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No decorrer da história, as inovações técnicas não substituíram seus antecessores, sendo mais apropriado dizer que estes foram assimilados e reconfigurados, a exemplo da história das técnicas de comunicação. Nesta seção, trato da técnica e da cognição situada, numa breve exploração histórica clássica de como determinadas inovações técnicas levaram a inovações “cognitivas” (subjetivas, nos paradigmas, nas lógicas, nas representações de mundo e homem).

Lévy (1997) explora a relação entre técnica e cognição a partir da seguinte questão: “como e por que diferentes tecnologias intelectuais geram estilos de pensamentos distintos?” Esse autor passa pela construção e gestão da memória e pela produção da temporalidade como dimensões da experiência mediadas por tecnologias da inteligência. Sua análise se inicia pelas sociedades anteriores à escrita, em que a oralidade é um aspecto técnico primário. Nelas, destaca-se o papel da fala e da escuta como vias de transmissão do conhecimento, com a sabedoria sendo passada dos velhos aos jovens. A inteligência é ligada à memória, e as representações auditivas seriam as mais importantes, com os rituais sociais passando pelas narrativas e pela musicalidade. A palavra teria como função não apenas a comunicação, mas a gestão da memória social como um todo.

A estratégia de construção de uma representação tem papel fundamental para evocá-lo na memória. A elaboração de narrativas é uma estratégia de compreensão e memorização que favorece a guarda de uma memória. As informações são mais bem retidas quando associadas a esquemas familiares, e são mais fáceis de lembrar quanto mais estivermos afetivamente envolvidos com ela. Os esquemas simbólicos anteriores subsumem/corrompem a informação nova a seus tipos. Na oralidade primária, prevalece a eficiência mnemônica de representações interconectadas entre si, expressando relações

de causa e efeito, referentes a domínios do conhecimento concretos e familiares, e que se relacionem ao contexto concreto da vida e da identidade do sujeito. “Não há, portanto, como opor um pensamento mágico e selvagem a um pensamento objetivo e racional. A ecologia cognitiva da oralidade primária se baseia na memória de longo prazo e em recursos narrativos e dramáticos e mitológicos. São as melhores estratégias de codificação de que dispõem. As temporalidades são cíclicas, com a reiteração das memórias, e, na ausência de pontos fixos, a cronologia é marcada pelo devir.

A escrita emerge como técnica em momentos históricos de sociedades que passaram a cultivar os próprios recursos básicos, o que demandou que se fixassem na terra e no tempo. É desta época que as transições e recorrências vão perdendo lugar para a permanência: surgem o Estado, os muros, a métrica. A escrita é só mais uma dentre as várias técnicas desenvolvidas para superar o caráter efêmero da realidade, constituindo um meio para a criação e gestão de simbologias duráveis, produzindo irreversibilidade no tempo. Como tecnologia de comunicação, a escrita isola a mensagem de um contexto vivo, conversacional, substituindo a função empática do orador pelo exercício de interpretação do leitor. A perda do contexto de interlocução abriu espaço para o desenvolvimento de gêneros facilitadores da interpretação, universalistas, objetivis tas, enviesados. Deles surgem as teorias, os mitemas, os discursos com pretensões univers a is, que sempre têm bases textuais. O conhecimento ganha conformação modular, inibindo seu arranjo em narrativas, ou reconfigurando-as em arranjos mais prosaicos e menos míticos. A escrita fez da palavra um instrumento de colonização. Seu poder de padronização aumentou com o advento da impressão.

No que concerne à razão, os oralistas9 praticam outra forma de pensar: são

propensos a significarem as relações entre coisas em termos de situações, e não de categorias. Categorias pertencem a uma racionalidade inventarial fundamentada no uso de símbolos e esquemas escritos. A própria filosofia teria surgido de uma ressignificação da oralidade primária por uma lógica conceitual prosaica. Também a história, como gênero literário e de raciocínio, é um efeito da escrita. Criada de forma linear e segmentada, ela retrata o devir em termos de ser. A escrita, ainda que não tenha determinado, condicionou tais formas de pensamento, sendo a prosa não só uma forma de expressão, mas uma identidade constitutiva. As interfaces da escrita impressa aprofundaram o distanciamento da discursividade concreta, habilitando formas abstratas e esquemáticas de representação, hoje já naturalizadas. A padronização da informação (manuais, dicionários, inventários) viabilizaram o surgimento da crítica, que se debruça sobre um passado terminado. A independência espaço-temporal e a preservação dos saberes acentuou a cumulatividade do conhecimento e com ela o sentido do progresso. As descobertas recentes ganharam relevância em relação aos saberes do passado, iluminando o futuro como temporalidade virtualmente promissora. As seguidas re- mediações destas técnicas e contextos levaram ao desenvolvimento da ciência moderna, com sua sistemática de intercâmbio de inovações via papers impressos. A padronização e fidedignidade trazidas pela prensa padronizaram a objetividade, viabilizando o surgimento de um novo estilo cognitivo.

