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A instrumentalidade da cultura e sua configuração semiótica

2. Análise microgenética baseada na Psicologia Cultural e na Semiótica

2.4. A instrumentalidade da cultura e sua configuração semiótica

Alinhado aos pressupostos das abordagens histórico-culturais, desenvolvo, nesta dissertação, a compreensão de instrumentalidade enquanto qualidade (de ações e instrumentos) constituída com base na dimensão cultural das vivências humanas. Tal compreensão tem início na busca por continuidades funcionais entre cultura e cognição, e adota o pressuposto de que os elementos da atividade semiótica são os responsáveis pela constituição das pontes entre essas instâncias, ao terem sua lógica de funcionamento como fundamento para a configuração das propriedades instrumentais que são mobilizadas nas ações e práticas pessoais. Ao reconhecer nas atividades humanas as lógicas de atuação daqueles elementos, viabiliza-se a compreensão acerca das conformações específicas que elas assumem nos processos de materialização da cultura, uma vez que é a partir da mesma lógica que são constituídos os padrões emergentes na microgênese das ações (Valsiner, 2004, 2012). Em uma analogia, pode-se assumir (sem rigor epistemológico) que os elementos constitutivos dos signos e das atividades semióticas estão para a cultura assim como os genes e o metabolismo celular estão para a fisiologia.

Ademais, uma vez que os processos cultural-cognitivos de alta ordem são sempre permeados por símbolos (Peirce, 2011), estes foram os elementos semióticos tomados como referência inicial para a exploração analítica de como os signos culturais se engendram em práticas pessoais. Logo, considerar cada ação enquanto instânc ia

individual de elementos semióticos culturalmente fundamentados é o primeiro passo na análise da microgênese desses mesmos elementos.

O caráter processual das atividades semióticas é impreterível. Quando a cultura é operacionalizada como variável, as categorias de análise que organizam a refle xão psicológica se tornam imprescindivelmente demográficas (nacionalidade, etnia, idioma, etc.). Nessa lógica, as qualidades casuais e transitórias das ações cotidianas são desconsideradas, e toda a informação nelas incorporada permanece sob o ponto cego da ciência que se fundamenta nesse tipo de dado (Molenaar, 2004; Valsiner, 2012). Já para a PC, a cultura vê intensificado o seu valor como foco de análise à medida que o delineamento da pesquisa ou atuação se torne progressivamente mais restrito às características casuais e concretas dos fenômenos sobre os quais se debruça na busca de características gerais. Neste contexto, é fundamental que as configurações específicas do caso sejam consideradas, pois é nelas que tais características gerais se incorporam e por meio delas que se manifestam. Logo, volta-se tanto para a abordagem daquilo que se faz (práticas pessoais, incluindo as coletivas), quanto para a abordagem daquilo que é sabido sobre o como fazer (as práticas interpessoais, as representações, as tecnicalidades e os saberes de um modo geral); fazeres e saberes que, concretamente, configuram-se a partir de elementos materiais e simbólicos limitados, mas que ocorrem em conformações infinitamente variadas. Assim, a PC se debruça sobre discursos, representações, materialidade e corporalidade, bem como no aspecto técnico das vivências humanas, e abordando cada uma dessas instâncias de fenômenos cultural-cognitivos a partir dos modos particulares pelos quais os indivíduos e seus coletivos as manifestam nos contextos vivenciais que lhe são específicos, sendo esses modos as práticas culturais (Meira, 2012).

Práticas culturais são, em si mesmas, processos culturais ou instâncias de processos culturais. Para a PC, assim como para outras abordagens sócio-histórico- culturais (dentre as quais está a Teoria da Atividade – Cole & Engeström, 2007; Engeström, R., 2009), a dinâmica desses processos é de natureza semiótica (Rosa, 2007a). Como anteriormente mencionado, para que não percam seu valor intrínseco, processos deste tipo precisam ser analisados em sua natureza desenvolvimental, não sendo operacionalizáveis por meio de variáveis abstratas. Consequentemente, demanda também recompreensão de grande parte dos processos que a Psicologia reivindica como próprios de sua alçada. Nesta compreensão, os próprios processos (e não apenas seus efeitos) são variantes em seus valores e propriedades causais, e, portanto, suas implicações nos variados fenômenos e objetos sobre os quais atuam são de efetividade oscilantes (Cabell & Valsiner, 2014; Valsiner, 2000). Sobre esta forma de funcionamento, Valsiner (2004) esclarece que “a maioria dos processos humanos de produção de sentidos não é diretamente refletida nas formas simbólicas finais (estáticas) – todavia estes processos se esvaem sem deixar traços durante o processo de construção daquelas formas” (p. 5)17.

Sob a semiótica, a análise dos processos não se limita à comparação entre recortes temporais espaçados referentes a atributos invariantes desses mesmos processos em diferentes momentos: demanda-se sensibilidade a sua trajetória de evolução. Sob esta concepção, mesmo diante da busca ao que o fenômeno tem de geral, a investigação normalmente acaba por demandar, ao longo de sua progressão, seguidas reconfigurações no foco de análise em curso, até que a generalidade almejada se torne evidente nos

17 No original: “most of the human meaning-making process is not directly reflected in the static (final)

symbolic forms—but vanish without trace during the process of construction of such forms” (Valsine r, 2004, p. 5).

atributos do fenômeno que são de interesse. É preciso, portanto, munir-se de lentes

idiográficas (em alguma medida, de caráter etnográfico), a fim de que se possa

compreender adequadamente a dinâmica evolutiva dos signos envolvidos nos processos analisados. Tanto os condicionantes teleonômicos quanto os condicionantes teleológicos das semioses devem ser considerados como potenciais condutores do fluxo semiótico (Rosa, 2007a).

