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A história da alimentação e os compêndios culinários

1. As mulheres da elite cafeicultora paulista e a escrita de receitas culinárias

1.1 A história da alimentação e os compêndios culinários

Comer e beber são fenômenos socioculturais que variam segundo o tempo e o espaço, seja na dimensão temporal, o processo histórico ou o tempo cronológico, medido, por exemplo, pelo ritmo das estações; seja, na dimensão

espacial, a interação dos distintos grupos sociais em uma dada sociedade, ou ainda no seio das nações ou regiões. Em consequência, o estudo dos saberes e sabores compartilhados no cotidiano está atrelado a considerações relativas ao ambiente cultural através do qual se dá a transmissão intergeracional de sua memória gustativa.

A alimentação compõe-se de um conjunto de práticas que envolvem desde a produção dos alimentos até as técnicas de preparo, os artefatos utilizados nessa tarefa e os serviços de mesa.1 O tema é muito amplo e comporta desde as análises econômicas – centradas na produção, estocagem, comércio e consumo – , até as nutricionais e biológicas, além das históricas e culturais – que focalizam o comer e a comida como elementos simbólicos, compreendendo as formas de prepará-los e de consumi-los, o acesso aos produtos alimentícios e a resultante constituição de hierarquias e identidades sociais.2 Nessa linha de raciocínio, María de Los Angeles Pérez Samper compreende a alimentação como uma necessidade vital de todo ser humano, mas também como símbolo econômico, social e cultural, por meios do qual se manifestam continuidades e mudanças.3

As pesquisas relacionadas à História e Cultura da Alimentação percebem a comida e o comer como elementos de um universo no qual se preservam, da forma mais habitual e até mesmo afetiva, tradições sociais, sejam elas componentes de um todo coletivo ou, mais particularmente, do espaço familiar.4

Conforme apontou Daniel Roche, a História da Alimentação configura um campo de estudo específico e original porque “é uma história em que se encontram a natureza e o humano, uma natureza transformada, já histórica e cultural”, em que se lê o resultado de um imenso trabalho de incorporação ao

1

ALGRANTI, Leila Mezan. À mesa com os paulistas: saberes e práticas culinárias (séculos XVI- XIX). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011. http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300482888_ARQUIVO_AMESACOMOSPAULI STAS2versaoAnpuh.pdf>. Acesso em:03/12/2011.

2

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra; CARNEIRO, Henrique. A história da alimentação: balizas historiográficas. Anais do Museu Paulista. História e cultura material. Nova Séria, pp.9-91, jan./dez.1997.

3

PÉREZ SAMPER, María de los Ángelez. Mesas y cocinas en la España del siglo XVIII. Espanha: Ediciones Trea, 2011. p.9.

4

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Por uma história da alimentação. História: Questões & Debates, Curitiba, v.14, n.26/27, pp.154-171, jan/dez, 1997.

processo alimentar de inúmeros produtos vegetais e de domesticação de espécies animais, que resultam em práticas alimentares unificadas nos diversos continentes. “Por fim, é talvez o setor em que as necessidades, as formas simbólicas e as oposições de classes se cruzem com mais intensidade.”5

Por outro lado, concordamos com Solange Demeterco, quando esta assinala que o alimento está presente em todos os momentos e em todas as instâncias da vida social, e que possui uma significativa carga simbólica a qual termina por determinar regras e valores de uma sociedade.6

Assim, ao ser colocada uma questão aparentemente tão simples – por que e como as pessoas comem? – ela pode conduzir-nos a uma consideração mais ampla, de que o ato de comer não se limita a uma necessidade biológica de todos os seres vivos, mas compreende, fundamentalmente, o pensar os fundamentos simbólicos implícitos nesse ato.

Quando Brillat-Savarin observou – "diz-me o que comes e te direi quem és", ou: “a descoberta de um manjar causa mais felicidade ao gênero humano do que a descoberta de uma estrela”7 – ele cunhava duas frases de um apreciador da gastronomia, que buscou em seu estudo filosófico distinguir o caráter essencial do prazer da mesa para o homem. A procura pelo significado da alimentação na História da Humanidade é importante para que se possa distinguir o ato de comer – no qual o homem não seria diferente das outras espécies animais quanto à necessidade de nutrir-se – da ênfase no prazer de comer, especificamente humana. Segundo Savarin, a hospitalidade, o aperfeiçoamento das línguas e os rituais e preceitos que envolvem a alimentação muito provavelmente surgiram durante as refeições.8

5

ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo séc.XVII-XIX. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro, Rocco, 2000. pp.293-294.

