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2.3 Retrato da conjuntura global atual: a crise

2.4.4 O paradoxo do consumo

O século XX abrange um período crítico da história, uma fase revolucionária, marcada pela desorientação geral das novas gerações que buscavam incessantemente soluções urgentes para os problemas mais agudos do destino da humanidade.

A integração das regiões do mundo foi a maneira de expandir a economia e superar a crise do século XX, mas a preocupação pela produção em massa prevalecia sobre o consumo em massa.

Hoje, essa proporção está invertida, o consumo se expandiu a mercados potenciais, outrora ignorados, atingindo milhares de seres humanos. Predominam reflexões sobre a felicidade e o bem-estar.

Constrói-se a civilização do desejo. O trabalho já não é um fim que se confunde com a própria vida, mas um meio de ganhar a vida.

O consumo patológico é a forma encontrada para se tentar buscar a felicidade (agora individual), uma realidade que poderia ser comparada ao vício.

É certo que o desenvolvimento progressivo da sociedade, necessário e inevitável, revela efeitos maléficos, mormente, quando faz do homem prisioneiro de certos tipos de coerção.

Nesse aspecto, Zygmunt Bauman121 chama a atenção para o fato de que em muitos países, grande parte da vida social já é mediada eletronicamente, ou seja, a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida e a maior parte dela se passa na companhia de um computador, iPod ou celular e apenas secundariamente ao lado de seres de carne e osso122.

Hoje, o ideal de liberdade pode ser resumido em dois atos, o primeiro de antecipar o futuro, desfrutando agora de bens (adquiridos a crédito), o segundo

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Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia. Lecionou nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Grã-Bretanha. Atualmente é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.

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BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 8/9.

de desabilitar o passado, com a possibilidade de mudar de identidade, procurar novos começos e lutar para renascer123.

Nota-se uma condição profundamente paradoxal124, pois o consumidor de um lado é informado, livre, consulta, pesquisa e procura, mas de outro, está dependente do sistema mercantil, pois o mercado compreende o significado desse poder do consumidor e avança com agressividade para suprir essas novas “necessidades”.

Então, o homem-consumidor é atraído ao maravilhoso mundo da compra a crédito, onde um cartão plástico é o maior instrumento de poder (já que propicia as melhores sensações ao usuário: liberdade para gastar além de suas possibilidades econômicas momentâneas e felicidade por perder o senso do que representa o dinheiro, já que as cédulas monetárias não são manuseadas, ou seja, não é necessário calcular quantos dias de trabalho são necessários para adquirir um único objeto).

O consumidor do crédito é classificado e passa a compor listas de maus pagadores ou listas de bons compradores.

Torna-se hábito pegar dinheiro emprestado e viver a crédito, usufruindo hoje de um bem que só poderia ser adquirido no futuro e cuja contraprestação monetária não será mensurada em horas trabalhadas (ele não manuseia o dinheiro, portanto não faz a conexão entre os gastos e sua remuneração laboral).

123

A cirurgia plástica estética, tão difundida nos dias de hoje, representa o melhor exemplo da ruptura com o passado, pois o único objetivo é de ficar em dia com os padrões que mudam com rapidez, mantendo o próprio valor de mercado e descartando uma imagem que já perdeu sua utilidade ou seu charme, de modo que é substituída por uma nova imagem pública, com uma nova identidade, um novo começo. (BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 130).

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LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Ao mesmo tempo, descobre-se a rede, o mundo on-line. O internauta fica feliz por poder comprar qualquer objeto a qualquer hora, integrar redes sociais e ter a oportunidade de revelar despreocupadamente detalhes íntimos de sua vida, fornecer e disponibilizar informações pessoais, receber e dar conselhos e trocar fotografias.

Toda essa vibrante atividade oferece “le bonheur” imediato e fugaz, propiciado pela descoberta da novidade e desprezo da rotina. Sentimento que vicia e desperta anseio singular.

Outro aspecto que não pode deixar de ser mencionado é o da relação entre os padrões de produção e o consumo sustentável.

A ideia de consumo sustentável envolve a consciência a respeito dos limites que o planeta suporta, tendo em vista os impactos ambientais causados pelos padrões de produção e consumo atuais125.

O primeiro texto de âmbito internacional que efetivamente tratou de forma sistematizada do tema foi a Agenda 21, que estabelece em seu capítulo 4 (trata das mudanças nos padrões de consumo)126:

A pobreza e a degradação do meio ambiente estão estreitamente relacionadas. Enquanto a pobreza tem como resultado determinados tipos de pressão ambiental, as principais causas da deterioração ininterrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção, especialmente nos países industrializados. Motivo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção provocam o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios.

125 SODRÉ, Marcelo Gomes. Dignidade Planetária: o direito e o consumo sustentável in MIRANDA,

Jorge e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade

Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 1166.

A fim de que se atinjam os objetivos de qualidade ambiental e desenvolvimento sustentável será necessário eficiência na produção e mudanças nos padrões de consumo para dar prioridade ao uso ótimo dos recursos e à redução do desperdício ao mínimo. Em muitos casos, isso irá exigir uma reorientação dos atuais padrões de produção e consumo, desenvolvidos pelas sociedades industriais e por sua vez imitados em boa parte do mundo.

A ideia de consumo sustentável trouxe para a ciência do direito a necessidade de focalizar temas novos, sob a perspectiva de uma dignidade planetária.