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1. As mulheres da elite cafeicultora paulista e a escrita de receitas culinárias

1.3 A trajetória de vida de três autoras de cadernos de cozinha

1.3.1 Custodia Leopoldina de Oliveira

Para traçarmos a trajetória de vida de Custodia Leopoldina de Oliveira recorremos à biografia e genealogia “dos Oliveiras” textos estes elaborados por Maria Luiza Silveira Pinto de Moura, bibliotecária do Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA), em Campinas. Ao longo de sua vida de trabalho junto ao CCLA, Maria Luiza reuniu vários documentos e tornou-se estudiosa das famílias campineiras. Com o intuito de complementar essa documentação, recorremos ainda aos inventários post mortem de Manoella Joaquina, o da própria Custodia e de seu marido, José Libânio. Foram também consultados periódicos da época e bibliografias que versam sobre a família Quirino dos Santos.121

Do casamento realizado na Vila de São Carlos em 1819, entre Manoella Joaquina de Oliveira e o capitão Joaquim Quirino dos Santos, nasceu Custodia dos Santos. Nona filha do casal, a menina foi batizada com o nome de sua avó materna na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Campinas em 3 de junho de 1835.122

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LACERDA. op.cit., 2003. p.27.

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A doação dos cadernos de receitas pertencentes a Custodia Leopoldina de Oliveira foi feita por seus descendentes – juntamente com outros documentos pertencentes a família Quirino dos Santos e Simões – diretamente ao professor e historiador José Roberto do Amaral Lapa, por reconhecerem o trabalho que ele vinha fazendo a frente desta Instituição, cujo objetivo era resguardar a memória de Campinas e da região denominada Oeste Paulista. Infelizmente não conseguimos recuperar maiores detalhes desta doação.

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Os avós maternos de Custodia eram Manuel Fernandes de San Payo, descendente de Antonio Oliveira e Custodia Mariana de Oliveira filha do sargento mor Antônio Rodrigues de Oliveira e de

O pai de Custodia, Joaquim Quirino dos Santos, era um jovem paulista que se transferiu para a vila de São Carlos com numerosa escravatura, em início do século XIX. Tinha a incumbência recebida de seu pai Bento Simões Vieira, para se instalar na recém-criada Vila e ali iniciar a cultura de cana de açúcar. Deveria, também, implantar um engenho de açúcar em Anhumas, no sítio Floresta, propriedade recentemente adquirida por sua família. Foi alferes de milícias chegando a major de cavalaria da Guarda Nacional.123 Desse sítio, partiu para a aquisição de novas terras, constituindo a fazenda São Quirino no qual desenvolveu plantação de café.124

Manoella Joaquina de Oliveira, mãe de Custodia, tinha por antepassado Antonio de Oliveira, patriarca do ramo dos Oliveira. Foi ele fidalgo da casa de El- Rey, natural de Portugal, que veio para o Brasil para o cargo de primeiro feitor da Fazenda Real da Capitania de São Vicente, por mercê de Dom João III, em 1537.125

Com três anos de idade, Custodia não pode mais contar com o carinho de de sua mãe, que faleceu em 1838, deixando 13 filhos púberes. Suas irmãs mais velhas, Maria do Carmo Oliveira e Anna Gertrudes de Oliveira, que na ocasião tinham 18 e 17 anos, respectivamente, eram solteiras e talvez tenham se revezado nos cuidados da irmã pequena, até que seu pai contraiu novas núpcias com Maria Francisca de Paula Santos. Essa era descendente de Fernão de Camargo, proto-homem do clã dos Camargo, filha do alferes Francisco de Paula Camargo, natural de Itu.

A família Quirino dos Santos possuía propriedades rurais e urbanas, além de ações da Companhia Paulista de Estrada de Ferro e da Companhia de

Isabel Antônia de Oliveira. LEME, Luiz Gonzaga da Silva (1852-1919). Genealogia Paulistana. São Paulo: Duprat, 1903-1905. v. IV, p.320.

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O major Joaquim Quirino dos Santos era o comandante do Segundo Esquadrão de Cavalaria da Guarda Nacional, em 1857. Cf. ALMANAK Administrativo, Mercantil, e Industrial da Província de São Paulo para o ano de 1857. Marques & Irmão (organização e redação). São Paulo: Typographia de Azevedo Marques, 1856.

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MAGRO, Omar Simões. Um grande centenário. Bento Quirino dos Santos. Revista do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas. 18 de dezembro de 1938. (Número dedicado à memória do saudoso campineiro sr. Bento Quirino dos Santos).