6

DEMETERCO, Solange M. da Silva. Sabor e saber: livros de cozinha, arte culinária e hábitos alimentares. Curitiba: 1902-1950. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2003.

7

BRILLAT-SAVARIN, Jean-Anthelme. A fisiologia do gosto. (1825). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.15.

8

Se considerássemos que as pessoas comem apenas por uma necessidade biológica, poderíamos caminhar para um estudo da alimentação sob o ângulo da saúde, da medicina social, da higiene privada e pública, da ingestão de calorias e proteínas. Essas abordagens não são objeto deste estudo. Não pretendemos, tampouco, tratar dos tabus ou dos distúrbios alimentares, como a anorexia ou bulimia. A excessiva busca pelo corpo perfeito – como observou Fischler – tem impelido as pessoas, principalmente mulheres, a fazer do alimento um vilão da saúde, trazendo em consequência tais distúrbios alimentares.9

O que nos interessa, precipuamente, é analisar a alimentação do ponto de vista de seus significados simbólicos para os indivíduos e grupos sociais. A despeito do fato de que a comida seja o sustento e o comer um ato vital, sem o qual não há vida possível, apenas o homem cria práticas comportamentais e ritualísticas em torno da alimentação – tais como a escolha dos alimentos, os cuidados especiais com o preparo e a decoração dos pratos, o arranjo da mesa nas refeições e regras para a recepção dos convivas. Por meio dessas práticas o homem atribuiu significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que transcende a simples metabolização dos alimentos pelo organismo.10

Acompanhar o dia a dia das senhoras donas de casa, no interior de seus lares, é uma das formas possíveis de reconstituir as práticas alimentares e apreender as manobras conscientes e inconscientes dos estratos sociais aos quais pertencem e que contribuem para a implantação de modos de vida que se querem símbolos do progresso, modernidade e da civilização. Preparar e servir a comida constituem atos sociais que combinam saberes, sabores, odores, olhares e diálogos, além de atributos de beleza e elegância.

Circunscrever o nosso estudo ao período que vai da década de 1860 a 1940 – tendo início, portanto, no alvorecer do Segundo Império – não significou

9

FISCHLER, Claude; MASSON, Estelle. Comer. A alimentação de franceses, outros europeus e americanos. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. pp.326-327

10

MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antroplógicos, ano 7, n.16, pp.145-156, dezembro 2001. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832001000200008. Acesso em: 2011; FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet. Uma história da gastronomia. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. p.20.

uma escolha aleatória. Levamos em consideração as alterações econômicas pelas quais passava o país, com a eclosão do cultivo do café no Sudeste brasileiro, que veio suplantar a hegemonia do ciclo açucareiro, cujo protagonista até então tinha sido o Nordeste Brasileiro, e a economia aurífera em decadência nas Minas Gerais. A cafeicultura transformou o cenário nacional, dando destaque às províncias em que prosperava a lavoura cafeeira, a partir do Vale do Paraíba. O recorte histórico que elegemos constitui a época em que a cidade de Campinas, locus de nossa pesquisa, beneficiou-se dessa expansão. A urbe e seu entorno experimentaram um processo de modernização urbana que se refletiu na implantação de serviços de infraestrutura, em mudanças na arquitetura, nas formas de morar e também nas regras de sociabilidade, processos que evidenciavam seu apogeu econômico frente às outras cidades do Estado de São Paulo. Sua localização privilegiada e a malha ferroviária então implantada, agilizaram a comunicação com a capital da província e o porto de Santos, fortalecendo sua função agrícola e comercial.11

