• Nenhum resultado encontrado

Os receituários manuscritos e as práticas alimentares em Campinas, (1860-1940)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Os receituários manuscritos e as práticas alimentares em Campinas, (1860-1940)"

Copied!
340
0
0

Texto

(1)

ELIANE MORELLI ABRAHÃO

Os receituários manuscritos e as práticas alimentares em

Campinas (1860-1940).

Campinas 2014

(2)
(3)

ELIANE MORELLI ABRAHÃO

Os receituários manuscritos e as práticas alimentares em

Campinas (1860-1940).

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Doutora em História, na área de concentração Política, Memória e Cidade, sob a orientação da Profa. Dra. Leila Mezan Algranti.

Campinas 2014

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

(4)
(5)
(6)
(7)

Resumo

Três mulheres, três escolhas: Custodia Leopoldina de Oliveira (1835-1889), Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro (1871-1950) e Barbara do Amaral Camargo Penteado (1875-1963). Cada autora à sua maneira, descortinou – por meio da escrita, feminina e privada – o universo do cozinhar. O léxico das receitas indica as técnicas de preparo empregadas, a modernização dos utensílios domésticos e dos espaços da casa, os ingredientes disponíveis à época deste estudo, as perpetuações e descontinuidades das iguarias e da vida do lar.

A partir dos receituários de comida, fonte e objeto de estudo, procuraremos compreender de que maneira as práticas alimentares se consolidaram através dos tempos em certo espaço social. A leitura e a análise destes documentos trazem à luz detalhes do cotidiano familiar, da dinâmica econômica, cultural e social da elite cafeicultora, no período entre 1860 e 1940, reforçando a hipótese de que a alimentação funcionava como instrumento de criação e perpetuação de laços de amizade e veículo de pertencimento social.

Palavras-chave: Alimentação (História); Práticas alimentares – Campinas-SP;

(8)
(9)

Abstract

Three women, three choices: Custodia Leopoldina de Oliveira (1835-1889), Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro (1871-1950), and Barbara do Amaral Camargo Penteado (1875-1963). Each author, in her own fashion, unveiled – through private feminine writing – the universe of cooking. The recipes’ lexicon indicates the preparing techniques employed, the modernization of the household appliances and house spaces, the available ingredients at the period studied, the perpetuations and discontinuities of the dishes and of the home life.

Based on the food recipes, source and object of the study, we will attempt to comprehend in which way the fooding habits have been cemented through time in a given social space. The reading and the analysis of such documents bring to light details about the family life, the economic, cultural, and social dynamics of the coffee farmers elite in the period between 1860 and 1940, reinforcing the hypothesis that the feeding habits used to operate as an instrument for the creation and maintenance of friendship bonds, as well as a social belonging vehicle.

Key-words: Food (History); Food habits – Campinas-SP; Cookbooks - manuscript;

(10)
(11)

Sumário

Introdução 1

Cap. 1: As mulheres da elite cafeicultora paulista e a escrita de

receitas culinárias 15

1.1 A história da alimentação e os compêndios culinários 15 1.2 A presença feminina na sociedade campineira 36 1.3 A trajetória de vida de três autoras de cadernos de cozinha 55 1.4 A posse e circulação de livros de cozinha: uma literatura

inspiradora 82

Cap. 2: Possibilidades de leituras e interpretações dos receituários

culinários 95

2.1 A arquitetura dos cadernos de receitas: três mulheres, três

escritas 95

2.2 Técnicas culinárias: utensílios, produtos, pesos e medidas 110 2.3 Práticas culturais e a informação culinária 125

Cap. 3: As escolhas alimentares de Custodia, Anna Henriqueta e

Barbara 141

3.1 Permanências, descontinuidades e inovações 141

3.2 Doces: dos manjares aos pães 152

3.3 Salgados: da gallantine de volaille ao bacalhau a Benedictina 179 3.4 Agridoces e neutros: dos pasteizinhos aos biscoitos 191

3.5 Os licores e temperos 198

Cap. 4: Rituais da alimentação: dos preparativos à comensalidade 213

4.1 As protagonistas da arte de receber 214

4.2 A estética dos alimentos nos cardápios de cerimônias 238 4.3 Festejos tradicionais: do pé de moleque às rabanadas 278

Conclusão 293

Bibliografia 303

(12)
(13)

Aos meus pais Antonio (in memoriam) e Josephina

(14)
(15)

Agradecimentos

Lembranças de infância afloraram a cada manusear dos cadernos de receitas de três antigas mulheres da elite cafeicultora paulista – Custodia Leopoldina de Oliveira, Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro e Barbara do Amaral Camargo Penteado –, nos quais mergulhei com interesse e dedicação ao longo dos últimos tempos. O exercício acadêmico se confundiu, assim, com o despertar da memória pessoal e familiar, que o reforça e lhe confere maior autenticidade. É como se estivesse revendo a grande mesa de madeira enfarinhada com a massa que daria forma ao fettuccine, preparado por minha mãe Josephina.

Os almoços de domingo marcaram minha infância. Constituíam momentos significativos do convívio familiar em que cada membro da família manifestava seus gostos e preferências, aos quais nossa mãe – atenta aos desejos de todos – procurava atender com desvelo e carinho. Lembro-me como se fosse hoje: a canja não faltava no cardápio dominical, porque meu tio Ezio – irmão mais novo dela – fazia questão do prazer de degustá-la.

Outra recordação que me ocorre refere-se às celebrações natalinas. Passávamos a data invariavelmente em casa de tio Ermindo – outro irmão de minha mãe – que, segundo ela, era seu par nos bailes frequentados na mocidade. Na véspera do Natal a mesa de jantar se mostrava repleta dos mais variados quitutes, descortinando os hábitos de diferentes nacionalidades que formam o amálgama étnico e cultural de nossa família. A leitoa, imprescindível para todos, dividia espaço com a bacalhoada preparada por tia Irene, de ascendência portuguesa. O frango com catupiry, sinal de tempos mais modernos anunciados pela adoção de ingredientes industrializados, ficava por conta de Elisabeti, minha irmã mais velha. Para o almoço de Natal não podia faltar o “Cappelletti in brodo”. Mamãe e tio “Mindo” – carinhosamente chamado por todos – pingavam meticulosamente o vinho tinto no caldo da sopa, e a alegria estampava-se no olhar de ambos no momento em que consumiam essa iguaria.

A rabanada, os bolos e a rosca de Natal são outras boas lembranças de um tempo não muito distante, recheado de quitutes capazes de dar água na boca só

(16)

de neles pensar. Não são poucas as ocasiões que me trazem lembranças tão palatáveis. Todo o período da infância foi pautado pelos bolos confeitados preparados delicadamente por minha irmã Elisabeti – encarregada da mesa de minhas festas de aniversário. Como não lembrar também de outra delícia italiana, o “Crostoli” – esse não encontrado nos manuscritos estudados – mas que me traz lembranças inesquecíveis. Foi assim em uma das últimas visitas que fizemos a Lurdes, minha tia paterna, que, entre um assunto e outro foi capaz de esquivar-se e, rapidamente, preparar a massa, fritá-la, passá-la no açúcar e servi-la com o café fresquinho.

A família é a primeira referência dos cheiros, sabores e costumes alimentares passados dos mais velhos a nós de forma quase imperceptível. Tais sentidos povoaram-me a infância e ainda estão presentes nas minhas preferências gastronômicas. Sou grata a todas essas pessoas, presentes ou não, às que ainda estão entre nós e às que já nos deixaram – sobretudo a Josephina, minha querida mãe –, pelos ensinamentos recebidos e pelas lições de convívio familiar. Às minhas irmãs Elisabeti, Ebe e ao meu irmão Antonio Alberto meu muito obrigado pelo apoio que me prodigalizaram, sempre compreensivos sobre os motivos do provisório afastamento de nossa convivência, motivado pela realização deste trabalho.

