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Permanências, descontinuidades e inovações

3. As escolhas alimentares de Custodia, Anna Henriqueta e Barbara

3.1 Permanências, descontinuidades e inovações

Os manuscritos domésticos, por essência íntimos, foram pensados para uma circulação privada, na qual as necessidades do labor alimentar diário ou festivo pudessem ser contemplados. Nesse sentido, suas autoras – mulheres da elite de cafeicultora entre os anos de 1860 a 1940 – fizeram suas escolhas

pensando que em algum momento poderiam fazer uso prático de seus escritos – perpetuando assim um saber que lhes fora transmitido – ou, simplesmente, com o intuito dar continuidade a uma prática de escrita feminina própria do período estudado que lhes era acessível.

Os registros de Custodia, Barbara e Anna serviram para perpetuar receitas que vinham resistindo ao longo de gerações, consagradas pelas tradições familiares e de classe, ao passo que outras, simplesmente desapareceram, numa demonstração de que a cozinha não é apenas espaço das criações e repetições, mas também de descontinuidades.1

Instruções simples e baratas ao lado de outras mais elaboradas foram minutadas por essas três mulheres, numa compilação tão diversificada quanto o gosto e as escolhas de cada uma. Chamamos de simples uma receita que, para ser confeccionada – um doce de frutas, por exemplo – bastava a essas mulheres se dirigirem aos pomares de suas casas para ter em mãos o ingrediente necessário, fresco e sem custo financeiro. Em contrapartida, outras iguarias exigiam para sua confecção uma infraestrutura exterior ao lar. Referimo-nos ao aparato comercial e logístico – das operações de importação ao transporte de mercadorias – necessário para a obtenção dos ingredientes adequados, oriundos de outros países ou de outras províncias brasileiras, como por exemplo, o queijo de Minas.

As fontes para a confecção dos cadernos de receitas organizados por Custodia, Barbara e Anna vieram de outros receituários em circulação à época e das trocas entre mulheres de seu convívio cotidiano e social. Arte de cozinha, obra clássica de Domingos Rodrigues, e livros mais recentes de autoria de mulheres paulistas, contemporâneas das autoras e com vínculos com Campinas foram as principais inspirações. Entre as autoras contemporâneas, merecem destaque os livros de Lucia Queiroz (1916) e Sylvia Ferreira de Barros (1931) e, em menor medida, Honoria C. Martins (2.ed, 1916), conforme mencionado no último item do segundo capítulo.

1

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A comida como lugar de história: as dimensões do gosto. História: Questões & Debates. Editora UFPR, n.54, jan./jun. 2011. p.114.

As diversas leituras do corpus documental por nós empreendidas, com diferentes objetivos – como fizemos no capítulo anterior –, permitiu-nos uma aproximação com os registros que conduziram à elucidação de algumas formas de classificar as receitas anotadas.

Os livros de cozinha como, por exemplo, o Cozinheiro Nacional, trazem as receitas ordenadas de maneira diversa da empregada nos cadernos manuscritos que estamos estudando. Eles as organizam à semelhança com que estão dispostos os pratos de cardápios formais, tanto para o serviço à la russe quanto para o à la française. É a seguinte a sequência: carnes, aves, peixes, legumes, leite e ovos. Ou como fez outra autora paulista, Eulalia Vaz, que separou as instruções em doces, gelados, iguarias (petiscos) e diversos petiscos.2 Ou ainda, Sylvia Barros, cujo tratado culinário foi dividido entre “Pratos de sal” e “Doces, licores e refrescos”.3

Custodia, Anna e Barbara, diferentemente, não estruturaram seus cadernos promovendo a separação das receitas entre doces, salgados, carnes, aves e peixes. A singularidades dos manuscritos nos fez optar por uma classificação das receitas de comida em seis categorias: doces, salgados, bebidas, agridoces, neutros e outros. Incluímos na categorização de neutros alguns biscoitos e massas por não apresentarem um sabor definido. Tais biscoitos lembram os atualmente denominados cream cracker. As massas serviam de base para a confecção de tortas doces ou salgadas.4 Na categoria “outros”, ordenamos os temperos e os ensinamentos gerais.

