3. Conjuntura e Direito
3.2 A proteção dos interesses menos individuais
Parece não restar dúvidas de que, na atualidade, o direito penal vai abrindo espaço no sentido de estender sua proteção a interesses menos individuais, porém de grande importância para amplos setores da população, como o meio ambiente, a economia social, as condições de alimentação, o direito ao trabalho em determinadas condições de segurança social e material – enfim, o que se vem denominando de interesses difusos209.
209
PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 5a. Ed. Barcelona: Reppertor, 1998, p. 135
apud STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso
(ÜBERMASSVERBOT) à proibição de proteção deficiente (UNTERMASSVERBOT) ou de como
não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=66&Itemid=40. Acesso em: 20 ago. 2011.
Em relação a esses interesses, Hugo Nigro Mazzilli210 esclarece que, como o interesse do Estado ou dos governantes não coincide necessariamente com o bem geral da coletividade, Renato Alessi entendeu por oportuno distinguir o interesse público primário do interesse público secundário.
O interesse público primário (bem geral) é o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo, e o interesse público secundário é o modo pelo qual os órgãos da Administração veem o interesse público. É o interesse da Pessoa Jurídica de Direito Público.
Portanto, esclarece que os interesses transindividuais estariam situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam a constituir interesse público.
Rodolfo de Camargo Mancuso211, por sua vez, esclarece que interesses supraindividuais, transindividuais ou metaindividuais são aqueles atinentes a um número razoável de pessoas.
Seriam, na realidade, interesses privados, de dimensão coletiva; eles não chegam a ser interesses públicos na essência, já que não têm relação absoluta com o bem da coletividade, mas também não são interesses meramente individuais, pois não afetam pessoas individualmente consideradas.
O meio ambiente, regulado há muito pelo direito administrativo, surge no horizonte do Direito Penal a título fragmentário e ensejando complexos
210
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 21ª edição, 2008.
211
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
questionamentos e discussões relacionados às novas áreas da sociedade de risco212.
Da mesma forma, dúvidas e divergências gravitam sobre a necessidade e a forma adequada de oferecer proteção eficiente ao cidadão-consumidor.
Se por um lado ele é considerado o grande fomentador de um sistema autofágico, por outro, ele não passa de vítima de um aparelho agressivamente direcionado à persuasão.
No Direito Brasileiro, a Constituição Federal de 1988 deve ser a base e o fundamento que conduz explicitamente o intérprete à conclusão segura de que é dever do Estado efetivar a proteção do homem.
Recorde-se que o Direito está voltado para a proteção de alguns bens. Esses bens “jurídicos” expressam em geral valores que são caros à sociedade em determinado tempo/espaço e, portanto, devido à sua relevância, são merecedores da tutela estatal.
Portanto, superado o aspecto referente à necessidade, questiona-se sobre a adequação da proteção, ou seja, a controvérsia ganha vulto quando se discute sobre a conformação da intervenção penal.
A forma de proteção estatal deve estar diretamente relacionada à importância que a Lei Maior e a sociedade atribuem ao “bem jurídico”, de modo que os mais importantes recebem proteção estatal, inclusive no âmbito do direito penal, que é a ultima ratio.
212
NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no Direito Penal: a acumulação e a acessoriedade in ANDRADE, Manuel da Costa e NEVES, Rita Castanheira (organizadores). Direito Penal Hoje: novos desafios e novas propostas. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 292.
Sob a perspectiva da Constituição Federal, primeiro aspecto a ser considerado é que o Brasil é um Estado Democrático de Direito Humanista, isso significa, em breves palavras, que: todos estão submetidos à Lei; a Lei deve expressar a vontade do povo; e os direitos humanos fundamentais devem ser efetivos, inclusive orientando a interpretação/aplicação de todo o sistema legal.
E como nenhum campo do direito está imune à vinculação constitucional, quando a Constituição estabelece os parâmetros do sistema jurídico-social há que corresponder à devida alteração no campo de conformação legislativa, já que o legislador e o intérprete não são livres para extrapolar.
E os bens jurídicos constitucionalmente relevantes devem ser identificados a partir de uma análise conjuntural do texto Constitucional.
Dessa forma, estreme de dúvidas que promoção da defesa do consumidor é atribuição Constitucional do Estado e, conforme determina o Inciso XXXII do artigo 5º da Carta Magna, integra o rol de direitos fundamentais:
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor
Também a ordem econômica recebeu especial atenção do Constituinte. Isso fica claro no artigo 170 da Carta Magna que, apesar de consagrar a forma econômica capitalista, retoma explicitamente a dignidade humana (assegurar a todos existência digna) e a justiça social como finalidades da economia de mercado.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade; IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
O meio ambiente é citado por diversas vezes no corpo da Carta Magna, sempre com ênfase no dever de proteção, no entanto, é no artigo 225 que a Constituição Federal lhe atribui de maneira clara a feição de direito fundamental.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público (…)
Outros aspectos relevantes dizem respeito à cidadania e à dignidade humana, que são fundamentos da República Federativa do Brasil.
De maneira sucinta, é possível relacionar a noção de cidadania hoje no Brasil213 essencialmente à dignidade humana. Ser cidadão é ter o poder/dever de
213
O conceito de cidadania é histórico, ou seja, seu sentido varia no tempo e espaço. No âmbito deste breve estudo, não se pretende apresentar um conceito elaborado e definitivo, mas apenas uma noção para subsidiar a análise do tema central.
participar ativa e efetivamente, de acordo com os instrumentos legalmente previstos, da vida política e social, na qualidade de ser humano integrante de uma coletividade.
Nesse contexto, verifica-se que em determinados casos, o “cidadão” pode ter seu poder/dever de participação prejudicado ou mesmo suprimido, por razões diversas, como por exemplo, pelas forças econômicas, pelas forças do mercado etc.
Nesses casos, é dever do Estado promover a reafirmação da cidadania e da dignidade humana, por meio de instrumentos jurídicos efetivos.
Isto é, com o devido respaldo na Constituição Federal e legitimado pela relevância do bem jurídico, o Direito Penal há que se firmar como uma alternativa viável e ser aplicado nos exatos limites da necessidade, evitando omissões ou excessos.