No âmbito institucional, agradeço à direção do Centro de Lógica, aos funcionários da biblioteca Michel Debrun e dos Arquivos Históricos do Centro de Memória da Unicamp, em especial a Aline Assencio. Aos colegas: Marcos Munhoz, Henrique Mendes Lucarelli, Ligia Guido, Carol G. Mendes, Juliana Gessuelli Meirelles, Lucas Militão e Rafael Nogueira de Souza. De meus queridos sobrinhos – entre tantos – cito a nova geração: João Victor, Pedro, Anita, Alice, Gabriel e Lucas. Não poderia deixar de mencionar com destaque a inestimável colaboração de minha sogra Concilia, por me ter ensinado a preparar a massa folhada, lida por várias vezes nos registros de minhas personagens. A Fernanda Cruz, Ricardo Morelli, Lucas Balieiro e Regis Gonçalves pela digitação, tradução e revisão de meu texto.

(17)

Agradeço a Maria Aparecida Alvim de Camargo Penteado pela cessão do caderno de receitas de sua avó Barbara do Amaral Camargo Penteado, a Babica, e pelo relato da trajetória de vida de seus familiares. A Maria Teresa Garcez pelo livro de cozinha que pertenceu a sua família. A Romilda Casizzi Baldin pelas imagens e pela gentileza de ceder-me o exemplar que trata da história de Campinas.

A Gilberto Gatti, amigo e leitor dos originais, obrigada pelas sugestões e por compartilhar seus conhecimentos sobre Campinas, a cidade que escolhi para viver. Nesse mesmo sentido, agradeço a José Marcos da Silva, a quem para além da terapia, compartilhou comigo seus saberes sobre a história dessa cidade. A Elizabete Mergulhão por seus conselhos e, por fim, a minha querida amiga e fisioterapeuta Juliana Belchior Silveira Siwatz, que me ajudou a suportar as tantas horas sentada à frente do computador – seu interesse se renovava a cada sessão, na medida em que eu acrescentava uma nova informação a essa história, deixando-a a imaginar qual seria a postura – supostamente senhorial – de Custódia, Anna Henriqueta e Barbara, três mulheres, três personalidades distintas. A Wanessa Ásfora Nadler e Maria Henriqueta Gimenes Minasse agradeço as sugestões e a generosidade de terem aceitado compor minha banca de qualificação.

Registro minha especial gratidão à professora Leila Mezan Algranti – minha orientadora –, exemplo de historiadora e mestre, comprometida em ajudar-nos a trilhar o difícil caminho da pesquisa, por meio do qual se alcança o conhecimento. Obrigada pelos conselhos, ensinamentos e por sua amizade.

Ao historiador Fernando Antonio Abrahão – querido amigo, namorado e marido – que foi capaz de compreender e tolerar os momentos de cansaço e irritação inerentes à elaboração de uma tese de doutorado, mas que soube também compartilhar a alegria resultante de cada etapa vencida nessa trajetória, durante a qual sempre esteve ao meu lado, cúmplice e solidário.

(18)
(19)

Introdução

O prazer da mesa é a sensação refletida que nasce das diversas circunstâncias de fatos, lugares, coisas e personagens que acompanham a refeição.

O prazer de comer, nós o temos em comum com os animais, supõe apenas a fome e o que é preciso para satisfazê-la.

O prazer da mesa é próprio da espécie humana; supõe cuidados preliminares com o preparo da refeição, com a escolha do local e a reunião dos convidados.1

As palavras de Brillat-Savarin, entusiasta dos prazeres da mesa, descortinam o universo de apreciações gastronômicas que o historiador cultural tem sob seus olhos quando opta por trabalhar com o tema da História da Alimentação.

Nos últimos anos, essa temática tem suscitado o interesse dos estudiosos, quer seja pela potencialidade de análises no âmbito das ciências humanas, quer pela possibilidade de construção de novos estudos históricos cotejando fontes diversas, tais como cadernos de receitas, livros de culinária, relatos de memorialistas ou ainda cardápios, os quais permitem trazer à tona não apenas questões de produção e consumo dos alimentos, mas também dos usos e costumes, códigos e ritos relacionados ao ato de alimentar-se, em um determinado locus espacial e temporal. Como apontou Carlos Roberto Antunes, “O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanências e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social.”2

Esse interesse pela história da mesa deve-se ao fato de que a partir da comida, uma comunidade expressa suas emoções, os significados coletivos, suas pertinências, e até mesmo o contexto das relações sociais que as configura.3 Segundo o sociólogo e antropólogo Claude Fischler “... as incorporações alimentares dos homens são o alicerce da identidade de uma sociedade e ao

1

BRILLAT-Savarin, Jean-Anthelme. A fisiologia do gosto. (1825). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.170.

2

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A comida como lugar de história: as dimensões do gosto. História: Questões & Debates. Editora UFPR, n.54, jan./jun. 2011. p.108.

3

(20)

mesmo tempo definidoras da sua alteridade. A alimentação e a cozinha são um elemento vital no sentimento coletivo de pertencimento social.”4

Nossa atração pelo estudo das práticas alimentares surgiu do contato com os cadernos manuscritos de receitas pertencentes a famílias residentes em Campinas e depositados nos Arquivos Históricos do Centro de Memória da Unicamp (CMU-Unicamp). Em 2004, o professor Hector Hernán Bruit coordenou o grupo de pesquisa “História da Alimentação em São Paulo”, do qual participamos, cujos estudos perpassavam as questões da sociabilidade, da comensalidade e dos modos de vida das famílias paulistas, em busca do entendimento das práticas alimentares dentro de um contexto histórico e social definido.

Dessa convivência singular resultou a dissertação de mestrado Mobiliário e utensílios domésticos dos lares campineiros (1850-1900), defendida na Unicamp em 2008. Nessa pesquisa nos detivemos especialmente nas questões materiais da alimentação, identificamos os espaços da casa e os objetos utilizados no preparo e no consumo dos alimentos. Dessa forma corroboramos a hipótese de que Campinas, na segunda metade do século XIX, vivenciou um processo de modernização e sofisticação nas formas de morar e de receber – momentos de sociabilidade proporcionados pelos jantares e banquetes oferecidos pelos membros da elite cafeeira a seus pares.5

O contato com as fontes, especialmente com os cadernos de receitas manuscritos, despertaram nossa curiosidade para entender por que as jovens e senhoras paulistas confeccionavam esses documentos e o que os receituários evidenciavam em termos de mudanças culturais e do cotidiano familiar.

Uma série de outras perguntas foi surgindo e decidimos empreender o presente trabalho. Foram analisados nessa pesquisa oito manuscritos culinários, os quais estão sob a responsabilidade dos Arquivos Históricos do CMU. Esses

4 « L’incorporation est également fondatrice de l’identité collective et, du même coup, de l’alterité.

L’alimentation et la cuisine sont un élément tout à fait capital du sentiment collectif d`appertenace. » FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Le goût, la cuisine et le corps. Paris: Éditions Odile Jacob, 1993. p.68.

5

ABRAHÃO, Eliane Morelli. Morar e viver na cidade. Campinas (1850-1900). Mobiliário e utensílios doméstico. Campinas: Alameda Editorial, Fapesp, 2010. 223p.

(21)

receituários pertenceram às famílias Quirino dos Santos e Simões, Theodoro de Sousa Campos Jr. e Camargo Penteado.

Custodia Leopoldina de Oliveira, herdeira dos Quirino dos Santos e Simões, legou aos seus descendentes quatro cadernos manuscritos de cozinha. Foram escritos entre os anos de c.1863-1873 e juntos totalizam 144 páginas de registros de comida.

Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro, mãe de Theodoro de Sousa Campos Jr, redigiu três receituários de cozinha. Necessitou de 124 páginas para registrar suas escolhas, entre os anos de c.1900-1940.

Barbara do Amaral Camargo Penteado, por sua vez, deixou à filha e, posteriormente, à neta Maria Aparecida Alvim de Camargo Penteado, um único manuscrito com receitas de comida, de medicamentos, de higiene e conservação de alimentos anotadas em 195 páginas, durante os anos de c.1895-1940.

Trata-se de três senhoras pertencentes a famílias da elite econômica, política e intelectual de Campinas, cujas redes sociais eram mantidas e fortalecidas durante os vários encontros proporcionados por chás, jantares, bailes e saraus. Suas sugestões gastronômicas, portanto, eram compartilhadas com os convidados.

A partir da leitura desses cadernos manuscritos de receitas buscamos, inicialmente, entender das escolhas feitas pelas mulheres por determinados alimentos em detrimento a outros à arquitetura de confecção desses documentos, os quais, na concepção de Carlos Antunes dos Santos, seguem o padrão imaginado e adotado por suas autoras.6 Investigamos, também, de que maneira as jovens eram induzidas a elaborar seus próprios manuscritos culinários e o quão importante teria sido, à época, a produção desses registros, quer fosse para orientá-las adequadamente a cuidar de suas próprias casas, quer como item fundamental à composição de seus enxovais de casamento.

Nesse espectro de análises buscamos compreender a participação das mulheres na definição das escolhas alimentares de suas famílias e de seus iguais,

6

(22)

já que as redes de relações sociais poderiam ser uma possibilidade da transmissão e troca dos saberes culinários. Os cadernos de receitas, nesse caso, configurariam um meio de transcrição de conhecimentos obtidos ao longo da vida, que poderiam ser transmitidos às gerações seguintes, perpetuando assim um regime alimentar e mesmo um estilo de vida próprio desse meio social.7

Em nossa pesquisa atual interessa-nos, entre outros tópicos, identificar como se davam as combinações de produtos alimentares, quais os mais utilizados, o intercâmbio de saberes nacionais ou internacionais, as perpetuações, descontinuidades e inovações de sabores na cozinha da elite cafeicultora, bem como dos ritos e gestualidades presentes nas maneiras à mesa e dos locais de sociabilidade alimentar. Os cadernos de receitas estudados apresentam o que se poderia comer e não o que de fato era servido nas mesas dessas famílias. Mesmo sem poder afirmar quais receitas foram efetivamente preparadas e consumidas, são as permanências de algumas delas que possibilitam o rastreamento das instruções que seriam usuais. O exemplo clássico é o pão de ló, também chamado de “pão de lot”, presença certa em todos os cadernos analisados.

Em contrapartida, foram observadas descontinuidades, no confronto entre as diversas receitas anotadas. Está nesse caso o Manjar Branco ou Real, denominação dada por Custodia Leopoldina de Oliveira a uma iguaria feita à base de peito de frango. Seus ingredientes e modos de preparo estão registrados em receituários culinários desde a Idade Média. No Brasil, a receita do Manjar Branco constou em livros dedicados especificamente ao preparo de doces tais como, o Dicionário do Doceiro Brasileiro (1892) e o Doceiro Nacional (1895, 4.ed.).8

A circularidade de saberes entre as várias gerações de familiares, será de alguma forma pensada em nossas análises quando refletirmos sobre a possível influência que os livros de cozinha impressos e os periódicos em circulação à época – os quais traziam sugestões de cardápios e instruções de comida –,

7

DEMETERCO, Solange Menezes da Silva. Sabor e saber: livros de cozinha, arte culinária e hábitos alimentares. Curitiba 1902-1950. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2003.

8

REGO, Dr. Antonio José de Souza. Dicionário do Doceiro Brasileiro. (1892). Raul Lody (org.). São Paulo: Ed. Senac, 2010. DOCEIRO Nacional. 4.ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1895. p.42. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00655700.> Acesso em: 15/02/2012.

(23)

tiveram sobre as escolhas feitas pelas mulheres no momento em que elaboraram seus alfarrábios.

Para nossos propósitos, são fontes valiosas de pesquisa cadernos de receitas, livros de cozinha, periódicos de época, documentos cartoriais e pessoais, nos quais será possível apreender os saberes e práticas alimentares, os usos e costumes referentes aos aspectos materiais da casa – espaços destinados ao preparo e ao consumo dos alimentos –, as transformações culturais e sociais vivenciadas pela sociedade e, principalmente, a participação das mulheres nos usos e costumes da época. Pensamos, mais especificamente, na definição de sabores, comportamentos, ritos e gostos do cotidiano familiar e nos momentos de sociabilidade proporcionados pelas festas e jantares oferecidos à sociedade, em Campinas, no período estudado. Por meio do rastreamento dessas fontes, buscaremos, enfim, compreender a dinâmica cultural e social dessa sociedade cafeicultora em seu cotidiano.

Na definição do período de nossas análises foram considerados acontecimentos historicamente importantes que contribuíram para configurar aquela sociedade. Esse período corresponde ao auge do ciclo cafeeiro na região denominada de Oeste Paulista, quando se consolidou uma elite econômica composta principalmente por cafeicultores, mas também negociantes estrangeiros, exportadores, banqueiros, e pequenos industriais já estabelecidos na cidade de Campinas em finais do século XIX.9 Nesse período, os principais ramos da atividade industrial ou manufatureira eram voltados para a fabricação de produtos metalmecânicos e de transportes (veículos de tração animal), além de produtos alimentícios, bebidas (cerveja), chapéus, mobiliário, calçados, couros, óleos vegetais, sabões e velas.10

9

DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. (1880-1945). São Paulo, Rio de Janeiro: Difel, EDUSP, 1971. 269p.

10

A pesquisadora Ema Rodrigues Camillo apontou que Campinas contava com trinta e quatro fábricas sendo que as metalmecânicas e de transporte em conjunto representavam um terço do total das trinta e quatro empresas arroladas por ela, entre o período de 1852 a 1887. CAMILLO, Ema E. Rodrigues. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1887). Campinas: Centro de Memória, Mercado de Letras, 1998.

(24)

De acordo com Charles Wright Mills, as pessoas que ocupam o topo da hierarquia das principais instituições de uma sociedade podem ser consideradas como constituintes de sua elite11. Nesse sentido, não é apenas o critério econômico que basta para definir essa camada social. A elite incorpora também ao seu comportamento elementos culturais e civilizatórios no sentido de se expressar socialmente. Ela prima por seguir os padrões considerados de “bom gosto”, e fazer uso das normas consagradas costumeiramente, bem como das contidas nos manuais de comportamento, criando assim mecanismos de pertencimento, que servem à manutenção de seu status social.12

Desde a década de 1860, os empreendimentos urbanos gerados graças à cafeicultura transformaram significativamente Campinas, que se converteu em uma das principais cidades da Província de São Paulo. A modernização da urbe se espelhava nos modelos europeus, principalmente franceses, quer seja nas formas de morar, com construções que atendiam ao discurso higienista, quer no culto à saúde e à beleza, e até mesmo na valorização da cultura, indicativos da consolidação de uma cidade civilizada e moderna.

Cabe aqui evocar a origem desse comportamento por parte dos representantes da elite brasileira. A chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, deu-se em um momento no qual a alimentação se afirmava como importante critério de diferenciação social – assim como outros usos e costumes trazidos da Europa. Saber comportar-se em público, especialmente à mesa, tornou-se para os membros da elite local um hábito necessário com que expressar sua conformidade cultural e social com os pares portugueses. Essas novas formas de distinção, copiadas dos modelos de comportamento adotados nas cortes europeias, foram o meio pelo qual as elites açucareira e cafeicultora encontraram para continuar mantendo sua distinção social. O domínio do savoir vivre – que implicava ostentar desde o refinamento material, com casas bem

11

MILLS, Charles Wright. A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962. pp.29-30.