Essa leitura final – se assim podemos chamá-la – considerou as perpetuações e descontinuidades das instruções culinárias, os modos como eram

2

VAZ, Eulalia. A Sciencia no lar moderno correcta e augmentada, livro útil e necessário as boas donas de casa. 4.ed. São Paulo, 1912.

3

[BARROS, Sylvia Ferreira de]. A Boa Dona de Casa por uma campineira. [São Paulo]: Est. Gráfico “Rosslillo”, 1931.

4

Para a separação das receitas neutras consideramos os ingredientes um a um e sua consequente combinação. É claro que o gosto, o sabor, em alguns casos pode ser uma sensação subjetiva. Qualificamos o polvilho e o fubá, por exemplo, como ingredientes que por si só não definem um prato como salgado ou doce. Imaginemos que durante a escrita de uma receita Custodia possa ter omitido o açúcar ou o sal. Mesmo assim preferimos manter a categorização estabelecida.

preparadas e servidas, as semelhanças com os registros dos livros de cozinha e os títulos dos pratos. Nomear as iguarias segundo suas origens tem dupla significação, na opinião de Luce Giard. Receitas simples, se nomeadas no âmbito privado e destinadas às donas da casa; e as sofisticadas, de cunho prestigioso, se constasse dos cardápios de restaurantes.

Acrescentamos mais um elemento à categorização de Giard: as nomenclaturas que lembram acontecimentos políticos de épocas passadas ou contemporâneos; as que homenageiam personagens públicas; os nomes espirituosos e de localidades, como por exemplo, o “Bolo da imperatriz”, “Ares de Berlim” ou “Beijinho de moça corriqueira”, entre outros. Outra constatação feita por nós a partir da consulta aos cadernos de receitas de Custodia, Anna Henriqueta e Barbara é a de que nem sempre suas autoras primaram pela modéstia – no sentido proposto por Giard – quando nomearam suas instruções culinárias. As receitas de algumas iguarias não eram vazadas em linguagem simples e direta, como é o caso de “Timballe” e “Galantine de vollaile” que inclusive foram escritas em francês – hábito corriqueiro no meio social no qual viviam essas mulheres visto que esse idioma era ensinado a elas, ou ainda, porque as copiavam de livros estrangeiros.5

Com o objetivo de visualizar globalmente as receitas anotadas por Custodia, Anna Henriqueta e Barbara, elaboramos a Tabela 2 que permite verificar as quantidades de pratos receitados, por autora, segundo as categorias pré- estabelecidas. Indicamos as quantidades e a porcentagem correspondente aos cadernos, lembrando que Custodia preencheu quatro manuscritos, Anna, três, e Barbara apenas um. A análise dos dados dessa Tabela indica um total de 1.013 instruções anotadas pelas autoras. Desse total, os doces somaram 80,3%, os salgados representaram 14,6%, as instruções neutras e agridoces totalizaram 2,5%, as bebidas 1,7% e outros 1%.

5

GIARD, Luce. “As regras da arte”. In: CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano. 3.ed. Tradução de Ephraim F. Alves e Lúcia Endlich Orth. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. pp.294-295. V.2: Morar e cozinhar. FREYRE, Gilberto. Açúcar. uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p.86.

Tabela 2 – Comparação da quantidade de receitas entre os cadernos de receitas de três

mulheres da elite cafeicultora (1863-1940), em números de absolutos e percentuais.

