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3. As escolhas alimentares de Custodia, Anna Henriqueta e Barbara

3.2. Doces: dos manjares aos pães

A doçaria se impôs ao gosto, alimentando e celebrando o paladar dos paulistas ao longo de todo o período histórico que examinamos. Essa constatação fica patente na digressão feita acima, quando apuramos que nos oito cadernos de receitas estudados 80,3% eram de doces. Por que tantos doces? Segundo pesquisas sobre os hábitos alimentares dos povos ocidentais, durante os séculos XVI, XVII e XVIII o açúcar estava solidamente implantado nas refeições das elites sociais da Europa. Com o avanço da fabricação do açúcar de cana, o consumo de doces nos dois séculos seguintes (XIX e XX) chegou à alimentação das camadas

9 Cf. LAURIOUX, Bruno. “Cozinhas medievais (séculos XIV e XV)”. In: FLANDRIN; MONTANARI,

populares.10 Acreditamos que essa informação seja relevante para explicar o elevado percentual de pratos doces nos cadernos de receitas estudados. Deve-se acrescentar ainda que durante três séculos o Brasil foi não só o principal fornecedor mundial de açúcar de cana, como também grande consumidor do produto.

Um dado comparativo nos será útil para esclarecer a predominância da doçaria nos receituários estudados. Nos três cadernos culinários de Anna Henriqueta, por exemplo, do total de receitas neles registradas 82,4% eram de doces. Já os livros de cozinha publicados na época registram percentuais bem mais modestos. No primeiro livro do gênero editado no Brasil, o Cozinheiro Imperial, as receitas de doces constituem apenas 19,7% do total, ou seja, 171 entre 866 receitas, em números absolutos. No Cozinheiro Nacional essa relação é ainda menos significativa, pois a obra registra apenas 103 receitas de doces, ou seja, 6,6% do total de 1.570 instruções culinárias publicadas.

Uma possível resposta à questão da disparidade entre o número de receitas de doces manuscritas e as publicadas está no direcionamento do mercado editorial. No Brasil, durante o século XIX, como acontecia em países europeus, as obras culinárias começaram a se especializar por temas – doçaria, confecção de pães, assados e cozidos, entre outras. Já os cadernos de receitas, em geral, não observam essa segmentação. Ou seja, as senhoras da elite estariam se orientando, preferencialmente, pelos livros de cozinha especializados em receitas de doces para editar seus cadernos manuscritos.11 O motivo dessa preferência pode se explicar pelas qualidades intrínsecas do açúcar. “O doce pontua o cotidiano, marca o tempo da festa, é um verdadeiro presente para a

10 TEUTEBERG, Hans Juergen; FLANDRIN, Jean-Louis. “Transformações do consumo alimentar.”

In: FLANDRIN; MONTANARI (direção), op.cit., 1998. pp.715-716.

11

Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Os livros de receitas e a transmissão da arte luso-brasileira de fazer doces (séculos XVII-XIX). In: Actas do III Seminário Internacional sobre a História do Açúcar, Funchal, 25-29 de outubro de 2004. Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atlântico, 2004. O COZINHEIRO nacional, op.cit., 1938. COUTO, Cristiana. Arte de Cozinha. Alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora SENAC, 2007.

boca, para os olhos, para a imaginação, pelas cores e certamente pelos odores e sabores”, colocações de Raul Lody.”12

Nas palavras de Leila Mezan Algranti esse predomínio da doçaria se deve a que “no ritual alimentar português – do qual incorporamos muitos aspectos desde o período colonial – o doce sempre teve uma conotação de bem-estar, de iguaria, de comemoração que o afastava do trivial”.13

Luís da Câmara Cascudo dizia que o “doce visitava, fazia amizades, carpia, festejava”.

Outra hipótese para que os pratos doces predominem nos cadernos de receitas de nossas personagens é a de que preparar um doce de memória seja talvez mais difícil, ou permite menos improvisações, do que uma receita salgada. Sobre esse tema existem, enfim, várias possibilidades de interpretação.