12

PADILHA, Marcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo dos anos 20. São Paulo: Annablume, 2001. pp.16-21. PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. A arte de receber. Distinção e poder à boa mesa. (1900-1970). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2004.

(25)

aparelhadas e decoradas, até um estilo corporal, por meio de modos elegantes a serem adotados em público, como no ato de receber convidados – reforçava o seu pertencimento social.13 Nas palavras de Amaral Lapa, “A sociedade senhorial, ao contrário da burguesa, agarra-se ainda a uma significância valorativa de gestos, comportamentos, pertences, apresentação e aparência que lhe conferem certa identidade.”14

Contudo, esse segmento intermediário que surgia na sociedade brasileira se espelhava na sociedade senhorial, copiando os modos de vida da aristocracia cafeeira.15

Para empreender a presente pesquisa, além dos cadernos manuscritos de receitas, fonte e objeto de estudo, lançamos mão de outros documentos, os quais serviram ao propósito de complementar nossas investigações sobre as práticas alimentares no universo delineado. No diálogo empreendido com os receituários recorremos aos escritos de memorialistas e viajantes, aos periódicos de época, dentre eles, jornais, almanaques e revistas, além de documentos cartoriais e pessoais, como os Inventários post-mortem e cartas.

No caso dos Inventários post mortem disponíveis no Fundo Tribunal de Justiça de São Paulo - Comarca de Campinas, sob a guarda do Centro de Memória da Unicamp, procuramos identificar, inicialmente, o processo de transmissão de bens de uma geração à outra, na expectativa de encontrar informações detalhadas sobre a opulência material das três mulheres estudadas. No tocante aos padrões de consumo alimentar, as notas fiscais de estabelecimentos comerciais, anexadas aos Inventários, descrevem os gêneros alimentícios adquiridos pelo inventariado e sua família.

13

PILLA, op.cit., pp.54-56.

14

LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros. Campinas 1850-1900. São Paulo: EDUSP, Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p.106.

15

A adoção de hábitos e costumes burgueses pela aristocracia agrária, antes mesmo da formação de uma burguesia nacional, se deu através do incipiente processo de industrialização pelo qual passou a cidade de Campinas na década de 1850. Portanto, burguesia aqui não deve ser entendida enquanto classe social – burguesia, proletariado –, mas sim como segmentos sociais, estilos de vida. Sendo que o aburguesamento seria um estado de sociedade onde a nobreza procurava seguir padrões europeus de comportamento. ABRAHÃO, op.cit., 2010. pp.132-133. LAPA, op.cit., 2008, p.103.

(26)

Ao analisarmos os inventários referentes aos proprietários de estabelecimentos comerciais, pudemos, por meio do rol da composição dos estoques dos armazéns e vendas de “secos e molhados”, bem como de padarias e congêneres, confirmar se as receitas registradas nos cadernos das três proprietárias eram compatíveis com os gêneros comercializados na região e, portanto, passíveis de ser executadas. Verificamos, por exemplo, se as amêndoas, o bacalhau, o camarão, entre outros artigos constantes dessas receitas, estavam à disposição dos consumidores ou dos cozinheiros.

Por meio da leitura dos almanaques, coletamos outros detalhes sobre os estabelecimentos comerciais voltados à alimentação, tais como padarias, sorveterias e restaurantes instalados em Campinas. Essa fonte nos ofereceu pormenores sobre as transformações que ocorriam na urbe, como a construção de praças, instalação da iluminação pública e calçamento de ruas.16

Nos jornais em circulação à época, deparamo-nos com anúncios sobre a oferta de emprego para cozinheiras, cozinheiros e doceiras. Foram encontradas também propagandas do comércio sobre venda de alimentos, como por exemplo, doces de figo, ou ainda, a entrega de alimentos em domicílio. Por sua vez, as revistas femininas, na virada do século XIX para o XX, veiculavam sugestões de cardápios para o dia a dia e as ocasiões festivas, tais como o que preparar para a ceia de Natal. Essas informações enriqueceram nossos conhecimentos sobre o cotidiano da cidade e o estilo de vida das autoras estudadas.17

Debruçamo-nos também sobre os relatos de memorialistas e viajantes estrangeiros em busca de respostas às nossas indagações sobre os hábitos cotidianos das famílias. É o caso dos escritos deixados por Maria Paes de Barros em que se detalhavam hábitos de consumo alimentar vigentes na Província no período estudado, quer seja nas viagens realizadas pelas famílias ou em dias de

16OLIVEIRA, Maria Coleta. “Os Almanaques de São Paulo como fonte de pesquisa”. In: MEYER,

Marlyse (org.). Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, Memorial-Secretaria de Cultura, 2001. GALZERANI, Maria Carolina Bovério. O Almanaque, a locomotiva da cidade moderna: Campinas, décadas de 1870-1880. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Estadual de Campinas, 1998.

17

Jornais: Gazeta de Campinas, Campinas; Estado de S.Paulo, São Paulo. Revistas: Fon Fon, Rio de Janeiro; A Mensageira e Echo, São Paulo.

(27)

festa. Os viajantes, por sua vez, nos propiciam uma visão peculiar do papel da mulher no lar bem como, observações sobre as refeições em sociedade. Por estarem interessados nas práticas alimentares dos lugares por onde passavam, seus registros elucidam aspectos importantes dos comportamentos adotados à mesa, detectando diferenças ou semelhanças com os de sua origem. 18

Papel preponderante tiveram em nossa pesquisa ostrês livros de receitas – identificados no decorrer do trabalho – publicados por mulheres pertencentes à sociedade de Campinas e paulista na segunda metade do século XIX. Ao cotejar com outras essa fonte documental, nossa intenção foi descobrir, por meio de similaridades e diferenças, se o conteúdo desses cadernos seguia o mesmo padrão dos livros impressos, ou introduziam novidades. Procuramos, assim, identificar que receitas estampavam o mesmo título, a persistência das formas de preparo, ou as alterações sofridas ao longo do tempo além, é claro, do funcionamento da troca de saberes entre os indivíduos pertencentes à mesma rede de relações sociais.

Os livros de receitas selecionados são: Variadíssimas receitas escolhidas de cosinha, doces, Bolos, licores, etc, etc.”, de autoria de Lucia Queiroz, publicado pela Casa Genoud, em 1916; A boa dona de casa, de Sylvia Ferreira de Barros, publicado por Estúdio Gráfico Rossolito, em 1931; e Doceira paulista, de Honória C.Martins de Mello, editado por Pocai & Companhia, no ano de 1916, em Itapetininga, Estado de São Paulo.19

Ampliando o leque de fontes, para além dos três livros, utilizamos as obras publicadas no Brasil no período de nosso estudo, tais como: Dicionário do doceiro brazileiro (1892), do Dr. Antonio José de Souza Rego, reeditado pela editora Senac São Paulo; Doceira brasileira de Constança Oliva de Lima (1856, 2.ed.),

18

Vários memorialistas relataram a cidade de Campinas. Dentre eles: Amélia Rezende Martins, Celso Maria de Mello Pupo, Vitalina Pompêo de Sousa Queiroz, Leopoldo Amaral, Edmo Goulart, José de Castro Mendes. Além do carioca Wanderley Pinho e da paulistana Maria Paes de Barros. Quanto aos viajantes que passaram por Campinas citamos: Augusto-Emílio Zaluar, em 1861; J.J. von Tschudi, 1860 e Auguste de Saint-Hilaire.