Já a informatização trouxe a digitalização dos conhecimentos e das representações. Sob a roupagem digital, qualquer matéria se torna infinitamente maleáve l

9 O termo oralista vem em substituição à designação “analfabeto”, que toma como referência as culturas

e reproduzível. O desenvolvimento da informática faz com que os especialismos e proselitismos técnicos caiam em desuso, acessibilizando a manipulação de informação empírica e programática com níveis de maleabilidade e acessibilidade próximos aos que possibilitaram a popularização da escrita. Sons podem ser sequenciados, sintetizados e gravados digitalmente, dispensando a execução instrumental. Imagens e vídeos se tornam plásticos e tão editáveis quanto textos, transformando o mundo das representações em um mundo de ideografias dinâmicas (Lévy, 1997). A própria programação se torna progressivamente simplificada, com linguagens e lógicas mais próximas das naturais e o desenvolvimento progressivo de interfaces entre interfaces, cada vez mais eficientes em integrar a cognição e sensorialidade do usuário em uma experiência computacional em rede. As novas conformações entre representações, hipertextualidade e inteligê nc ia artificial viabilizaram um tipo de bricolagem digital por meio da qual os atores sociais reconfiguram seus saberes, identidades e suas agências, re-mediando os ordenamentos de seus universos simbólicos e, consequentemente, suas formas de construir significações. O estoque, a circulação e a reapresentação da informação são abrangentes e automatizados, com diferentes codificações e apresentações. Representações em multimídias cada vez mais desenvolvidas, acessíveis e aprazíveis aludem à possível obsolescência próxima das mídias impressas e habilitam uma nova forma de saber, que não se reduz à memorização ou à interpretação, baseando-se na exploração interativa. Tal saber constitui verdadeiramente um conhecimento por simulação.

O uso das interfaces computacionais está mudando tanto as formas de interação quanto as de “seleção”. Interfaces cada vez mais abrangentes e sensíveis devem levar a uma sistemática funcional que integre e unifique as ações mútuas de usuários e sistemas, o que se torna cada vez mais viável com o desenvolvimento da computação ubíqua.

Complementarmente, a gestão da informação também vem se tornando progressivame nte automatizada e personalizada, com programas que contam com buscadores sofisticados, ou que aprendem sobre nossos hábitos e preferências, codificando e filtrando as informações que nos fornecem de acordo com este aprendizado. O uso de redes e da potência de cálculo da informática se torna tão naturalizado quanto o da eletricidade e da água encanada. Estando cada vez mais interconectados entre si, estes vários sistemas se tornam, de forma consistente, componentes de nossas ecologias cognitivas. Assim, “aquilo que ontem fora interface torna-se órgão externo” (Leontiev, 2004, p. 101).

Todavia, uma tecnologia não substitui a outra. Com o advento da escrita, e mesmo da modernidade, a oralidade continua prevalecendo como principal via de transmissão de representações e modos de ser. Mesmo nos escritos, as modalidades orais foram, por muito tempo, prevalentes, e até hoje o que caracteriza um bom texto não é seu preciosismo linguístico, mas a sua fluência, característica da fala. O mesmo pode ser dito da informática, que surgiu e opera de acordo com os esquematismos da escrita e evolui em direção à usabilidade intuitiva e coloquial. Contudo, tanto a computação quanto a escrita modificaram a oralidade, pois deram suporte à reconfiguração das formas de representar, narrar e esquematizar, constituindo-se como tecnologias da inteligência. Os modos de ser imbrincados em redes e interfaces ainda não se consolidaram em configurações canônicas, e nem são claras as implicações do conhecimento por simulação nos processos de significação (Lévy, 1997).

1.3. A operacionalidade da técnica como dispositivo metafórico de interfaceamento