Foram também evidentes as transformações no comportamento das famílias da elite, como apontam estudos sobre a cultura material no município. Residências urbanas e rurais – as sedes das fazendas – em Campinas, a partir de 1840, passaram tanto por modificações arquitetônicas quanto pela maior sofisticação da decoração, agora luxuosa, de seus interiores. Os modos de morar e de conviver alteraram-se significativamente pela influência dos costumes europeus, amplamente difundidos entre seus moradores, os quais, ávidos pelo reconhecimento social de seus pares, abriram os salões de suas casas, oferecendo jantares, banquetes e bailes à “boa” sociedade campineira.12

11

BAENINGER, Rosana. Espaço e tempo em Campinas: migrantes e a expansão do pólo industrial paulista. Campinas: Centro de Memória, NEPPO-Unicamp, 1996. pp.13-33(Coleção Campiniana, 5).

12Consideramos como elite campineira a formada pelos “Barões do Café” e as famílias ligadas à

fundação da cidade que, mesmo não tendo sido agraciadas com títulos nobiliárquicos, compunham esse segmento social e econômico. Eles possuíam uma grande quantidade de terras produtivas e de imóveis urbanos. Destacaram-se na nobiliarquia campineira um visconde, uma viscondessa, um marquês, nove barões sendo dois deles da família Ferreira Penteado, que ostentavam os títulos de Barão de Itatiba e de Ibitinga, pai e filho respectivamente, sendo parentes distantes de Barbara do

Na virada do século XX, a cidade continuou se desenvolvendo, agora em ritmo mais lento, tendo em vista a crise da cafeicultura que se exacerbou com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. No entanto, desde finais do XIX, os cafeicultores vinham expandindo suas atividades econômicas para além da produção agroexportadora, diversificando-as para o grande comércio de produtos agrícolas, manufaturas, indústrias e os créditos com garantia hipotecárias.13 No caso de Campinas, com a introdução da energia elétrica como força motriz, em 1905, surgiram indústrias têxteis, de chapéus, fábricas de fogões, de artefatos de ferro, de papéis, cerâmicas etc. Em consequência, verificou-se um substancial aumento do número de estabelecimentos comerciais.14

A crise que assolou a economia cafeeira a partir do final do segundo decênio do século XX foi responsável por transformações significativas nos hábitos familiares. Assim como os Camargo Penteado – ascendentes de Barbara, personagem deste estudo –, muitas famílias da elite cafeicultora campineira perderam suas fazendas e precisaram viver do trabalho autônomo, como médicos, advogados e em outras profissões liberais, ou até mesmo como assalariados, nas estradas de ferro ou nas indústrias que começavam a se instalar nas cidades da região. Essas transformações acarretaram mudanças internas nas casas urbanas, que pouco a pouco foram remodeladas e se tornaram menores. As donas de casa pertencentes essa aristocracia já não podiam contar com “muitas mãos” para auxiliar nos trabalhos domésticos. Contudo, a introdução de novos utensílios no espaço da cozinha, facilitou sobremaneira o trabalho das mulheres. Entretanto, nem todas ficaram restritas aos cuidados da casa. A partir da criação de escolas normais muitas dessas mulheres passaram a lecionar ou, com a abertura de

Amaral. Camargo. Figuravam ainda nessa elite os comerciantes, industriais e profissionais liberais, compostos em sua maioria por estrangeiros. ABRAHÃO, op.cit., 2010. pp.148-177.

13

LOVE, Joseph. A Locomotiva. São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LOVE, Joseph. Autonomia e interdependência: São Paulo e a Federação Brasileira, 1889-1937. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. 4.ed. São Paulo: Difel, 1985. Tomo III: O Brasil Republicano, pp.53-75. ABRAHÃO, Fernando Antonio. “Padrões de riqueza e mobilidade social na economia cafeeira: Campinas, 1870 – 1940.” In: X Congresso Brasileiro de História Econômica. Juiz de Fora: Universidade de Juiz de Fora, 2013.