19

MELLO, Honoria C. Martins de. Doceira Paulista. 2. ed. São Paulo: Pocai & Comp., 1916; QUEIROZ, Lucia. Variadíssimas Receitas escolhidas de Cosinha, Doces, Bolos, Licores, etc. Campinas: Typ. Casa Genoud, 1916; [BARROS, Sylvia Ferreira de]. A Boa Dona de Casa por uma campineira. [São Paulo]: Est. Gráfico “Rosslillo”, 1931.

(28)

publicado por Eduardo & Henrique Laemmert; e Doceiro nacional (1895, 4.ed.), pela Garnier.20 Nessas publicações dá-se destaque à doçaria, um segmento da alimentação muito representada em todas as fontes consultadas, como veremos detalhadamente a seguir.

Outra importante fonte documental são os menus de jantares cerimoniosos. Identificamos para Campinas oito ementas, as quais integram a coleção Thomaz Alves Filho, médico nascido no Rio de Janeiro, que escolheu a Princesa do Oeste para residir e clinicar. Quanto aos outros dois exemplares, um pertenceu a família de Custodia Leopoldina de Oliveira e o segundo, sob a guarda do Centro de Ciências Letras e Artes (CCLA), compõem o arquivo de Manoel Ferraz de Campos Salles, terceiro Presidente da República, nascido na cidade no ano de 1841.21 Para além desse conjunto documental, localizamos ementas de refeições ofertadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, documentos estes guardados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e Museu da República. Além de descrições de jantares publicadas no jornal O Estado de São Paulo, da década de 1910.22 Essas listas contribuíram para elucidar possíveis usos e apropriações dos manuscritos culinários no momento das mulheres confeccionarem os cardápios de jantares cerimoniosos. Bem como, possibilitam alcançar o que efetivamente era consumido pelos comensais e quais eram a composição e sequência dos pratos nessas ocasiões.

Esse diálogo com as fontes, entre elas a vasta bibliografia consultada, possibilitou-nos (re)constituir práticas culturais ditas “modernas” e “civilizadas”, e por meio – especificamente das práticas alimentares – descortinar os saberes e sabores, os códigos e ritos incorporados pela sociedade de Campinas. A

20

REGO, op.cit., 2010. DOCEIRO Nacional, op.cit., 1895. LIMA, Constança Oliva de. Doceira Brasileira ou Nova Guia Manual para se fazerem todas as qualidades de doces. 2.ed. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1856.

21

Médico nascido no Rio de Janeiro, no ano de 1857, fixou residência em Campinas até seu falecimento no ano de 1920.

22

Na cidade do Rio de Janeiro os cardápios estão no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e em São Paulo no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP).

(29)

naturalização dessas práticas é uma formade construir/reconstruir identidades, ao mesmo tempo explicitar a alteridade.23

O presente estudo está estruturado em uma introdução, seguida de quatro capítulos e da conclusão. No primeiro capítulo tratamos do recorte cronológico e espacial do tema e realizamos um balanço historiográfico dialogando com trabalhos que tratam das práticas alimentares no Brasil. Esses trabalhos se prestam como auxiliares na compreensão de nosso objeto de estudo e nas análises de nossa principal fonte de pesquisa, quais sejam, os cadernos manuscritos de receitas das mulheres residentes em Campinas.

Ainda nesse primeiro capítulo, abordamos as características definidoras do espaço histórico e sócio-econômico deste estudo, de modo a contextualizar o locus onde se deu a participação das senhoras da elite paulista na difusão de padrões de comportamento validados por sua classe social. Nesse contexto, nos deteremos na trajetória de três mulheres, as quais deixaram aos seus pósteros o legado dos receituários culinários compilados ao longo de sua vida. Custodia Leopoldina de Oliveira, Barbara do Amaral Camargo Penteado e Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro são representantes de três gerações distintas. Elas podem, no entanto, ter se relacionado entre si, no pressuposto de que suas famílias pertenceram ao mesmo estrato social, onde todos se conheciam ou mantinham algum grau de parentesco. No último tópico trataremos dos livros de cozinha estudados e do possível uso deles como inspiradores às três autoras dos manuscritos.

No corpus da instrução, realizada no capítulo “Possibilidades de leituras e interpretações dos receituários culinários”, dividido em três subitens, identificamos a estrutura dos cadernos, e a maneira como foram elaborados por suas três autoras. Custodia Leopoldina de Oliveira, Anna Henriqueta Albuquerque Pinheiro e Barbara do Amaral Camargo Penteado seguiram, e em alguns casos criaram, um padrão estético tanto na escrita quanto na configuração que procuravam dar

23

(30)

aos seus receituários, por meio dos quais podem ser descortinadas as escolhas e preferências de cada uma delas.

No segundo item desse tópico, mimetizando as leituras que fazem as cozinheiras em seu mister, buscamos identificar os utensílios, os pesos e medidas, e as técnicas que envolviam o preparo dos alimentos. Verificamos também, a possibilidade de as mulheres, ou suas cozinheiras, poderem efetivamente preparar as receitas registradas em seus cadernos, ou seja, se os ingredientes necessários à elaboração dos pratos estavam à disposição no comércio local. Finalmente, focalizamos a natureza específica dessa escrita feminina e as práticas culturais que permeavam o labor culinário e possibilitavam as trocas de saberes nesse campo.

No capítulo “As escolhas alimentares de Custodia, Anna Henriqueta e Barbara” analisamos a linguagem das receitas, no que tange as operações prescritas, suas descrições, os títulos atribuídos a cada uma delas e os produtos finais resultantes do labor culinário. As instruções registradas por cada autora foram classificadas em seis categorias. Da doçaria aos temperos, identificamos as perpetuações, exclusões, inserções, enfim, as sugestões dessas três mulheres.

A proposta do quarto capítulo, por sua vez, volta-se para os rituais da alimentação – da preparação dos alimentos ao arranjo da casa para receber convidados, amigos e parentes, nos jantares e almoços. É quando se descortina a valorização dessas ocasiões enquanto ato cerimonial. No item “A estética dos alimentos nos cardápios de cerimônias” expusemos, pelo estudo dos cardápios, o que, de fato, era consumido, quais as combinações e as sequência de pratos nos banquetes.

Se levarmos em conta exclusivamente as receitas manuscritas, que expressam originalmente uma intenção, mas não necessariamente sua realização, não temos como afirmar se as receitas neles registradas foram executadas. Se nos detivermos no preparo de algumas iguarias, vamos nos deparar com a reincidência de sabores relacionados a determinadas comemorações. É o caso do pé de moleque, da pamonha e das rabanadas, cujo consumo reflete perpetuações de alimentos ligados ao calendário religioso. Ao nos debruçarmos sobre os usos e

(31)

costumes relacionados a esses quitutes, poderemos saber se a tradição de consumo desses doces foram perpetuadas nos cadernos de receitas das três mulheres que elegemos como motivo de nossa pesquisa.

(32)
(33)

1. As mulheres da elite cafeicultora paulista e a escrita de receitas

culinárias

Neste capítulo, discorreremos sobre o recorte espacial e cronológico de nosso estudo, que tem como objeto a cidade de Campinas, São Paulo, no período de 1860 a 1940. Em seguida, procedemos a um balanço historiográfico comparativo, tendo como referência os estudos que dialogam com esta pesquisa. Comecemos por assinalar que a modernização de Campinas, a partir dos anos de 1860, propiciou condições para que as mulheres da elite cafeicultora fossem educadas formalmente ou por preceptoras contratadas pelas famílias. Em meio à literatura que havia à sua disposição se incluíam livros de cozinha publicados na Europa e no Brasil, bem como produtos e utensílios que auxiliavam nas tarefas domésticas e na elaboração da mais simples às mais sofisticadas receitas culinárias.