Tipos Custodia Anna Henriqueta Barbara Total %

Doces 204 (87,1) 210 (82,4) 444 (76,7) 854 (80,3) Salgados 10 (4,3) 40 (15,7) 105 (18,1) 155 (14,6) Neutros 12 (5,1) 4 (1,6) 6 (1,0) 22 (2,1) Agridoces 4 (1,7) - - 0 - 4 (0,4) Bebidas 4 (1,7) 1 (0,4) 13 (2,2) 18 (1,7) Outros - - - - 11 (1,9) 11 (1,0) Total 234 (100) 255 (100) 574 (100) 1013 (100)

Fonte: Livros de Receitas depositados no CMU. CFQSS, FTSCJ e CBAC.

O mesmo procedimento foi repetido para cada uma das autoras. Ou seja, organizamos, individualmente, a tabela por quantidades de tipos de pratos calculando o percentual correspondente no interior de cada um dos cadernos. Ao final, apresentamos a soma geral de doces, salgados, neutros, agridoce, bebidas e outros, o que permitiu abranger o conjunto de receitas de Custodia, Anna e Barbara.

Iniciemos por Custodia Leopoldina de Oliveira (1863-1873). Em seus cadernos identificamos 17 receitas que aparecem repetidas vezes, sem quaisquer alterações, seja nos ingredientes ou no modo de preparo. Nesses casos nós as excluímos do total de 251 receitas, a fim de chegar a um quadro representativo dos quitutes que preservaram as receitas originais e dos que sofreram transformações ao longo dos anos nas anotações deixadas por Custodia. Os números apontados pela Tabela 3 revelaram que a doçaria foi predominante em seus manuais culinários. A autora registrou um total de 234 receitas sendo 204 de pratos doces, o que representa 87,2% desse total.

Tabela 3 – Números absolutos e percentuais de pratos, classificados por tipo nos

cadernos de receitas de Custodia Leopoldina de Oliveira. (1863-1873)

Tipos L. 1 % L. 2 % L. 3 % L. 4 % Total % Doces 57 (85,1) 60 (87,0) 11 (84,6) 76 (89,4) 204 (87,2) Salgados 3 (4,5) 1 (1,4) 1 (7,7) 5 (5,9) 10 (4,3) Neutros 3 (4,5) 4 (5,8) 1 (7,7) 4 (4,7) 12 (5,1) Agridoce 4 (6,0) - - - 4 (1,7) Bebidas - - 4 (5,8) - - - - 4 (1,7) Total 67 (100) 69 (100) 13 (100) 85 (100) 234 (100)

Fonte: Arquivos Históricos-CMU. CFQSS. Cadernos de receitas de Custodia Leopoldina de Oliveira. Livro 1-4.

Custodia iniciou seu primeiro caderno com uma sequência de dez receitas de pudins, seguindo-se as de bons-bocados, manaues, pastéis, pães-de-ló, tortas, biscoitos, manjares, entre outras. Em seu segundo caderno, as receitas de doces de frutas com diferentes texturas em massa, secos e em compotas, constituem a metade das iguarias registradas. De um total de 60 receitas de doces, encontramos 30 que são à base de frutas: maçã, uva, maracujá, pêssego, figo, ananás, limão, cidra, laranja, lima, banana, banana da terra, pera, goiaba, abóbora e marmelo. Além dessas iguarias, há receitas de bebidas, uma de salgado e outras de pratos de sabor neutro, conforme podemos ver na Tabela 3.

O manuscrito de número três, como apontamos no primeiro item do capítulo anterior, contém, em sua maioria, repetições das receitas anotadas nos outros três volumes. Das 13 instruções culinárias ali contidas, 11 são cópias dos demais cadernos, sem nenhuma alteração. A primeira, das duas, instruções que apresentou diferenças foi a denominada “Pudim de pão”, presente no caderno de número 1, e, neste terceiro caderno, Custodia a intitulou “Pudim de pão de leite”. Nesse caso, a autora mostrou-se mais didática na descrição de como preparar a iguaria. No entanto, a “imprecisão” quanto aos pesos e medidas dos ingredientes utilizados continuou presente como vimos por sua indicação no momento em que incluiu o açúcar refinado – “[...] o quanto adoce [...]”. A maneira como o prato deveria ser assado sofreu acréscimos, Custodia orientou que as vasilhas deveriam ser untadas com manteiga para receber a massa. No caso da “Broinha de calda”, tanto no segundo caderno quanto nesse de número três, o nome manteve-se

igual, mas a quantidade de ovos apresentou diferenças – no lugar de cinco ovos utilizou apenas dois.