14

BADARÓ, Ricardo de Souza Campos. Campinas, o despontar da modernidade. Campinas, Centro de Memória-UNICAMP, 1996. (Coleção Campiniana). pp.34-5. ABRAHÃO, op.cit., 2013.

oportunidades ao trabalho feminino, puderam desenvolver atividades externas ao lar.15

Essas inovações na direção da funcionalidade tiveram consequências nas escolhas alimentares, porque o tempo despendido no preparo das refeições foi reduzido. São tempos de mudanças econômicas, culturais e sociais. As famílias da elite, antes acostumadas a viver em amplas casas e a contar com vários empregados, a partir da diversificação da economia e do início da industrialização, tiveram seus hábitos cotidianos transformados. Residindo em casas menores, sem dispor da mesma criadagem, o ritmo do trabalho doméstico se alterou e novas práticas alimentares foram introduzidas. As mulheres tiveram, assim, de se adaptar aos novos tempos. Barbara, atenta a essas mudanças, alertou em uma de suas receitas para a questão da praticidade colocando ao final das instruções para o preparo da “Pessegada” (“Bromil”) o seguinte comentário: “[...] Chamamos a atenção para esta receita, por dar um resultado muito satisfatório, é uma receita prática.”16

As transformações econômicas e políticas ocorridas no Brasil desde o final do século XIX, – com destaque para a abolição do trabalho escravo e a queda do Império – fizeram-se refletir na sociedade paulista e campineira. E as elites encontraram nos signos exteriores como a vestimenta, os modos de comportamento em ocasiões públicas e as maneiras à mesa uma forma de preservar o seu pertencimento social, reforçada a todo instante pela exteriorização dos gestos, usos e costumes próprios.17

Nas palavras de Claude Fischler e Estelle Masson

A comensalidade é ao mesmo tempo, um meio de inclusão e de exclusão social. (...). Ela fecha o círculo dos íntimos, fecha as portas do privado em volta dos convivas ou manifesta de maneira

15

SILVA, João Luiz Máximo. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. CARNEIRO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, Fapesp, 2008.

16

Arquivos Históricos-CMU. Barbara do Amaral Camargo Penteado (CBACP). Caderno de receitas de Barbara do Amaral Camargo Penteado. Livro 1.

17

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. A moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. PADILHA, Marcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo dos anos 20. São Paulo: Annablume, 2001.

pública a ordem e o status – públicos – dos que são admitidos a participar da refeição.18

A valorização desses modelos de cortesia e civilidade, pensados aqui sob o enfoque do processo civilizador na conceituação de Norbert Elias, adotados pelas cortes europeias, principalmente a francesa, ganharam destaque junto às famílias das elites no Brasil. O que se convencionou chamar “modos e maneiras civilizadas”, relacionados aos comportamentos prescritos para os prazeres da mesa, foram utilizados como estratégias de distinção e pertencimento social.19

A raiz histórica desses costumes no Brasil pode ser encontrada na transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e na abertura dos portos brasileiros “às nações amigas”. É quando se observa o surgimento de uma nova sociabilidade, explicitada durante as festas realizadas nos recém-construídos salões imperiais e nas grandes residências, que vieram alterar os costumes da “boa sociedade” do Rio de Janeiro do século XIX. Esses modelos de bem estar, de bem receber e de bem servir foram copiados pelas famílias das elites de Campinas, as quais começaram também a abrir os salões de suas casas para oferecer jantares e banquetes à sociedade de seus iguais.20 É nesse contexto, que vamos encontrar as personagens de nossa pesquisa – as mulheres pertencentes a essa elite –, às quais cabia exercer o destacado papel de anfitriãs.

Na historiografia moderna, a alimentação representa uma área de investigação recente nas Ciências Humanas e conforme observou Ulpiano Bezerra de Menezes e Henrique Carneiro no estudo “História da alimentação: balizas historiográficas”, o interesse pelo tema, pelo próprio sentido de dar continuidade à vida, sempre foi objeto de atenção nas análises de cunho biológico, econômico, social, cultural e filosófico. Estas categorias estabelecidas pelos

18

FISCHLER; MASSON, op.cit., 2010. p.123.

19

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. 2.ed. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

20

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A distinção e suas normas: leituras e leitores de manuais de etiqueta e civilidade – Rio de Janeiro, século XIX. Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1-2, pp.139-152, jan./dez.1995.

autores explicam que os enfoques mudam a própria natureza do objeto de atenção.21

O ato de comer exerce simultaneamente uma função biológica e social.22 Assim História da Alimentação tem estimulado antropólogos, sociólogos, médicos, nutricionistas e historiadores a refletirem e produzirem conhecimento sobre como, onde e com quem se come, tanto na atualidade como em sociedades passadas.

