crimes ou não. Os consumidores não sabem e nem têm como estabelecer essa interdependência. Segredos econômicos dos produtos consumidos são mascarados pela rede de ilusões comerciais.

O trabalho escravo impregna o mundo da moda180, ao mesmo tempo em que a combinação entre capital de alta tecnologia e mão de obra barata cria o ambiente propício para a internacionalização da produção - terceirização do serviço (outsourcing) e a transferência da produção para o exterior (offshoring).

Verifica-se a ampliação da indústria da pirataria, que atende à demanda global das réplicas. A propriedade intelectual é indevidamente multiplicada com utilização de tecnologia de reprodução abundante, barata e imediata.

Mas, além da propriedade intelectual, a falsificação já não é novidade no campo dos medicamentos e até de próteses humanas para substituição de dentes e ossos.

A China é mundialmente conhecida como a maior fornecedora de produtos piratas, mas atualmente também abastece os outros países com milhares de imigrantes ilegais181, que são absorvidos por uma rede étnica e

180

Recentes denúncias de trabalho escravo envolvendo a Marca Zara foram amplamente divulgadas pela imprensa. Consta que fornecedora da rede espanhola mantinha uma casa na zona norte de São Paulo com 16 trabalhadores sul-americanos em condições irregulares (reportagem veiculada pela revista VEJA em 17/08/2011 – Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/economia/trabalho- escravo-encontrado-na-rede-da-zara. Acesso em: 20 ago. 2011).

181

O trabalho forçado em países industrializados é principalmente uma consequência do tráfico de pessoas. O tráfico é um crime global que pode ser caracterizado como o lado escuro da globalização. Um crescente número de pessoas procura deixar seus países em busca de trabalho, enquanto os canais legais de imigração continuam restritos, especialmente para trabalhadores migrantes com pouca qualificação e mulheres.

Os traficantes têm conseguido explorar essa brecha e obter grandes lucros com essa exploração de trabalhadores migrantes. Eles visam as comunidades empobrecidas, subornam autoridades de aplicação da lei e levam pessoas para situações de trabalho forçado.

econômica clandestina, manipulada por traficantes de seres humanos, na qual devem trabalhar durante anos para saldar as dívidas e não podem se socorrer das autoridades locais. A eles é reservado o submundo da invisibilidade.

Relatório sobre tráfico de pessoas do Departamento de Estado Norte- Americano indicou condições socioeconômicas que levam ao tráfico, tais como pobreza, demanda por trabalho barato e baixo risco para os traficantes182.

Consequentemente, esses seres invisíveis mantêm outras redes de clandestinidades, como por exemplo a burla do sistema bancário formal, já que a repatriação dos lucros é feita em dinheiro, livre de tributação e sem deixar rastros183.

A invisibilidade e a violência também destroem a juventude de crianças e adolescentes pobres, que são usados para atrair estrangeiros envolvidos com o turismo sexual184.

O tráfico também pode ocorrer de forma menos organizada, com recrutadores, transportadores e empregadores agindo de forma independente e explorando trabalhadores migrantes irregulares para ganhos em curto prazo. Mesmo os trabalhadores migrantes regulares, como os contratadores e sazonais, podem ser vítimas da exploração do trabalho forçado. Fonte: site da Organização

Internacional do Trabalho. Disponível em:

http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/paises_industrializados.pdf. Acesso em: 18 out. 2011.

182

Fonte: site da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em:

http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/paises_industrializados.pdf. Acesso em: 18 out. 2011.

183 Em geral, os imigrantes ilegais utilizam o método conhecido como hawala ou cabo, que é, em

síntese, um conhecido sistema informal de transferência de fundos que não são registradas pelo sistema financeiro oficial. É um sistema rápido, com baixo custo operacional, simples e que não deixa rastros. Está baseado na confiança e é utilizado, quase que exclusivamente, para a prática de crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e financiamento ao terrorismo.

184

O turismo sexual como porta para o tráfico de pessoas é objeto de debate recente na Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico Internacional de Pessoas do Senado. O assunto chegou à CPI por meio de um caso específico ocorrido no Amazonas.

Em julho, o jornal The New York Times noticiou que quatro mulheres brasileiras indígenas da cidade de Autazes (AM) estavam processando a empresa norte-americana de turismo Wet-A-line por danos morais. A Wet-A-Line atuava no Amazonas em parceria com a empresa nacional Santana Ecofish Safari. Durante a investigação, a Polícia Federal teria constatado que, nas vendas de pacotes turísticos

para a pesca esportiva, a prostituição também estava incluída. Disponível em:

http://www.senado.gov.br/noticias/cpi-vai-investigar-turismo-sexual-como-porta-para-trafico- humano.aspx. Acesso em: 11 out. 2011.

Simultaneamente, outras crianças e adolescentes (aqueles que têm acesso à tecnologia) são cooptados para o “mundo dos games” e tornam-se multijogadores em massa (MMOs), viciados em desafios virtuais, especialistas em objetos mágicos que servem para ludibriar adversários de jogo.