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Iluminação a Gás. Pai e irmãos ocuparam importantes postos na Guarda Nacional, na Câmara Municipal e como Juizes de Paz. O prestígio da família se estendia à vida cultural e pedagógica de Campinas e seus membros atuaram diretamente nas atividades educacionais da cidade. Seu pai foi secretário do colégio Culto à Sciencia na década de 1870. Seus irmãos também ocuparam cargos de relevo no sistema educacional campineiro. Bento Quirino fez parte da diretoria desse mesmo colégio, no ano de 1879126 e Francisco Quirino dos Santos foi presidente da Sociedade Promotora de Instrução Pública, em 1870, e do Gabinete de Leitura, cuja biblioteca possuía 1000 volumes.127

Entre seus 12 irmãos e irmãs, destacamos o coronel Bento Quirino dos Santos, conhecido na sociedade campineira, por sua atuação política e suas atividades culturais, educacionais e beneméritas. Em 1873, ocupava um cargo na vereança da Comarca de Campinas juntamente com o futuro presidente da República, Manoel Ferraz de Campos Salles. Foi, também, tesoureiro e presidente da Casa Club Semanal, cujo objetivo era ser um espaço para a realização de bailes e reuniões sociais. 128

Os anos se passaram e Custodia Leopoldina se tornou vaidosa e cuidadosa com sua aparência. Os cabelos presos destacavam seu rosto alongado, a delicadeza dos brincos e do colar lhe davam um toque de requinte à fisionomia séria. Tendo em vista a rede de relações da família Quirino dos Santos, pretendentes não faltariam para desposá-la e, como jovem da sociedade de seu tempo, foi criada e educada para o casamento.129

126

O ESTADO de São Paulo. 24/04/1879. p.3. Acervo Estado. Acesso em 24/05/2012.

127

LUNÉ; FONSECA. op.cit., 1985. p.326.

128

LUNÉ; FONSECA. op.cit., 1985. p.322.

129

SIMILI, Ivana Guilherme. Mulher e política. A trajetória da primeira dama Darcy Vargas (1930- 1945). São Paulo: editora Unesp, 2008.

Retrato de Custodia Leopoldina de Oliveira (1835-1889). s.d. (Acervo Maria Luiza Silveira Pinto de Moura).

A educação feminina nessa época – meados do século XIX – era assumida muitas vezes por preceptoras de origem alemã, francesa, suíça.130 Inicialmente, a ênfase era dada a uma educação completa para formar a “dona de casa”, sem omitir a leitura e a escrita. Deve-se a isso o apreço das moças de antanho pelas artes, como a música, o canto e bordados finos. Desde 1850, Campinas contava com serviços de professores autônomos que exerciam a função de educadores das moças de família. Identificamos entre eles, no ano de 1856, Querino Amaral Santos, para o latim e francês; e, no ensino de primeiras letras, os mestres Anna Jacynta de Andrade Couto e Thomaz Gonçalves Gomide, professor interino.131 Observando a caligrafia de Custodia em seus receituários culinários, deduzimos que, muito provavelmente, ela tenha recebido uma esmerada educação formal.

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Podemos citar Ina von Binzer, de origem alemã, preceptora contratada por famílias residentes na Província do Rio de Janeiro e São Paulo para cuidar da educação de seus filhos. BINZER, op.cit., 1982. LACERDA. op.cit. 2003. p.170.

131

Sabemos que Custodia assistiu ao casamento de suas irmãs, com as quais aprendeu certamente a preocupar-se com os preparativos de seu enxoval de noivado. Entre eles, a execução de bordados nas toalhas de banho e de mesa, assim como aqueles que deveriam ser feitos nos guardanapos de linho e nos lençóis. A confecção dos cadernos de receitas não data dessa época. Ela se dedica a eles após contrair núpcias com o fazendeiro José Libânio de Abreu Soares. Podemos vislumbrar a jovem senhora dirigindo-se à escrivaninha, abrindo uma das gavetas e dela retirando seu caderno. Suavemente toma da caneta, bico de pena, deixada sobre o móvel e põe-se a pensar em como iniciar seus receituários. Eis que surge a primeira frase: “Receitas de doces de todas as qualidades.” E pontua essa ação datando o seu empreendimento: “Constituição, 12 de setembro de 1863.”132

Caderno de receitas manuscritos de Custodia Leopoldina de Oliveira (c.1863-1873). (Acervo Arquivos Históricos-CMU)

