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A operacionalidade da técnica como dispositivo metafórico de interfaceamento entre signos

Há muito as ciências cognitivas reconhecem haver uma relação de co-constituição entre os saberes e as estruturas epistêmicas dos sujeitos. Esta é uma relação que diz respeito à conformação de sua visão de mundo: ela diz respeito ao que é concebível como realidade possível, e também à forma (Gestalt) sob a qual estas concepções estão conformadas. Diz respeito ainda às facetas do que é possível em termos de conformação do saber (conceitos, representações) e das interações (discursos, ações) entre sujeitos e mundo(s). Diz respeito, por fim, à postura assumida por cada sujeito diante deste mundo. Se eu opto por investir em meu enriquecimento pessoal, não me sentindo responsável pela desgraça daqueles sem renda em um mundo em que uns têm sorte e outros têm azar; se eu tenho plena convicção de que o câncer de meu irmão foi curado pelo poder a mim concedido pelo Divino Espírito Santo; se eu defendo ardentemente a garantia de direitos humanos mesmo para os autores dos atos mais monstruosos; se eu me jogo de uma ponte com a perna amarrada a um elástico esperando me sentir bem por isso; se reajo impulsivamente a um assalto tão logo veja uma arma; ou se me sinto mal ao conceber a possibilidade de me esgueirar por espaços estreitos ou escuros... isto se deve à minha concepção do que seja o mundo real, determinante no delineamento de minha própria identidade.

As lentes de uma visão de mundo são intuitivas e configuram o caráter concreto dos objetos ao incorporá-los na totalidade gestáltica da realidade como concebida pelo sujeito (Valsiner, 2007). Esta relação de interconstituição sujeito-objeto tem sido abordada por diversas teorias nas ciências psicológicas, sob diferentes vieses. A teoria piagetiana, por exemplo, considera que a intencionalidade centra-se no caráter positivo

(ou assertivo) dos objetos e informações, sendo a substância de sua objetividade modelada em um processo de equilibração das estruturas cognitivas. A Psicologia Cultural Semiótica considera que a intencionalidade humana é compartilhada, de modo que as significações sobre o objeto e seu caráter como coisa real são construídas no âmbito de um contexto interacional (entre sujeitos), por meio da re-mediação de signos, símbolos e dinâmicas semióticas culturalmente disponibilizadas (Rosa, 2007a; Sannino et al., 2009; Tomasello & Hermann, 2010; Valsiner, 2012). Stephen Pepper (1970) propôs que as qualidades percebidas nas coisas são generalizadas pelo filtro compreensivo de metáforas-raiz, as quais condicionam nossas interpretações da realidade de acordo com determinados delineamentos interpretativos, historicamente próprios de visões de mundo específicas (mecanicista, organicista, contextualista, etc. – Sarbin, 1986). A Construal

Level Theory (Teoria dos níveis de construção/significação) estabelece que quanto mais

espacial, temporal ou socialmente próximo o fenômeno ou objeto percebido, mais concretos e minuciosos são os termos e representações usados para se referir a ele, e quanto mais distantes, mais abstratos e vagos (Milfont, 2010; Milfont, Abrahamse, & McCarthy, 2011).

Ao mencionar concepções tão diversas, não proponho que se negligencie as diferenças epistemológicas entre elas. Ao contrário, elas devem ser contrastadas para salientar que, mesmo no âmbito de teorizações tão fundamentalmente distintas, certa faceta empírica do fenômeno perceptivo conservada em todas: a realidade diante da qual o ser humano reage e com a qual interage é uma realidade que existe concretamente em sua percepção, sendo sua concretude estável, mas dinâmica, e, sobretudo, generalizá ve l. Já no que diz respeito à sistemática sob a qual esta generalização acontece, há distinções bem demarcadas entre estas teorias. A seguir, exploro algumas destas distinções a fim de

demarcar em que tipos de fenômenos semióticos cada uma delas tramita, começando pela noção de metáfora.

Uma metáfora é uma analogia, um dispositivo semiótico que torna semanticamente análogos, por salientação de suas semelhanças, dois ou mais objetos que não fazem parte da mesma categoria ou do mesmo contexto prático. Por meio dela, a essência abstrata que há em comum entre os objetos comparados “preenche”10 as lacunas

da concretude semântica que os caracteriza, gerando assim uma continuidade perceptual entre eles (Peirce, 2011; Sarbin, 1986). O ato metafórico atua, então, como via operacional de interfaceamento entre signos distintos ao incorporá-los em uma mesma ação e orientá-los a uma mesma intencionalidade, situando-os num mesmo contexto operacional (Sannino et al., 2009). Ao incutir na ação a função de compreensão analógica, a metáfora atua, portanto, como dispositivo de operação, actuation (Rosa, 2007a) da cognição semiótica, produzindo mediações e metacognições (Lautert & Spinillo, 2011) capazes de integrar em uma mesma matriz simbólica os elementos diversos da realidade percebida. Em última instância, a reorganização de sua realidade de referência leva o sujeito a repensar a sua própria situação, e, em decorrência disto, a re-mediar a própria identidade.