No quarto manuscrito a doçaria representa 89,4% do total de receitas, conforme podemos ver pela Tabela 3. Custodia privilegiou os bolos, pudins, cremes e bons-bocados, além das receitas de doces de coco. Entre os pudins, a autora conservou duas receitas que já estavam anotadas em seu primeiro caderno: a do “Pudim de coco” e a de “Pão com leite”. Esses doces foram perpetuados em receituários como o Comer bem, de Dona Benta, sendo elaborados e servidos como sobremesa em refeições familiares, até os dias de hoje.6 Biscoitos, sequilhos, rosquinhas, broinhas, bons-bocados e manjares também são dignos de nota.

Mesmo que Custodia tenha se inspirado em livros de cozinha – constatamos que muitas das receitas registradas por ela constam de manuais culinários, portugueses principalmente – foram introduzidas pequenas mudanças, quer na quantidade dos ingredientes, quer no modo de prepará-las.

Os cadernos de números 2 e 4 retratam, em nosso entendimento, escolhas culinárias exclusivamente individuais de Custodia. A variedade dos doces, a pouca ocorrência de receitas repetidas e a inclusão de novos quitutes – seja porque os achara saborosos, seja por indicação de alguma pessoa próxima – corroboraram a tese da manipulação de receitas. Ou seja, os receituários manuscritos têm um caráter menos impessoal que os livros, pois quase sempre são modificados por suas autoras ou usuárias por meio da inclusão, exclusão ou alteração de seus textos.

Finalmente, a leitura desses receituários sugeriu também uma ideia de completude e de equilíbrio nas escolhas feitas por Custodia Leopoldina de Oliveira no que se refere à doçaria, que apresenta características muito portuguesas (assinalamos anteriormente a influencia sobre a autora dos manuais culinários portugueses). É evidente que ela selecionou doces que poderiam ser consumidos

6

Comer bem, 1001 receitas de bons pratos. Dona Benta 49.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963.

preferencialmente por si e por sua família tanto no dia a dia quanto em momentos festivos.

Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro (1900-1940) vivia no seio de uma família da elite econômica, militar e política. Em sua condição, ela incluía entre suas atribuições o saber receber, atributo das damas da época. Não por acaso, as escolhas culinárias de Anna Henriqueta estão diretamente relacionadas ao seu pertencimento social e às práticas alimentares adotadas pelas famílias da elite – entre elas o oferecimento de jantares à sociedade. Anna não seguiu em seus cadernos uma ordem nominal no registro das instruções culinárias, por exemplo, dispondo em sequência bolos, pudins e assim por diante.

Identificamos algumas especificidades nos receituários de Anna Henriqueta, ainda que – seguindo a regra geral – as receitas de doces tenham predominância também nessa autora. Apuramos que, das 255 receitas registradas, 210 se referem aos doces, o que representa 82,4% da média final, conforme mostra a Tabela 4. Quanto às diferenças entre seus receituários e os das demais senhoras estudadas, constatamos que Anna não anotou nenhuma instrução de pratos agridoces. O número de receitas de pratos salgados é outro diferencial, pois representa 34% do total. É provável que o elevado número de iguarias salgadas anotadas em seus receituários esteja relacionado ao constante oferecimento de jantares formais por sua família à sociedade. Nessas ocasiões, os pratos salgados são sempre predominantes no cardápio. Outro detalhe que pode ter influenciado Anna em suas escolhas refere-se ao fato de que os livros de cozinha, em circulação à época, traziam numerosas sugestões para a composição de cardápios formais, com predominância de comidas salgadas.