Custodia talvez tenha elaborado seus manuscritos com o objetivo de ter à mão um instrumento que a auxiliasse nos preparativos alimentares de sua família ou para orientá-la na confecção dos cardápios de jantares cerimoniosos que

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Arquivos Históricos-CMU. Coleção Família Quirino dos Santos e Simões (CFQSS), Cadernos de receitas manuscritos. A título de esclarecimento, Constituição era o antigo nome de Piracicaba, que pertencia nessa época à Comarca de Campinas. Cf. ALMANAK Administrativo, op.cit., 1856. p.166.

porventura viesse a oferecer nos salões de sua residência. Trata-se de suposição nossa, porque, hoje, sabemos que diários e receituários manuscritos era uma tarefa característica das filhas da nobreza e da burguesia europeia transpostos para solo brasileiro. Tais escritos seguiam padrões formais e ideológicos, como apontou Philippe Lejeune.133

Segundo esse estudioso, a elaboração de um diário era usada como método pedagógico quando a jovem era educada em casa e, tanto a mãe como a professora, acompanhavam e controlavam a regularidade dos registros, quer na sugestão de conteúdo ou nas correções gramaticais. Em sequencia a esse método pedagógico decorria o que Lejeune denominou de educação profissional, que compreendia a iniciação das jovens em seu futuro papel social, ou seja, a administração do lar e as regras de comportamento em sociedade.134 A confecção dos manuscritos culinários, poderia ser incluída como parte dessas obrigações femininas.

Como era esperado pelas jovens da época, chega o momento de contrair matrimônio. A escolha dos consortes cabia usualmente aos pais e era motivada por razões pragmáticas, de ordem econômica ou social, costume que deixava poucas alternativas a razões de ordem pessoal ou sentimental. Fiel a esse modelo, Custodia casa-se com José Libânio de Abreu Soares, fazendeiro de café com propriedades na cidade de Amparo, provavelmente em 1850.135 Os pais de José Libânio eram o capitão comendador Joaquim José Soares de Carvalho e Maria Felicissima de Abreu.

Os Abreu Soares eram também família respeitada por sua generosidade e influência econômica na cidade de Campinas. Eles também pertenciam ao ramo dos Oliveira, descendentes do patriarca Antonio Oliveira, mencionado

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LEJEUNE, Philippe. Diários de garotas francesas no século XIX: constituição e transgressão de um gênero literário. Cadernos PAGU, n.8/9, pp.99-114, 1997.

134

LEJEUNE, op.cit., 1997. pp.99-114.

135

Não tivemos sucesso na busca de sua certidão de casamento, mas no sítio mantido pela igreja dos Mormons, encontramos a data de nascimento de seu primeiro filho Olimpia Soares, em agosto de 1851. Disponível em: <https://familysearch.org>. Acesso em: 20/04/2012.

anteriormente. O avô materno de Custodia, Manuel Fernandes de San Payo, era irmão do avô materno de José Libânio, Cláudio Fernandes de San Payo.136

Em 1879, a mãe de José Libânio, Maria Felicissima de Abreu, em um gesto magnânimo, doou o terreno para a construção da Santa Casa de Misericórdia de Campinas.137 Gestos como esse podem ter contribuído para a concessão do título de barão de Paranapanema ao seu filho, o capitão Joaquim Celestino de Abreu Soares, cujo primeiro casamento foi com Joaquina Angelica de Oliveira, irmã de Custodia.138

O casamento era uma estratégia usada pela aristocracia para manter e ampliar o seu poderio econômico e político.139 Essa situação ocorreu na família Quirino dos Santos, pois três irmãs se casaram com três irmãos da família Abreu. Custodia com José Libânio, Joaquina Angelica de Oliveira com o citado Joaquim Celestino de Abreu Soares, futuro barão de Paranapanema e sua outra irmã, Manoela foi a primeira esposa de Francisco Soares de Abreu.140

Como apontou Carlos Bacellar

A seleção dos cônjuges faria parte de uma estratégia de vida previamente pensada, visando à estruturação de uma rede de relações familiares complementares às relações de cunho comercial. Quanto mais amplas e sólidas as relações estabelecidas, mais acessível seria o progresso socioeconômico da família.141

136

LEME, op.cit., 1903-1905. v.IX: p.503; 506.

137

No Relatório do Asilo de Órfãs elaborado pelo provedor, cônego Joaquim José Vieira, e apresentado à Irmandade de Misericórdia, encontramos informações sobre a doação do terreno para construção desse hospital, feita pela mãe de José Libânio, Maria Felicissima de Abreu, naquele ano. Arquivos Históricos-CMU. Irmandade Misericórdia de Campinas.