O caráter evolutivo da semiose será mais detalhadamente abordado ao longo da apresentação das classes de signos na Semiótica, mas é pertinente que algumas considerações sejam feitas especificamente sobre teleonomia e teleologia. Rosa (2007a) afirma que, no início de um processo semiótico de desenvolvimento, quaisquer atos ocorrem, como reações automáticas, de modo que só é possível agir de acordo com os

roteiros já conhecidos, de acordo com o estímulo excitado pelos signos recebidos. Nesse

processo, o organismo pode aprender com suas experiências em esforços de assimilação do novo ao já conhecido. Todavia, modos teleonômicos de mediação não controlam seus próprios processos, estando sempre sujeitos a novos estímulos de primitivos signos, que irão, mais uma vez, incitar os velhos roteiros. A teleonomia diz respeito apenas a operações compreendidas no tempo presente, não compreendendo representações sobre o que não é presente. Não se pode recorrer ao passado ou ao futuro, a memórias ou a estimativas. Para que isso acontecesse, seria necessário o desenvolvimento da capacidade de representar. Este é o limite das semioses teleonômicas (Rosa, 2007a).

Uma dimensão subjetiva só ocorre quando a capacidade de utilizar signos convencionais ou sociais se desenvolve. Nesse sentido, a percepção de objetos seria o resultado da transformação de qualidades em símbolos (Rosa, 2007a). Tais transformações decorreriam do exercício de modificação progressiva, ao longo da

microgênese das experiências, dos esquemas primitivos (os roteiros), levando a alterações de seus fins iniciais, de modo que sua operação acabaria levando a resultados diferentes dos anteriores. Isso equivale à aquisição de novas por meio do esquema modificado e à possibilidade de diversificação dos fins para os quais originalmente se destinava. Nas palavras de Rosa, “o resultado dessa marcha é a criação de novos usos para objetos e movimentos já familiares” (2007a, p 301).

Valsiner (2014) aponta que o aspecto único da Psicologia Cultural é o foco em sistemas complexos de significação humana, e que as questões epistemológicas que foram relevantes para o delineamento deste campo de estudo continuam válidas e não devem deixar de ser levadas em consideração. Na mesma publicação, advogou que a PC ainda não superou a carência pelo desenvolvimento de metodologias sensíveis à evolução dinâmica e à emergência das propriedades ontológicas dos processos semióticos (Valsiner, 2014). Tal demanda por metodologias mais efetivas parte, sobretudo, da insipiência de abordagens que levem em consideração a complexidade específica dos fenômenos semióticos e de suas inter-relações causais.

Na dança dos signos há sempre um destino, e as semioses têm sempre meios e fins, sendo impelidas ou atraídas, ao longo de seus desenvolvimentos, por relações causais afetadas por mediadores. As semioses, contudo, nunca alcançam realmente os fins últimos que referenciam, em dado momento, suas trajetórias de desenvolvimento: estão sujeitas a diversos fatores catalíticos, de modo que, em algum ponto de sua evolução, acabam tendo seus meios, fins ou elementos/forças causantes alterados.

A semiose é um contínuo linear (Burgess, s.d.), um mesmo processo que corre continuamente, sem interrupção. A despeito disso, é uma continuidade que não requerer que as características que a configuram em um momento estejam presentes em outros –

de modo que o único atributo que a caracteriza como totalidade unificada é a sua relação com os sistemas que a incorporam. Sua totalidade enquanto processo é reconfigurada em cada um desses atos de mediação. Desse modo, uma vez que corresponde apenas ao estado corrente de alguma cadeia evolutiva nunca descontinuada, os contornos do “iníc io ” de cada processo semiótico (ou de cada uma de suas configurações) são, pois, vagos e imprecisos, sendo sua definição geral necessariamente dependente da definição de sua configuração processual corrente (Burgess, s.d.).

Para compreender em sua investigação a complexidade dos processos semióticos, o pesquisador carece de tipologias e unidades analíticas coerentes e adequadas às relações causais em questão. Na PC de base semiótica, essas unidades são os signos. O signo tem uma organização lógica particular que difere daquela que subjaz as propostas epistemológicas classicamente voltadas ao delineamento dos fenômenos sob causalidades diretas. No signo, tanto os aspectos estruturais quanto os dinâmicos são sempre e necessariamente triádicos. Logo, todo fenômeno causal entre dois elementos é, na semiótica, mediado por um terceiro – o que implica uma causalidade que não é direta. Por sua função nos processos semióticos, o signo foi adotado como a unidade de análise primária da PC.

Assim, ciente da provocação de Valsiner (2014), e levando em consideração as propriedades dos processos semióticos, resta, então, ao pesquisador, a produção de metodologias que sejam adequadas: (a) ao estabelecimento dos limites, das fronte iras hipotéticas entre o fenômeno que pretende abordar e aqueles que o tangenciam; (b) à exploração da dinâmica semiótica dos fenômenos gerais investigados a partir dos casos em que se manifestam, a fim de (c) definir os determinantes causais das continuidades e variações que lhes são típicos. No contexto desta dissertação, tais demandas foram

levadas em consideração, e, buscando maior adequação teórica ao tipo de fenômeno abordado, utilizei configurações dos conceitos de signo e semiose que permitis se m explorar adequadamente a microgênese das ações instrumentais.