No que concerne à significação, uma metáfora é um ato de conceituação: ela constrói o conceito e conserva os elementos e a dinâmica da construção; ela apresenta o produto, mas também sua fórmula (Lautert & Spinillo, 2011; Sarbin, 1986). Por outro lado, uma vez generalizado, o conceito se torna um símbolo, apresentando sentido

10 Valsiner (2007, p. 28) usa o termo pleromatização para referir-se a este efeito de estufagem semântica

de um símbolo, que evoca, a partir de uma mesma representação, uma multiplicidade de significados e conotações.

independente e podendo ele mesmo ser tomado como elemento para uma nova analogia e ser re-mediado ou simplesmente empregado como elemento imediato da ação ou da comunicação (Valsiner, 2012; Vygotsky, 2007).

A despeito de sua funcionalidade semiótica, a metáfora possui uma marcada limitação enquanto dispositivo de mediação: ela é uma figura de linguagem, o que faz dela um recurso reservado às esferas mais elevadas e racionais da cognição semiótica (Rosa, 2007a). Para operar uma re-mediação sob a forma de discurso, é preciso que uma metáfora, enquanto dispositivo de significação, lide com signos do tipo símbolo, os quais são o ethos semiótico das esferas mais conscientes e racionais da linguagem e do pensamento (Rosa, 2007a; Valsiner, 2000, 2012). Todavia, é fundamental não perder de vista que a agência humana também tramita largamente, se não majoritariamente, por signos de tipo index e ícone, os quais operam experiências mais intuitivas, afetivas, que são, em maior ou menor grau, fugidias à percepção consciente e à representação em termos explícitos (Rosa, 2007a). Os ícones e índex também possibilitam a significação de similaridades parciais, como é característico à metáfora, mas neste caso não é possível simbolizá- las, não sendo, pois, possível compartilhá- las sob a forma de representações. Assim, estes dois tipos de signos estão mais distantes dos gêneros da lingua ge m expressiva e mais próximas dos gêneros das “linguagens” (ou semioses) compreensivas – as categorias de signos mencionadas são apresentas em detalhes no segundo capítulo.

A noção de metáforas-raiz está entre estes gêneros compreensivos. Proposta no contexto da teoria das Hipóteses de Mundo (World Hypotheses), as metáforas-raiz são prismas para conceber a realidade, predisposições para gerar categorias e conceitos e para reproduzir preconceitos (Sarbin, 1986). Da mesma forma (analógica) que uma metáfora discursiva contextualiza seus elementos simbólicos em um contínuo semântico, uma

metáfora-raiz o faz com os signos que fundamentam a visão de mundo e a identidade do sujeito. Ela estrutura a mediação de experiências a partir de semioses intuitivas e condicionadas, reverberando não apenas na linguagem, mas também nas diversas formas de sentir, perceber, experienciar, agir e interagir do sujeito. Enquanto construto teórico, a noção de metáfora-raiz é homóloga ao conceito de técnica apresentado anteriorme nte (Ingold, 2000), mas com um viés mais psicológico (em comparação à abordagem antropológica de Ingold e à sociológica de Lévy) que favorece a análise acerca de como as significações constitutivas da objetividade instrumental das coisas são consolidadas em âmbito individual, mesmo sendo fundamentadas em generalizações culturais coletivas (Valsiner, 2007).

Por outro lado, enquanto a Teoria das Hipóteses de Mundo, com sua noção de metáforas-raiz, é adequada para evidenciar as estruturas que subjazem às diferentes formas de significar a realidade, ela não chega realmente a explicar a dinâmica pessoal de funcionamento dessas estruturas, e seu uso acaba se limitando à descrição de disposições perceptuais já consolidadas e que, no fim das contas, se manifestam de forma mais evidente por meio da ação discursiva (Sarbin, 1986). Tendo em vista tais limitações, exploro a Teoria da Ação Simbólica (Boesch, 2001, 2007; Valsiner, 2012) como uma complementação conceitual adequadamente sinérgica. Por meio dela é possível ir além do aspecto simbolizado das experiências, explorando suas facetas contingencia is, intuitivas e emocionais, baseadas em signos icônicos e indexicais. De acordo com Boesch (1991, 2001, 2007), é no âmbito da ação que se entrecruzam todos os níveis de significação, sendo ela a via de canalização dos processos de produção de sentido. É por meio da ação que o sujeito incorpora as referências culturais disponíveis dentro das fronteiras de seu universo simbólico, e também é por meio dela que ele as reinventa e as