Entre os sociólogos da alimentação existe o consenso de que a relação entre os seres humanos e os alimentos é complexa, tendo eleito como uma das questões centrais de suas pesquisas nesse campo as transformações e permanências das práticas alimentares. Para Jean-Pierre Poulain, a importância que a temática assumiu para a Sociologia é evidente. Por isso, em suas análises buscou por respostas à questão: “[...] De que forma os homens e mulheres concebem a satisfação das suas necessidades alimentares? ”.23

Nos trabalhos de Claude Fischler a simbologia da alimentação é uma temática. Ele destaca que o homem nutre-se também de imaginário e de significados, partilhando representações coletivas. Para esse autor “[...] nós nos tornamos o que comemos”.

Comer: nada de mais vital, nada de tão íntimo. "Íntimo" é o adjetivo que se impõe: em latim, intimus é o superlativo de interior. Incorporando os alimentos, nós os fazemos ascender ao auge da interioridade. [...] O vestuário, os cosméticos, estão apenas em contato com o nosso corpo; os alimentos devem ultrapassar a barreira oral, se introduzir em nós e tornar-se nossa substância íntima.24

Temos convicção de que não se pode abordar a alimentação do ponto de vista do prazer à mesa sem nos voltarmos para o trabalho de Brillat-Savarin, A

21

MENEZES; CARNEIRO, op.cit., 1997. pp.9-91.

22

MENEZES; CARNEIRO, idem, 1997. pp.9-91; SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates, Curitiba, n.42, pp.11-32, jan/jun, 2005.

23

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. lorianópolis: ed. UFSC, 2006. Além dos historiadores culturais, os sociológos, antropólogos e nutricionistas têm propiciado um diálogo interdisciplinar que em muito enriquece o campo da História da Alimentação. GOODY, Jack. Cocina, cuisine y clase. GEDISA, 1995. MINTZ, Sidney W. Sabor a comida, sabor a libertad. Incursiones en la comida, la cultura y el pasado. México: Ciesas, Ediciones de la Reina Roja, CONACULTA, 2003.

24

FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Le goût, la cuisine et le corps. Paris : Éditions Odile Jacob, 1993. p.8.

fisiologia do gosto (1825). Trata-se de obra pioneira, por ter aberto as portas para pensar a questão da gastronomia. Nesse importante estudo, Savarin abordou a temática sob um olhar cultural, de maneira a distinguir nutrição de gosto, adentrou à comensalidade, às gestualidades, vislumbrando, enfim, a alimentação enquanto manifestação da cultura, aspecto apontado em sua obra por Carlos Antunes dos Santos.25

De acordo com esse mesmo autor, cada vez mais historiadores culturais engajados nas novas e fecundas vias da interdisciplinaridade têm sido atraídos pela História e Cultura da Alimentação.26 Mas a formação de uma tradição historiográfica no campo alimentar deve ser remontada à França, onde essa temática constituiu-se como objeto de pesquisa histórica, nas décadas de 1960- 1970. Foram os trabalhos inovadores de Fernand Braudel, na sua abordagem de aspectos da sobrevivência humana – habitação, vestuário e alimentação –, que a História da Alimentação ganhou “[...] fisionomia definitiva no campo da pesquisa histórica.”27

Segundo Braudel, os historiadores deveriam preocupar-se com "as estruturas da vida cotidiana". Ele entendia que seria possível pensar o funcionamento da sociedade a partir do enfoque alimentar, por meio da variedade de suas dietas, procurando determinar de que forma o alimento nutre tanto os indivíduos quanto a sociedade na qual ele está inserido, e como as identidades alimentam e definem grupos sociais.28

Influenciados, inicialmente, pelos antropólogos, os historiadores passaram a estudar as preferências alimentares dos povos, as escolhas dos alimentos, situando a ingestão de calorias na perspectiva das práticas culturais, religiosas e estéticas. Entretanto, a partir da década de 1970, os historiadores culturais 25 SANTOS, op.cit., 2005, p.13.