Veremos em seguida como se dava a inserção das senhoras Custodia Leopoldina, Barbara do Amaral Camargo Penteado e Anna Henriqueta de Albuquerque Pinheiro nesse universo social, traçando suas trajetórias de vida. Nosso intento será o de explicitar a participação dessas mulheres na configuração das práticas alimentares de seu ambiente social por meio do processo da escrita culinária que se materializava na elaboração e reiteração de receitas que se perpetuaram através dos tempos.

Finalmente, no item “A posse e circulação de livros de cozinha: uma literatura inspiradora” nosso intuito é o de apreender a relação entre os textos publicados e a redação dos manuscritos culinários, supostamente inspirados em tais obras. Reportamo-nos, ainda, aos receituários impressos a partir dos manuscritos redigidos por mulheres que viviam em Campinas ou mantiveram alguma relação com as famílias da alta sociedade residentes nessa cidade.

1.1 A história da alimentação e os compêndios culinários

Comer e beber são fenômenos socioculturais que variam segundo o tempo e o espaço, seja na dimensão temporal, o processo histórico ou o tempo cronológico, medido, por exemplo, pelo ritmo das estações; seja, na dimensão

(34)

espacial, a interação dos distintos grupos sociais em uma dada sociedade, ou ainda no seio das nações ou regiões. Em consequência, o estudo dos saberes e sabores compartilhados no cotidiano está atrelado a considerações relativas ao ambiente cultural através do qual se dá a transmissão intergeracional de sua memória gustativa.

A alimentação compõe-se de um conjunto de práticas que envolvem desde a produção dos alimentos até as técnicas de preparo, os artefatos utilizados nessa tarefa e os serviços de mesa.1 O tema é muito amplo e comporta desde as análises econômicas – centradas na produção, estocagem, comércio e consumo – , até as nutricionais e biológicas, além das históricas e culturais – que focalizam o comer e a comida como elementos simbólicos, compreendendo as formas de prepará-los e de consumi-los, o acesso aos produtos alimentícios e a resultante constituição de hierarquias e identidades sociais.2 Nessa linha de raciocínio, María de Los Angeles Pérez Samper compreende a alimentação como uma necessidade vital de todo ser humano, mas também como símbolo econômico, social e cultural, por meios do qual se manifestam continuidades e mudanças.3

As pesquisas relacionadas à História e Cultura da Alimentação percebem a comida e o comer como elementos de um universo no qual se preservam, da forma mais habitual e até mesmo afetiva, tradições sociais, sejam elas componentes de um todo coletivo ou, mais particularmente, do espaço familiar.4

Conforme apontou Daniel Roche, a História da Alimentação configura um campo de estudo específico e original porque “é uma história em que se encontram a natureza e o humano, uma natureza transformada, já histórica e cultural”, em que se lê o resultado de um imenso trabalho de incorporação ao

1

ALGRANTI, Leila Mezan. À mesa com os paulistas: saberes e práticas culinárias (séculos XVI- XIX). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011. http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300482888_ARQUIVO_AMESACOMOSPAULI STAS2versaoAnpuh.pdf>. Acesso em:03/12/2011.

2

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra; CARNEIRO, Henrique. A história da alimentação: balizas historiográficas. Anais do Museu Paulista. História e cultura material. Nova Séria, pp.9-91, jan./dez.1997.

3

PÉREZ SAMPER, María de los Ángelez. Mesas y cocinas en la España del siglo XVIII. Espanha: Ediciones Trea, 2011. p.9.

4

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. Por uma história da alimentação. História: Questões & Debates, Curitiba, v.14, n.26/27, pp.154-171, jan/dez, 1997.

(35)

processo alimentar de inúmeros produtos vegetais e de domesticação de espécies animais, que resultam em práticas alimentares unificadas nos diversos continentes. “Por fim, é talvez o setor em que as necessidades, as formas simbólicas e as oposições de classes se cruzem com mais intensidade.”5

Por outro lado, concordamos com Solange Demeterco, quando esta assinala que o alimento está presente em todos os momentos e em todas as instâncias da vida social, e que possui uma significativa carga simbólica a qual termina por determinar regras e valores de uma sociedade.6

Assim, ao ser colocada uma questão aparentemente tão simples – por que e como as pessoas comem? – ela pode conduzir-nos a uma consideração mais ampla, de que o ato de comer não se limita a uma necessidade biológica de todos os seres vivos, mas compreende, fundamentalmente, o pensar os fundamentos simbólicos implícitos nesse ato.

Quando Brillat-Savarin observou – "diz-me o que comes e te direi quem és", ou: “a descoberta de um manjar causa mais felicidade ao gênero humano do que a descoberta de uma estrela”7 – ele cunhava duas frases de um apreciador da gastronomia, que buscou em seu estudo filosófico distinguir o caráter essencial do prazer da mesa para o homem. A procura pelo significado da alimentação na História da Humanidade é importante para que se possa distinguir o ato de comer – no qual o homem não seria diferente das outras espécies animais quanto à necessidade de nutrir-se – da ênfase no prazer de comer, especificamente humana. Segundo Savarin, a hospitalidade, o aperfeiçoamento das línguas e os rituais e preceitos que envolvem a alimentação muito provavelmente surgiram durante as refeições.8

5

ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo séc.XVII-XIX. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro, Rocco, 2000. pp.293-294.

6

DEMETERCO, Solange M. da Silva. Sabor e saber: livros de cozinha, arte culinária e hábitos alimentares. Curitiba: 1902-1950. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2003.

7

BRILLAT-SAVARIN, Jean-Anthelme. A fisiologia do gosto. (1825). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.15.

8

(36)

Se considerássemos que as pessoas comem apenas por uma necessidade biológica, poderíamos caminhar para um estudo da alimentação sob o ângulo da saúde, da medicina social, da higiene privada e pública, da ingestão de calorias e proteínas. Essas abordagens não são objeto deste estudo. Não pretendemos, tampouco, tratar dos tabus ou dos distúrbios alimentares, como a anorexia ou bulimia. A excessiva busca pelo corpo perfeito – como observou Fischler – tem impelido as pessoas, principalmente mulheres, a fazer do alimento um vilão da saúde, trazendo em consequência tais distúrbios alimentares.9

O que nos interessa, precipuamente, é analisar a alimentação do ponto de vista de seus significados simbólicos para os indivíduos e grupos sociais. A despeito do fato de que a comida seja o sustento e o comer um ato vital, sem o qual não há vida possível, apenas o homem cria práticas comportamentais e ritualísticas em torno da alimentação – tais como a escolha dos alimentos, os cuidados especiais com o preparo e a decoração dos pratos, o arranjo da mesa nas refeições e regras para a recepção dos convivas. Por meio dessas práticas o homem atribuiu significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que transcende a simples metabolização dos alimentos pelo organismo.10

Acompanhar o dia a dia das senhoras donas de casa, no interior de seus lares, é uma das formas possíveis de reconstituir as práticas alimentares e apreender as manobras conscientes e inconscientes dos estratos sociais aos quais pertencem e que contribuem para a implantação de modos de vida que se querem símbolos do progresso, modernidade e da civilização. Preparar e servir a comida constituem atos sociais que combinam saberes, sabores, odores, olhares e diálogos, além de atributos de beleza e elegância.

Circunscrever o nosso estudo ao período que vai da década de 1860 a 1940 – tendo início, portanto, no alvorecer do Segundo Império – não significou

9

FISCHLER, Claude; MASSON, Estelle. Comer. A alimentação de franceses, outros europeus e americanos. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. pp.326-327

10

MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antroplógicos, ano 7, n.16, pp.145-156, dezembro 2001. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832001000200008. Acesso em: 2011; FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet. Uma história da gastronomia. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. p.20.