Tabela 4 – Tipos de pratos constantes dos cadernos de receitas de Anna Henriqueta de

Albuquerque Pinheiro, em números absolutos e percentuais. (1900-1940)

Tipos L. 1 % L. 2 % L. 3 % Total % Doces 59 (62,8) 71 (94,7) 80 (93,0) 210 (82,4) Salgados 32 (34,0) 2 (2,7) 6 (7,0) 40 (15,7) Neutros 2 (2,1) 2 (1,3) 0 - 4 (1,6) Bebidas 1 (1,1) - - - - 1 (0,4) Total 94 (100) 74 (100) 86 (100) 255 (100)

Fonte: Arquivos Históricos-CMU. FTSCJ. Cadernos de receitas de Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro. Livro 1-3.

No segundo caderno de Anna Henriqueta não se observa equilíbrio entre os sabores doces e salgados, como pode ser comprovado na Tabela 4. Das 74 receitas registradas, 71 eram de doces, representando 94,7% do total do caderno. Entre essas iguarias, 31,0% eram bolos de diversos formatos e sabores, 22 em um total de 71 receitas. Repetições de receitas foram observadas, como por exemplo, o “Bolo Majestoso”, que consta por três vezes nesse caderno de número 2. Em todas as recorrências, Anna Henriqueta procedeu a mudanças, no modo de preparo ou nos ingredientes, como por exemplo a inclusão de maizena em duas delas. Possivelmente a autora estivesse testando essa receita e adequando-a à disponibilidade no comércio de novos produtos. Essas repetições podem significar a criação de novos sabores – com ou sem alterações nos títulos – ou de simples exclusões das receitas antigas, consideradas obsoletas.7

A maioria absoluta das instruções culinárias contidas no terceiro manuscrito de Anna Henriqueta é constituída de doces, representando 93,0% das receitas nele registradas, conforme mostra a Tabela 4. Entre as 80 instruções anotadas encontramos bolos de diversas qualidades, tortas, cremes e pavês, suspiros,

7

Cf. LAURIOUX, Bruno. “Cozinhas medievais (séculos XIV e XV)”. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (direção). História da alimentação. 3.ed. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. pp.474-465. SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Os pecados e os prazeres da gula. Os cadernos de receitas como fontes históricas. III Evento de extensão em pesquisa histórica: fontes históricas, métodos e

tipologias. Paraná, setembro 2008. p.1. Disponível em:

cocadas, bons-bocados, pudins, balas, rapadura de leite, sonhos, pães, brioches, biscoitos como os amanteigados e doces finos.

Esse terceiro caderno de Anna Henriqueta explicita escolhas feitas ao longo do tempo, revelando opções por esse ou aquele prato, assim como fizera Custodia Leopoldina de Oliveira alguns anos antes. Das 86 receitas anotadas, 43 foram perpetuadas pela autora com as alterações que julgou pertinentes, ou por tê-las testado – anotando, inclusive, em algumas delas a avaliação: “Boa” –, ou pela introdução de novos ingredientes. Um exemplo de suas escolhas é a receita da “Goiabada”, único doce a base de fruta que ficou, assim, perpetuada por meio do registro feito em seu caderno.

Barbara do Amaral Camargo Penteado, por sua vez, foi sistemática na organização do seu caderno de receitas, supostamente por ter estudado em um colégio de freiras, cujos costumes e hábitos pautados pela religião eram repletos de regulamentos. A autora, cuidadosamente, informava o leitor sobre as variações das receitas que manuscrevia – no caso de não se tratar de uma única versão já consagrada – ou quando se tratava de troca de instruções – referencia a pessoa que lhe passou a instrução. Por isso, acreditamos que a ocorrência de algumas receitas registradas em duplicata, tenha ocorrido por ter ela esquecido que já as havia anotado.