Segundo dados da DFC Intelligence185, estima-se que o mercado global de videogames deva crescer de US$ 66 bilhões em 2010 para US$ 81 bilhões em 2016. A área de maior crescimento será a de entrega on-line de jogos186.

A crescente demanda alimenta, além do mercado negro global de softwares (pirataria), a expansão de depósitos humanos insalubres onde jogadores profissionais multiplicam e vendem moedas virtuais e outros objetos bizarros que fornecem acesso a novas fases dos games.

A propósito, as moedas virtuais lideram a preferência da criminalidade. Elas têm valor real, pois os comerciantes podem trocá-las a qualquer momento por moedas de verdade.

Foram criadas para driblar as leis do mundo real e garantir o anonimato de seus usuários por meio de sistemas seguros de pagamentos eletrônicos. Elas não são rastreáveis e funcionam de maneira simples: o usuário abre uma conta on- line e a carrega de moedas eletrônicas usando o cartão de crédito (ex. PayPal) ou mesmo por meio de conta bancária anônima (ex. e-gold).

Então, podem acessar tranquilamente jogos de azar ou mesmo pornografia on-line, pois os servidores, em geral, estão localizados em países estrangeiros,

185

DFC Intelligence é um centro de pesquisa de mercado e consultoria estratégica na área de entretenimento interativo e jogos on-line situado em San Diego/CA. Disponível em: http://www.dfcint.com/index.php. Acesso em: 10 out. 2011.

186

DFC Intelligence Forecasts Worldwide Video Game Market to Reach $81 Billion by 2016 - September 07, 2011. Disponível em: http://www.dfcint.com/wp/?p=312. Acesso em: 10 out. 2011.

com legislações mais permissivas, o que dificulta a identificação e inibe a atuação das autoridades locais.

A pornografia on-line é o maior negócio eletrônico do mundo. Estima-se que, a cada segundo, US$ 3.075.65 sejam gastos em pornografia e 28.258 usuários de internet estejam vendo pornografia. Nos Estados Unidos, a indústria pornográfica da internet impulsiona US$ 2,84 bilhões por ano. A indústria mundial vale US$ 4,9 bilhões187.

Acesso fácil a um conteúdo inapropriado também expõe indevidamente crianças e adolescentes. Segundo a pesquisa citada, a média de idade com que as crianças têm contato pela primeira vez com sites pornográficos é de 11 anos.

Desconhecimento e a ignorância são os ingredientes necessários para fomentar outros nichos de clandestinidade, como a chamada biopirataria. Trata- se, grosso modo, da apropriação ilegítima de lucrativos recursos biológicos retirados de diversas localidades.

Em suma, o caminho inverso da cadeia de consumo conduz a uma origem sombria de trabalho escravo, pirataria, falsificação, fraude, lavagem de dinheiro etc.

Mas, superado o obscuro fosso da clandestinidade, outras questões merecem reflexão, como o fomento à multiplicação dos lucros sem investimentos na produção de bens e sem crescimento econômico real.

187 Os dados foram retirados de reportagem da revista Época, publicada em 03 jun. 2010, que cita

como fonte o infográfico com estatísticas sobre pornografia na internet publicado pelo site MBA Online. Disponível em: http://colunas.epoca.globo.com/sexpedia/2010/06/03/domingo-e-dia-de-ver- pornografia-na-internet/. Acesso em: 14 out. 2011.

O oportunismo econômico envolve questões éticas e morais. A manipulação tendenciosa (ainda que não criminosa) traz questionamentos sobre o verdadeiro papel do Estado no âmbito econômico.

É cediço que a ausência do Estado cria o ambiente propício à expansão da criminalidade estruturada. A rede criminosa se amplia e se retroalimenta com uma ampla variedade de serviços e parcerias.

Cada pequeno nicho descoberto, invadido e explorado pela criminalidade do mundo virtual escancara as portas para as infinitas redes de outras atividades ilegais. O mercado secundário opera tranquilamente nesse universo desregulado, em que o sigilo vem com o território.

A expansão da criminalidade organizada transnacional expõe a fragilidade dos Estados e deixa claro que a expansão da economia foi desproporcional ao desenvolvimento de estruturas jurídicas de proteção dos direitos.

É certo que a propagação da criminalidade segue o ritmo acelerado da economia e se aproveita da globalização para consolidar organizações com fortes redes geográficas que preenchem o vazio da ausência de jurisdição estatal. Por vezes, essas organizações contam com as políticas de governos poderosos para potencializar a força.

Nesse contexto, surgem vozes sustentando que as formas de governo estão em fase de transição, ou seja, o Estado-nação baseado no bem-estar dos cidadãos será sepultado pelo Estado-mercado, onde as entidades políticas deixam de proteger os cidadãos e passam a assumir papel empresarial.