(37)

uma escolha aleatória. Levamos em consideração as alterações econômicas pelas quais passava o país, com a eclosão do cultivo do café no Sudeste brasileiro, que veio suplantar a hegemonia do ciclo açucareiro, cujo protagonista até então tinha sido o Nordeste Brasileiro, e a economia aurífera em decadência nas Minas Gerais. A cafeicultura transformou o cenário nacional, dando destaque às províncias em que prosperava a lavoura cafeeira, a partir do Vale do Paraíba. O recorte histórico que elegemos constitui a época em que a cidade de Campinas, locus de nossa pesquisa, beneficiou-se dessa expansão. A urbe e seu entorno experimentaram um processo de modernização urbana que se refletiu na implantação de serviços de infraestrutura, em mudanças na arquitetura, nas formas de morar e também nas regras de sociabilidade, processos que evidenciavam seu apogeu econômico frente às outras cidades do Estado de São Paulo. Sua localização privilegiada e a malha ferroviária então implantada, agilizaram a comunicação com a capital da província e o porto de Santos, fortalecendo sua função agrícola e comercial.11

Foram também evidentes as transformações no comportamento das famílias da elite, como apontam estudos sobre a cultura material no município. Residências urbanas e rurais – as sedes das fazendas – em Campinas, a partir de 1840, passaram tanto por modificações arquitetônicas quanto pela maior sofisticação da decoração, agora luxuosa, de seus interiores. Os modos de morar e de conviver alteraram-se significativamente pela influência dos costumes europeus, amplamente difundidos entre seus moradores, os quais, ávidos pelo reconhecimento social de seus pares, abriram os salões de suas casas, oferecendo jantares, banquetes e bailes à “boa” sociedade campineira.12

11

BAENINGER, Rosana. Espaço e tempo em Campinas: migrantes e a expansão do pólo industrial paulista. Campinas: Centro de Memória, NEPPO-Unicamp, 1996. pp.13-33(Coleção Campiniana, 5).

12Consideramos como elite campineira a formada pelos “Barões do Café” e as famílias ligadas à

fundação da cidade que, mesmo não tendo sido agraciadas com títulos nobiliárquicos, compunham esse segmento social e econômico. Eles possuíam uma grande quantidade de terras produtivas e de imóveis urbanos. Destacaram-se na nobiliarquia campineira um visconde, uma viscondessa, um marquês, nove barões sendo dois deles da família Ferreira Penteado, que ostentavam os títulos de Barão de Itatiba e de Ibitinga, pai e filho respectivamente, sendo parentes distantes de Barbara do

(38)

Na virada do século XX, a cidade continuou se desenvolvendo, agora em ritmo mais lento, tendo em vista a crise da cafeicultura que se exacerbou com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. No entanto, desde finais do XIX, os cafeicultores vinham expandindo suas atividades econômicas para além da produção agroexportadora, diversificando-as para o grande comércio de produtos agrícolas, manufaturas, indústrias e os créditos com garantia hipotecárias.13 No caso de Campinas, com a introdução da energia elétrica como força motriz, em 1905, surgiram indústrias têxteis, de chapéus, fábricas de fogões, de artefatos de ferro, de papéis, cerâmicas etc. Em consequência, verificou-se um substancial aumento do número de estabelecimentos comerciais.14

A crise que assolou a economia cafeeira a partir do final do segundo decênio do século XX foi responsável por transformações significativas nos hábitos familiares. Assim como os Camargo Penteado – ascendentes de Barbara, personagem deste estudo –, muitas famílias da elite cafeicultora campineira perderam suas fazendas e precisaram viver do trabalho autônomo, como médicos, advogados e em outras profissões liberais, ou até mesmo como assalariados, nas estradas de ferro ou nas indústrias que começavam a se instalar nas cidades da região. Essas transformações acarretaram mudanças internas nas casas urbanas, que pouco a pouco foram remodeladas e se tornaram menores. As donas de casa pertencentes essa aristocracia já não podiam contar com “muitas mãos” para auxiliar nos trabalhos domésticos. Contudo, a introdução de novos utensílios no espaço da cozinha, facilitou sobremaneira o trabalho das mulheres. Entretanto, nem todas ficaram restritas aos cuidados da casa. A partir da criação de escolas normais muitas dessas mulheres passaram a lecionar ou, com a abertura de

Amaral. Camargo. Figuravam ainda nessa elite os comerciantes, industriais e profissionais liberais, compostos em sua maioria por estrangeiros. ABRAHÃO, op.cit., 2010. pp.148-177.

13

LOVE, Joseph. A Locomotiva. São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LOVE, Joseph. Autonomia e interdependência: São Paulo e a Federação Brasileira, 1889-1937. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. 4.ed. São Paulo: Difel, 1985. Tomo III: O Brasil Republicano, pp.53-75. ABRAHÃO, Fernando Antonio. “Padrões de riqueza e mobilidade social na economia cafeeira: Campinas, 1870 – 1940.” In: X Congresso Brasileiro de História Econômica. Juiz de Fora: Universidade de Juiz de Fora, 2013.

14

BADARÓ, Ricardo de Souza Campos. Campinas, o despontar da modernidade. Campinas, Centro de Memória-UNICAMP, 1996. (Coleção Campiniana). pp.34-5. ABRAHÃO, op.cit., 2013.

(39)

oportunidades ao trabalho feminino, puderam desenvolver atividades externas ao lar.15

Essas inovações na direção da funcionalidade tiveram consequências nas escolhas alimentares, porque o tempo despendido no preparo das refeições foi reduzido. São tempos de mudanças econômicas, culturais e sociais. As famílias da elite, antes acostumadas a viver em amplas casas e a contar com vários empregados, a partir da diversificação da economia e do início da industrialização, tiveram seus hábitos cotidianos transformados. Residindo em casas menores, sem dispor da mesma criadagem, o ritmo do trabalho doméstico se alterou e novas práticas alimentares foram introduzidas. As mulheres tiveram, assim, de se adaptar aos novos tempos. Barbara, atenta a essas mudanças, alertou em uma de suas receitas para a questão da praticidade colocando ao final das instruções para o preparo da “Pessegada” (“Bromil”) o seguinte comentário: “[...] Chamamos a atenção para esta receita, por dar um resultado muito satisfatório, é uma receita prática.”16

As transformações econômicas e políticas ocorridas no Brasil desde o final do século XIX, – com destaque para a abolição do trabalho escravo e a queda do Império – fizeram-se refletir na sociedade paulista e campineira. E as elites encontraram nos signos exteriores como a vestimenta, os modos de comportamento em ocasiões públicas e as maneiras à mesa uma forma de preservar o seu pertencimento social, reforçada a todo instante pela exteriorização dos gestos, usos e costumes próprios.17

Nas palavras de Claude Fischler e Estelle Masson

A comensalidade é ao mesmo tempo, um meio de inclusão e de exclusão social. (...). Ela fecha o círculo dos íntimos, fecha as portas do privado em volta dos convivas ou manifesta de maneira

15

SILVA, João Luiz Máximo. Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008. CARNEIRO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato. O sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp, Fapesp, 2008.

16

Arquivos Históricos-CMU. Barbara do Amaral Camargo Penteado (CBACP). Caderno de receitas de Barbara do Amaral Camargo Penteado. Livro 1.

17

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. A moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. PADILHA, Marcia. A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo dos anos 20. São Paulo: Annablume, 2001.