reapresenta, num intercâmbio perpétuo entre cultura pessoal e cultura coletiva. A ação humana, sempre uma ação simbólica (semiótica), é a verdadeira usina de intersubjetivações e interobjetivações que fabricam o universo simbólico dos indivíd uos e grupos (Boesch, 2001).

A realização deliberada de uma ação é fundamentada em um fim, mas geralmente este fim não encerra todas as motivações que levaram a sua execução: muitas destas motivações (por vezes as mais significativas) subjazem a instância da razão, mediando os atos e as significações de acordo com dinâmicas despercebidas pelo próprio sujeito. Dinâmicas que se baseiam na re-encenação de mitos e elementos míticos, assimila ndo seus contornos nebulosos e dando-lhes definição concreta.

Na Teoria da Ação Simbólica, os mitos são representações culturais altamente generalizadas e contingentes de significação suplementar, e não necessariamente se resumem a formulações discursivas e simbólicas. Aproximam-se do construto de metáfora-raiz em seu caráter de referência estruturante para a ação, mas é mais flexível e permeável que aquele, tendo salientado o seu caráter de vicissitude em vez da estabilidade que caracteriza a metáfora-raiz.

No âmbito da ação, mitos, “estruturas” – condicionamentos (Bateson, 1987), discursos e artefatos ganham caráter instrumental, atuando (advertida ou inadvertidamente) como ferramentas na mediação semiótica e na produção de novos sentidos, e tornando-se semanticamente agregados a eles. Todos se tornam elementos de uma mesma realidade, contínua e com variados espectros de objetividade – e de subjetividade, e de lucidez (Boesch, 1991, 2001, 2007). Como fenômeno semiótico, a ação é, portanto, um ato que costura (uma ato em que o agente costura), em um mesmo contexto, a agência (Sannino et al., 2009), a ferramenta (Ingold, 2000; Sannino et al.,

2009), a técnica (Ingold, 2000), a identidade (Boesch, 2007; Lyra, 2014), a visão de mundo (Pepper, 1970) e os ordenamentos semânticos que lhes conferem coesão; como se, na prática, fossem diversas manifestações de uma mesma essência.

No âmbito de uma realidade cultural, as possibilidades de conformação da ação estão restritas às suas “fronteiras”. Estas fronteiras não são espaciais, mas interaciona is, e se caracterizam pelos limites das significações possíveis em dados contextos; limites que são estabelecidos pela disponibilidade concreta de signos assimiláveis pelos sujeitos nas conformações de suas agências, bem como por seus modos de percebê-los e re-mediá- los. Em termos práticos, as fronteiras de um universo simbólico são difusame nte demarcadas por todos os recursos semióticos disponíveis a seus habitantes, voltados para sustentá-lo e reforçá-lo, corroborando seus limites, mas também para reciclá-lo, inovando as suas possibilidades. Mitos, metáforas, objetos, ferramentas, sujeitos, interações, gêneros, lógicas, dinâmicas, estruturas e processos são apenas encarnações de signos disponíveis para afetar ou subsidiar os sujeitos no decorrer de suas atividades e no exercício de suas identidades.

Deste modo, os diversos recursos de mediação semiótica exercem a função de ferramentas. Os processos de re-mediação, agenciamento e significação no geral, desempenham, portanto, uma função cognitiva fundamental para a organização da percepção: (re)configurar continuamente o campo total da realidade percebida, concebendo-a como a história do possível.

A problemática levantada ao longo deste capítulo certamente não poderia ser exaurida por um único estudo de mestrado, ainda mais se considerarmos a incipiência dos estudos sobre a temática no âmbito da Psicologia Cultural. Mais que situar um simples problema de investigação, ela demanda uma abordagem de envergadura mais abrangente,

e instaura, na verdade, uma linha de pesquisa. Ciente desta limitação, atenho-me nesta dissertação ao enfoque das formas de significação possibilitadas pela mediação de interfaces computacionais ligadas em rede. Meu intuito primário é exploratório, no sentido de demonstrar empiricamente a ocorrência de tais formas de significação e mediação, a fim de torná-las familiares à matriz teórica da Psicologia Cultural, que apresento a seguir.