Retornemos, então, às nossas autoras. A cada folhear das páginas de seus oito cadernos manuscritos, o pesquisador se depara com incontáveis possibilidades de análises e interpretações de seu universo culinário. Nossa atenção é despertada pelos títulos das receitas, instigantes às vezes, pela descrição de cada uma delas – ora mais, ora menos detalhada – até as recomendações sobre a decoração das iguarias. Os critérios de seleção são subjetivos, mas respaldados pelo cotejamento com outras fontes de informação, as quais nos servem de referência para desvendar as escolhas de Custodia, Anna Henriqueta e Barbara, que sofreram também a influência do contexto da sociedade paulista da época – o período que se estende de 1860 a 1940.

Iniciemos nossa exposição sobre os produtos do engenho culinário das três autoras de quem nos ocupamos por uma iguaria – achada nos receituários de Custodia Leopoldina – que nos chamou a atenção pelo título: “Desmamada”. A denominação – simples e direta – aplica-se, no conceito de Luce Giard, aos pratos que as cozinheiras improvisam com o objetivo prioritário de nutrir, para isso lançando mão dos ingredientes que estiverem à disposição naquele momento.

12

Cf. LODY, Raul. Doce Comida. In:. REGO, Dr. Antonio José de Souza. Dicionário do Doceiro Brasileiro (1892). Raul Lody (org.). São Paulo: Ed. Senac, 2010. p.12.

13

ABRAHÃO, Fernando A. (org.). Delícias das sinhás. História e receitas culinárias da segunda metade do século XIX e início do século XX. Campinas: CMU, Arte Escrita, 2007. p.13. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p.302.

Portanto o nome que foi atribuído a essa comida deixa explicito que estava sendo ofertado ao comensal um prato descomplicado, para cujo preparo não há necessidade de grandes conhecimentos.14

A palavra “Desmamada” comporta uma analogia com o desmame, momento em que as mães deixam de amamentar seus filhos. Ao analisar o conteúdo intrínseco da receita, identificamos uma proximidade com os mingaus de maizena feitos para alimentar crianças recém-desmamadas. Custodia registrou-a em dois cadernos, os de números 1 e 4. Cotejando-os com os livros de cozinha em circulação à época, encontramos no Doceira Brasileira (1856) instruções semelhantes. Isso nos fez pensar que a autora talvez tenha se inspirado nessa ou em outras publicações similares. Não podemos também excluir a hipótese de uma troca de saberes entre gerações. Afinal, as papas ou angu de fubá, de farinha de arroz ou de mandioca entraram para o cotidiano dos brasileiros por meio do contato com os índios, como assinalou Luís da Câmara Cascudo. Os portugueses apuraram seu feitio e as adoçaram, transformando esses “caldinhos” – ainda nas palavras de Cascudo – em papas finas e delicadas.15

Analisamos, detalhadamente, as duas receitas de “Desmamada” constantes nos cadernos de Custodia buscando entender as diferenças e semelhanças entre ambas. A primeira instrução apresenta um enunciado mais simples do que o da segunda, mas pressupõe que a cozinheira fosse experiente e conhecesse o ponto de angu. Outro detalhe a ser observado refere-se à quantidade de açúcar a ser usada: “o quanto adoce”. Unidade de medida subjetiva, porque para um indivíduo uma ou duas colheres de açúcar seriam suficientes para o seu paladar, enquanto para outra pessoa talvez fossem necessárias cinco colheres, por exemplo.

Desmamada

1 libra16 de farinha de arroz, faz-se angu em leite que fique bem cozido, depois de frio põem-se 25 gemas de ovos, uma quarta17 de

14 GIARD, Luce. “As regras da arte”. In: CERTEAU; GIARD; MAYOL, op.cit., 2000. pp.293-295. 15

LIMA, Constança Oliva de. Doceira Brasileira ou Nova Guia Manual para se fazerem todas as qualidades de doces. 2.ed. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1856. p.78. CASCUDO, op.cit., 2004. pp.543-544.

16

Libra: medida de peso equivalente a 459,5g.