Com base nessa averiguação, optamos por excluir do cômputo geral duas instruções culinárias – a “Broa” e o “Biscoito de fubá”, repetidas no único caderno de Barbara. Inventariamos 579 receitas, classificadas em cinco categorias: doces, salgados, bebidas, neutros e outros. Observando a Tabela 5, constatamos a existência de 444 receitas de doces, 105 de salgados, seis de pratos neutros, 13 de bebidas e 11 de outras prescrições. A doçaria representa 76,7% das receitas, contra 23,3% dos demais registros.

Tabela 5 – Tipos de pratos constantes no livro de receitas de Barbara do Amaral Camargo

Penteado, em números absolutos e percentuais. (1895-1940)

Tipos L. 1 % Doces 444 (76,7) Salgados 105 (18,1) Neutros 6 (1,0) Bebidas 13 (2,2) Outros 11 (1,9) Total 579 (100)

Fonte: Arquivos Históricos-CMU. CBACP. Caderno de receitas de Barbara do Amaral Camargo Penteado.

Entre as doçuras presentes nesse receituário encontramos uma variedade de bolos, bons-bocados, cremes e pudins, cocadas, biscoitos, pães doces, balas e doces de frutas. Os bolos de fubá, de mãe Benta, de noiva, apressado, econômico, da Bahia, entre tantos outros nomes, somam 87 receitas. Destacamos a continuidade do “Bolo inglez (sic)”. Barbara o registrou por três vezes, à diferença das duas que o fez Anna Henriqueta e Custodia. Além de sua presença nos manuscritos culinários, essa receita consta também nos livros de cozinha da época, como por exemplo A Boa dona de casa.8 Trata-se, provavelmente, de um quitute apreciado pelos gourmets, dada a sua recorrência nesses livros.

Entre os pratos de sabor neutro, equivalentes a 1,0% do tal de receitas, estão biscoitos, rosquinhas e bolachas. Ressaltamos que foram constatadas semelhanças entre os oito cadernos de receitas analisados quanto às instruções consideradas de sabor neutro. Um dos ingredientes comuns a todas elas é o polvilho de mandioca. Entre os registros classificados na rubrica “Outros”, que representam 1,9% do total, constam orientações de preparo de pomadas para reumatismo, de sabão, de como recuperar manteiga rançosa – importante pela ausência de refrigeração – de temperos e fermentos.

Um procedimento comum às três autoras foi o de não separar os pratos doces dos salgados em suas anotações. No entanto, Anna Henriqueta, como apontado anteriormente, introduziu algumas inovações em seus cadernos, seja

8

pela sintaxe utilizada na escritura das receitas ou por algumas especificidades de conteúdo. A utilização de um “novo” padrão de escrita – prática corrente quando se copiava de outras fontes – forneceu subsídios para refletirmos sobre a composição sintática da instrução culinária, ou seja, a análise do vocabulário empregado, o que permite, segundo Bruno Laurioux, a reconstituição das técnicas culinárias correspondentes.9

A análise das instruções culinárias nos permitiu levantar traços da individualidade de cada autora possibilitando a identificação das semelhanças e diferenças entre elas que se evidenciam não apenas do corpus da receita, mas, principalmente, no modo como cada uma arquitetou seus manuscritos. Custodia Leopoldina teceu suas escolhas alimentares de maneira similar aos livros de cozinha em circulação à sua época. Anna Henriqueta introduziu uma nova forma de escrita e preocupou-se com o registro de iguarias mais sofisticadas, indicando seu possível uso em jantares formais. Enquanto Barbara do Amaral Camargo Penteado elaborou seu eclético “caderno de saberes” com receitas de comida, de medicamentos e de higiene. Essas particularidades serão investigadas em minúcias ao longo deste capítulo, quando nos detivermos sobre as classificações