Isso quer dizer que, segundo os defensores do Estado-mercado, política e indivíduo passam a desempenhar novos papéis. Em recente entrevista publicada

na revista Época188, o americano Philip Bobbitt189 sustenta essa tese de que os Estados nacionais vão deixar de existir e serão substituídos por uma simbiose do setor financeiro, de entidades privadas e do governo. Será o Estado-mercado.

Philip Bobbitt ressalta que:

A mudança que ocorre de Estados-nação para Estados-mercado não é uma questão de vontade: é inevitável. É o caminho que estamos seguindo: a expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na movimentação de investimentos de capital impede os Estados de administrar nacionalmente seus problemas econômicos.

Contudo, a supremacia do Estado-mercado, nesses moldes, sepultaria definitivamente a dignidade humana.

Os protagonistas da era da globalização podem até imaginar que o capitalismo ocidental tomará toda a economia mundial e as pessoas e países enriquecerão de uma maneira eficiente, de acordo com o que é apresentado por Philip Bobbitt. No entanto, subjaz o evidente aspecto degradante e desumano desse modelo.

E algumas vozes já se levantam, ainda que de maneira tímida, para esboçar o início da frouxidão do cabresto capitalista.

188

"O Estado nacional não atende a sociedade"/ Entrevista/ Philip Bobbitt. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-

nacionais/brasil/epoca/2011/10/10/o-estado-nacional-nao-atende-a-sociedade/print-nota. Acesso em: 20 out. 2011.

189

Philip Bobbitt é professor de Direito Constitucional na Universidade do Texas. Autor de A guerra e

a paz na história moderna, um dos livros mais influentes da última década, Bobbitt foi consultor de

quase todos os presidentes dos Estados Unidos desde 1970. Disponível em:

http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-

nacionais/brasil/epoca/2011/10/10/o-estado-nacional-nao-atende-a-sociedade/print-nota. Acesso em: 20 out. 2011.

A humanização do próprio sistema financeiro ganha status dentre as questões relevantes de âmbito global. Neste específico ponto, Loretta Napoleoni190 indica que o sistema financeiro islâmico é o setor mais dinâmico e o que mais rapidamente cresce na finança global.

Baseado na filosofia do compartilhamento dos riscos, na qual o empreendedor deve dividir o risco com o tomador, esse sistema financeiro apresenta forte componente social. Os princípios religiosos do islã o direcionam de acordo com a crença de que não se deve usar o dinheiro como uma mercadoria em si mesma, destinada a criar mais dinheiro.

Segundo a Organização Islâmica Al Furqán191, o próprio Vaticano afirmou que o sistema financeiro islâmico poderá ajudar os bancos ocidentais em crise, como alternativa ao capitalismo. Ou seja, os bancos deveriam olhar para as regras éticas das finanças islâmicas a fim de recuperar a confiança dos seus clientes numa época de crise econômica global192.

Sem a pretensão de abordar maiores detalhes sobre o sistema islâmico, importa observar que se trata de uma novidade, rival em potencial do capitalismo ocidental, regulado por princípios estranhos à economia de mercado, relacionado a fatores religiosos e com apego à solidariedade.

Quiçá o sistema islâmico venha a substituir o atual modelo capitalista, revigorando o ciclo histórico-evolutivo com a sedimentação de nova ordem mundial calcada em sistemas financeiro e monetário de bases humanistas.

190

NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 263/289.

191

Al Furqán é uma Organização Islâmica de vanguarda, legal e independente, fundada em 21/4/81, que, voluntária e gratuitamente, trabalha em prol da defesa do Islão divulgando e editando Estudos Islâmicos em Portugal (Publica uma revista bimensal, livros, opúsculos, calendário Islâmico, autocolantes, cds, etc.). Disponível em: http://www.alfurqan.pt/quem.asp. Acesso em: 20 out. 2011.

192

Temas islâmicos – O vaticano elogia o sistema financeiro islâmico. Disponível em: http://www.alfurqan.pt/view_tema.asp?ID=122. Acesso em : 20 out. 2011.

A economia deve estar a serviço dos cidadãos. Para que isso ocorra, o sistema financeiro precisa abdicar da ideia de que o dinheiro pode criar o dinheiro, ou seja, uma economia a serviço dos cidadãos e não exclusivamente orientada para o dinheiro fácil à custa dos consumidores.

Há que haver um esforço conjunto e contínuo da humanidade para que os efeitos não desejados e imprevistos da globalização, a chamada globalização negativa, sejam contidos, ou pelo menos minimizados.

Evolução cultural, estruturada na ideia de ordem e estabilidade social, com amplo debate e conscientização sobre questões políticas, além da fixação de objetivos de longo prazo, são os primeiros passos para a reciclagem da história.

Retomar o sentido da grandeza do “ser humano” significa afirmar a dignidade de todas as formas, em todos os âmbitos e com todos os predicados a ela inerentes.