17

Quarta: medida de peso usada para manteiga, farinha e açúcar corresponde a quarta parte do arrátel, 114,75. Cf. PERICÃO, Maria da Graça; FARIA, Maria Isabel. Leitura, apresentação, notas e

manteiga, açúcar o quanto adoce, cravo, canela, noz-moscada. Vai ao forno em calor brando.18

A segunda instrução é mais detalhista quanto à maneira de preparar a “Desmamadas”, mas também implica um conhecimento prévio do ofício de cozinhar. Nas cozinhas da época era necessário dominar as técnicas de elaboração envolvidas, como por exemplo, saber secar o pó de arroz ao sol, ter cuidado no mexer o tacho para o conteúdo não pregar no fundo e, principalmente ter a ciência do ponto exato da calda.

Desmamadas

2 libras de açúcar em calda grossa, 1 prato bem cheio de pó de arroz bem seco no sol, meia medida de leite. Deita-se tudo isto em um tacho e vai ao fogo a cozer, mexendo-se sempre para não pregar, e depois quando estiver em massa bem cozida, deita-se em um alguidar19 mesmo quente, meia libra de manteiga, 1 coco ralado. Em estando bem encorpado, quase frio, deita-se 3 dúzias de ovos, sendo a metade sem as claras. Em estando bem ligado, amassa-se mexendo com colher de pau. As forminhas são untadas com manteiga, e apolvilha-se com canela por cima. O forno deve estar mais quente que para pão de ló.20

O cozimento era feito em duas etapas, primeiro levava-se ao fogo para cozer e depois ao forno para dourar. Essa segunda etapa, estava diretamente relacionada à apresentação da iguaria, deixando a “Desmamadas” convidativa não apenas ao paladar, mas ao olhar dos comensais. A canela era o ingrediente, que nesse caso, agregava as duas funções, deixava o quitute com aspecto de corado e dava sabor ao creme.

O Dicionário do Doceiro Brasileiro (1892), posterior ao período em que Custodia formulou seus manuscritos, perpetuou quatro variações dessa receita. As diferenças no modo de preparo e ingredientes ocorreram em todas as instruções. Ora recomendava-se a utilização da farinha de trigo, ora do pó de

glossário Apresentação. In: RODRIGUES, Domingos. A arte de cozinha. Lisboa, Imprensa Nacional, 1987. (1680). p.33.

18

Arquivos Históricos-CMU. CFQSS. Caderno de receitas de Custodia Leopoldina de Oliveira. Livro 1.

19

Alguidar: palavra de origem árabe al-gidár. Vaso de barro ou de metal, utilizado nos processos culinários. Seu formato lembra um tronco de cone invertido, sua base é mais estreita que sua boca.

20

Arquivos Históricos-CMU. CFQSS. Caderno de receitas de Custodia Leopoldina de Oliveira. Livro 4.

arroz, chegando a uma versão com farinha de tapioca. O açúcar in natura ou em calda e o coco foram unanimemente receitados.21

Verificamos que, nesse repertório de alimentos, cujos títulos podem remeter à ideia de consumo infantil, Custodia, Anna e Barbara anotaram, em algum momento, as instruções para fazer “Desmamadas”, “Manjar Branco” e “Mingau”. No caso de Custodia, a receita desse manjar apareceu uma vez no primeiro receituário e por duas vezes no quarto. A última transcrição feita pela autora revelou-se mais completa tanto na forma de prepará-lo quanto nos ingredientes utilizados, ocorrendo, então, a inclusão de ovos.

Lendo atentamente as demais instruções contidas em seus quatro cadernos, vimos que Custodia anotou no primeiro um prato feito à base de peito de galinha, mantendo a mesma nomenclatura que vem desde a Idade Média. No entanto, a semelhança se restringiu ao título do prato, classificada por nós como agridoce, visto não se tratar da mesma receita.