138

Cf. Genealogia Paulistana o Capitão Joaquim Celestino de Abreu Soares, barão de Paranapanema, cujo primeiro casamento foi com Joaquina Angelica de Oliveira 2.ª vez casou e não deixou geração; 3.ª vez casou com Maria Carolina de Toledo Soares, baronesa de Paranapanema, f.ª do major Antonio Elias de Toledo Lima e de Carolina Maria de Arruda. LEME, op.cit., 1903-1905. Vol IX. Adenda Geral (Volumes 7 e 8), pp.216-218.

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Maria Helena Trigo apontou que casar bem os filhos era fundamental para estabelecer alianças com outras famílias, obter mais crédito ou ser melhor representado nos meios políticos. O grupo familiar é o local privilegiado na formação de atitudes e na interiorização da distinção social: o gosto natural, aquele que vem do berço, em contraposição ao que consideram como “verniz” cultural, oriundo de aprendizagens tardias. TRIGO, Maria Helena Bueno. Os paulistas de 400 anos – ser e parecer. São Paulo: Anablume, 2001.

140

LEME, op.cit., 1903-1905. v.VIII: Título Oliveiras, p.505.

141

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra. Campinas: Centro de Memória- Unicamp, 1997. p.92. (Coleção Campiniana, v.13).

Como dissemos, o marido de Custodia possuía propriedades rurais e urbanas em Amparo e Campinas. Com isso, após o matrimônio, ela dividia o tempo entre as duas cidades. Na época da colheita de café, o grão-senhor José Libânio gostava de acompanhar de perto os trabalhos, oportunidade em que ele e a família se deslocavam para a casa grande da fazenda de cafeicultura. Nessas ocasiões, Custodia devia supervisionar os preparativos da viagem, dedicando cuidados especiais aos objetos caseiros, que eram colocados em canastras. Para o lanche da família, durante o trajeto da cidade ao campo, era costume confeccionar biscoitos e doces. A mãe de família os tinha anotados em seu receituário e, após confeccioná-los, eles deviam ser acondicionados em pequenas latas, protegendo as guloseimas da poeira da estrada.142

Na cidade de Campinas vivia-se um período de discussões políticas importantes. Assuntos como abolição da escravatura e uma possível queda do Império eram uma constante durante os momentos de sociabilidade nas residências da elite cafeicultora. Muitas dessas discussões devem ter ocorrido durante os jantares oferecidos à sociedade pelo casal José Libânio e Custodia, que abria os salões de sua residência à rua Barreto Leme, número18, próxima ao largo da Matriz Velha, para receber os amigos. Nessas ocasiões, caberia à Custodia a decoração da casa e da mesa de jantar ornando-as com os castiçais e os pratos de porcelana inglesa, que constavam de seu inventário, junto com o faqueiro e as baixelas de prata.143

A necessidade de receber com elegância e sofisticação, impeliu Custodia a confeccionar seus cadernos de receitas. Iniciou a escritura de seus receituários em 1863 e revelou o que almejava, com meiguice e doçura. Pretendia oferecer

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Nas memórias de Maria Paes de Barros ela nos brinda com diversas estórias sobre o cotidiano das famílias paulistas e, em algumas cartas trocadas entre Isabel Augusta de Souza Queirós Barbosa de Oliveira e sua filha, a baronesa Geraldo de Resende, notamos a mesma preocupação em relação à preparação de quitutes para as viagens da família. BARROS, Maria Paes de. No tempo de dantes. São Paulo: Paz e Terra, 1998; Fundação Casa de Rui Barbosa, Isabel Augusta de Souza Queirós Barbosa de Oliveira. Notação: BR FCRB - CFBO CFBO SFCA DIASQBO.

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Arquivos Históricos-CMU. Inventário de Custodia Leopoldina de Oliveira. FTJC, 3.Of., 1896, Cx.516, Proc.7723.

aos seus familiares e convidados a suavidade de sabores e encantar, visualmente, os comensais com pratos decorados e convidativos à degustação.

Campinas, a partir de 1889, sofreu três surtos consecutivos de febre amarela e uma das vítimas dessa doença foi a própria Custodia Leopoldina. Ela faleceu no dia 7 de março de 1896, na fazenda de Antonio Carlos de Almeida Bicudo, seu genro, na freguesia de Pedreira (Amparo), com 60 anos, sob os cuidados médicos de Thomaz Alves Filho.144