(40)

pública a ordem e o status – públicos – dos que são admitidos a participar da refeição.18

A valorização desses modelos de cortesia e civilidade, pensados aqui sob o enfoque do processo civilizador na conceituação de Norbert Elias, adotados pelas cortes europeias, principalmente a francesa, ganharam destaque junto às famílias das elites no Brasil. O que se convencionou chamar “modos e maneiras civilizadas”, relacionados aos comportamentos prescritos para os prazeres da mesa, foram utilizados como estratégias de distinção e pertencimento social.19

A raiz histórica desses costumes no Brasil pode ser encontrada na transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e na abertura dos portos brasileiros “às nações amigas”. É quando se observa o surgimento de uma nova sociabilidade, explicitada durante as festas realizadas nos recém-construídos salões imperiais e nas grandes residências, que vieram alterar os costumes da “boa sociedade” do Rio de Janeiro do século XIX. Esses modelos de bem estar, de bem receber e de bem servir foram copiados pelas famílias das elites de Campinas, as quais começaram também a abrir os salões de suas casas para oferecer jantares e banquetes à sociedade de seus iguais.20 É nesse contexto, que vamos encontrar as personagens de nossa pesquisa – as mulheres pertencentes a essa elite –, às quais cabia exercer o destacado papel de anfitriãs.

Na historiografia moderna, a alimentação representa uma área de investigação recente nas Ciências Humanas e conforme observou Ulpiano Bezerra de Menezes e Henrique Carneiro no estudo “História da alimentação: balizas historiográficas”, o interesse pelo tema, pelo próprio sentido de dar continuidade à vida, sempre foi objeto de atenção nas análises de cunho biológico, econômico, social, cultural e filosófico. Estas categorias estabelecidas pelos

18

FISCHLER; MASSON, op.cit., 2010. p.123.

19

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. 2.ed. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

20

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A distinção e suas normas: leituras e leitores de manuais de etiqueta e civilidade – Rio de Janeiro, século XIX. Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1-2, pp.139-152, jan./dez.1995.

(41)

autores explicam que os enfoques mudam a própria natureza do objeto de atenção.21

O ato de comer exerce simultaneamente uma função biológica e social.22 Assim História da Alimentação tem estimulado antropólogos, sociólogos, médicos, nutricionistas e historiadores a refletirem e produzirem conhecimento sobre como, onde e com quem se come, tanto na atualidade como em sociedades passadas.

Entre os sociólogos da alimentação existe o consenso de que a relação entre os seres humanos e os alimentos é complexa, tendo eleito como uma das questões centrais de suas pesquisas nesse campo as transformações e permanências das práticas alimentares. Para Jean-Pierre Poulain, a importância que a temática assumiu para a Sociologia é evidente. Por isso, em suas análises buscou por respostas à questão: “[...] De que forma os homens e mulheres concebem a satisfação das suas necessidades alimentares? ”.23

Nos trabalhos de Claude Fischler a simbologia da alimentação é uma temática. Ele destaca que o homem nutre-se também de imaginário e de significados, partilhando representações coletivas. Para esse autor “[...] nós nos tornamos o que comemos”.

Comer: nada de mais vital, nada de tão íntimo. "Íntimo" é o adjetivo que se impõe: em latim, intimus é o superlativo de interior. Incorporando os alimentos, nós os fazemos ascender ao auge da interioridade. [...] O vestuário, os cosméticos, estão apenas em contato com o nosso corpo; os alimentos devem ultrapassar a barreira oral, se introduzir em nós e tornar-se nossa substância íntima.24

Temos convicção de que não se pode abordar a alimentação do ponto de vista do prazer à mesa sem nos voltarmos para o trabalho de Brillat-Savarin, A

21

MENEZES; CARNEIRO, op.cit., 1997. pp.9-91.

22

MENEZES; CARNEIRO, idem, 1997. pp.9-91; SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates, Curitiba, n.42, pp.11-32, jan/jun, 2005.

23

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. lorianópolis: ed. UFSC, 2006. Além dos historiadores culturais, os sociológos, antropólogos e nutricionistas têm propiciado um diálogo interdisciplinar que em muito enriquece o campo da História da Alimentação. GOODY, Jack. Cocina, cuisine y clase. GEDISA, 1995. MINTZ, Sidney W. Sabor a comida, sabor a libertad. Incursiones en la comida, la cultura y el pasado. México: Ciesas, Ediciones de la Reina Roja, CONACULTA, 2003.

24

FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Le goût, la cuisine et le corps. Paris : Éditions Odile Jacob, 1993. p.8.

(42)

fisiologia do gosto (1825). Trata-se de obra pioneira, por ter aberto as portas para pensar a questão da gastronomia. Nesse importante estudo, Savarin abordou a temática sob um olhar cultural, de maneira a distinguir nutrição de gosto, adentrou à comensalidade, às gestualidades, vislumbrando, enfim, a alimentação enquanto manifestação da cultura, aspecto apontado em sua obra por Carlos Antunes dos Santos.25

De acordo com esse mesmo autor, cada vez mais historiadores culturais engajados nas novas e fecundas vias da interdisciplinaridade têm sido atraídos pela História e Cultura da Alimentação.26 Mas a formação de uma tradição historiográfica no campo alimentar deve ser remontada à França, onde essa temática constituiu-se como objeto de pesquisa histórica, nas décadas de 1960-1970. Foram os trabalhos inovadores de Fernand Braudel, na sua abordagem de aspectos da sobrevivência humana – habitação, vestuário e alimentação –, que a História da Alimentação ganhou “[...] fisionomia definitiva no campo da pesquisa histórica.”27

Segundo Braudel, os historiadores deveriam preocupar-se com "as estruturas da vida cotidiana". Ele entendia que seria possível pensar o funcionamento da sociedade a partir do enfoque alimentar, por meio da variedade de suas dietas, procurando determinar de que forma o alimento nutre tanto os indivíduos quanto a sociedade na qual ele está inserido, e como as identidades alimentam e definem grupos sociais.28

Influenciados, inicialmente, pelos antropólogos, os historiadores passaram a estudar as preferências alimentares dos povos, as escolhas dos alimentos, situando a ingestão de calorias na perspectiva das práticas culturais, religiosas e estéticas. Entretanto, a partir da década de 1970, os historiadores culturais 25 SANTOS, op.cit., 2005, p.13. 26 SANTOS, idem, 2005. pp.11-12. 27 SANTOS, ibidem, 2005, p.13. 28

BRAUDEL, Fernand. Retour aux enquêtes. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 16e année, N. 3, 1961. pp. 421-424. <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/

ahess_0395-2649_1961_num_16_3_420723>. Acesso em: 05/08/2010. Braudel Fernand. Alimentation et catégories de l'histoire. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 16e année, N. 4, 1961. pp. 723-28. <http://www.persee.fr>. Acesso em: 05/08/2010. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV–XVIII. Tradução de Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (V.1: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível).

Referências

Documentos relacionados

dois gestores, pelo fato deles serem os mais indicados para avaliarem administrativamente a articulação entre o ensino médio e a educação profissional, bem como a estruturação

Este trabalho tem como objetivo contribuir para o estudo de espécies de Myrtaceae, com dados de anatomia e desenvolvimento floral, para fins taxonômicos, filogenéticos e

One of the main strengths in this library is that the system designer has a great flexibility to specify the controller architecture that best fits the design goals, ranging from

Os alunos que concluam com aproveitamento este curso, ficam habilitados com o 9.º ano de escolaridade e certificação profissional, podem prosseguir estudos em cursos vocacionais

Este dado diz respeito ao número total de contentores do sistema de resíduos urbanos indiferenciados, não sendo considerados os contentores de recolha

Assim sendo, no momento de recepção de encomendas é necessário ter em atenção vários aspetos, tais como: verificar se a encomenda é para a farmácia; caso estejam presentes

(2019) Pretendemos continuar a estudar esses dados com a coordenação de área de matemática da Secretaria Municipal de Educação e, estender a pesquisa aos estudantes do Ensino Médio

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O