As semelhanças com a receita de mingau preparada pelas mães para alimentar crianças, parturientes e doentes em geral, ficou evidente quando nos debruçamos sobre teor da receita de Custodia para o “Manjar Branco”. Açúcar, pó de arroz e canela deveriam ser bem cozidos, para não se sentir o gosto do arroz, como apontou ela. A instrução é assim finalizada “[...] deitando [o manjar] com uma colher no prato e apolvilha-se com canela por cima e torna-se a deitar outra camada até encher o prato. Também querendo-se põem-se as colheres em folhas de limão e vai arrumando nos pratos”. (sic)22

Ainda no âmbito de receitas similares aos mingaus, vejamos uma que consta dos receituários de Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro. Ela anotou o “Creme do Japão”, cuja leitura mostrou que se assemelha ao “Mingau de maisena” e “Manjar de coco branco”, este último registrado nos receituários atuais, que tem como acompanhamento a calda de ameixas. Na instrução de Anna Henriqueta o creme é preparado com leite, maizena, gemas, canela em pó e

21

REGO, Dr. Antonio José de Souza. Dicionário do Doceiro Brasileiro. (1892). Raul Lody (org.). São Paulo: Ed. Senac, 2010. pp.138-139.

22

Arquivos Históricos-CMU. CFQSS. Caderno de receitas de Custodia Leopoldina de Oliveira. Livro 4.

açúcar. Depois de pronto, o “Creme do Japão, deve ser colocado numa forma para esfriar e, então, “[...] deita-se ameixas pretas para cozinhar depois deixa-se engrossar, depois de pronto, deita-se um cálix de vinho tinto, quando estiver frio arruma-se no prato e põe-se as ameixas com calda em roda.”23

Barbara do Amaral Camargo Penteado, por sua vez, anotou três variações do manjar. Em uma das receitas, a orientação quanto à maneira de se obter o leite de coco fica evidente. Esse ingrediente, fundamental para o preparo do “Manjar Branco (Bromil)”, é obtido do coco ralado, o qual deve ser levado ao tacho, acrescido de água suficiente para encher uma forma. Adiciona-se então uma vagem de baunilha e, leva-se ao fogo para ferver a mistura até “[...] a água tomar um aspecto leitoso [...]”. Depois disso feito, acrescenta-se a maizena e a manteiga e a mistura volta ao fogo para ganhar consistência de mingau. O resfriamento do quitute é feito, segundo Barbara, mergulhando a forma na qual se colocou o doce “[...] n’uma vasilha com agua fria, para gelar o manjar.” (sic) e finalizar, acrescentando uma “[...] geleia bonita [...]” em torno do manjar. 24

Ao longo das sucessivas “repetições” dessa receita, a substituição do pó de arroz e farinha de arroz pela maizena, marcou a introdução de produtos industrializados na cozinha da época. O acompanhamento do doce pode ser calda de ameixa ou geleia. Recorrendo aos livros de cozinha encontramos no Cozinheiro Nacional esse doce, mas denominado, por seu autor, de “Manjar à brasileira”. Por sua vez, o livro de Lucia Queiroz (1916), na parte de alimentos para crianças, traz o “Mingau de Maizena” elaborado com maizena, leite, uma gema e açúcar à vontade. Nos chamou a atenção, nessas instruções, a inclusão de gema de ovo. Se pensarmos que a receita portuguesa de arroz doce levava gemas, como ingrediente, esse mingau de maizena pode ter sofrido a influencia da doçaria lusitana, cuja base é o leite, os ovos e o açúcar.25

23

Arquivos Históricos-CMU. FTSCJ. Cadernos de receitas de Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro. Livro 2.

24

Arquivos Históricos-CMU. CBACP. Caderno de receita de Barbara do Amaral Camargo Penteaso. Livro 1.

25

Outra receita que mereceu destaque no receituário de Custodia foi a de “Pudim de banana da terra”. Entre os dez pudins iniciais de seu primeiro caderno, essa iguaria foi numerada como a quinta desse gênero de receita. Uma leitura rápida poderia nos induzir ao erro, porque a autora estava orientando o leitor/cozinheiro sobre como preparar diversas variações de pudim. Por exemplo, “[...] e desta mesma forma se faz os de legumes [...]”.26

Os citados legumes soam para nós como uma combinação salgada, mas deduzimos que não se trata disso. Vejamos a receita: