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A Psicologia Cultural Semiótica e o empreendimento em um novo paradigma sobre a cognição

2. Análise microgenética baseada na Psicologia Cultural e na Semiótica

2.1. A Psicologia Cultural Semiótica e o empreendimento em um novo paradigma sobre a cognição

A Psicologia Cultural Semiótica (PC) é uma abordagem da Psicologia que se diferencia consideravelmente das concepções e metodologias tradicionais da Psicologia (Valsiner, 2012). A princípio, porque tem sua ênfase epistemológica em uma ontologia

de transições, heraclitiana (Rosa, 2007a; Valsiner, 2003), divergindo das ciências naturais

e das abordagens psicológicas nestas ancoradas. Para a ciência psicológica, a primeira implicação de sintonizar-se a uma ontologia de transições é abrir mão de um foco teórico - epistemológico que prioriza concepções fisicalistas como base para a explicação do funcionamento mental. Nessas concepções, os fenômenos são teoricamente delineados como manifestações de regularidades, aparentemente perpétuas, nas propriedades funcionais que os regem (como as leis da física e as interações entre moléculas, por exemplo), além de basear-se em uma noção de temporalidade reversível. A ênfase ontológica é posta sobre o estado de ser.

Já para a PC, a cultura passa a ser fundamento funcional do processamento cognitivo. Neste caso, a cultura é compreendida como uma dimensão processual da realidade, que é parcialmente imaterial, parcialmente mental, e cuja temporalidade é irreversível. Os fenômenos mentais são compreendidos como processos de vir a ser, salientando a condição permanentemente provisória do ser, que apenas estaria sendo (Rosa, 2007a; Valsiner, 2003). Desta mudança de perspectiva decorre a necessidade de que as regularidades dinâmicas que regem certos fenômenos, e que são próprias dos

processos culturais, não mais tenham sua relevância posta em segundo plano ou desconsiderada em favor de compreensões fechadas de sistemas de regularidades.

A adoção de uma ontologia de transições e o posicionamento da cultura no centro das operações cognitivas logo demanda uma concepção deste conceito (cultura) que vá além da concepção historicamente adotada nas ciências sociais e psicológicas. Tradicionalmente, a compreensão de cultura é limitada a uma coleção de atributos

culturais formalmente transpostos à condição teórica de variáveis, as quais são

representações essencialmente abstratas, desvinculadas das feições de concretude das realidades das quais seriam correspondentes (Harré & Gillett, 1999; Molenaar, 2004; Valsiner, 2000, 2012). Sob a roupagem de conceitos, as variáveis na verdade se tornam, elas mesmas, símbolos culturais, cujo valor qualitativo é invariante: tornam- se reificadas11. Adicionalmente, esta concepção não se mostra apropriada para a compreensão de processos regidos por formas de causalidade sistêmicas, por razões que são explicitadas mais à frente nesta mesma seção.

A PC, por outro lado, demanda uma ótica mais sensível aos aspectos subjetivos que não são propriamente universais a uma população: estes aspectos estariam amplamente sujeitos a variações entre indivíduos (interindividual) e até mesmo em um mesmo indivíduo (intraindividual), em tempos e contextos distintos (Valsiner, 2012). Do ponto de vista científico, a evolução da subjetividade, quando compreendida como um

11 Este processo de construção progressiva de significados que leva à reificação de um conceito em uma

comunidade científica é muito bem ilustrado por Burman (2012), que analisou a evolução da noção de

meme: inicialmente apresentado como uma metáfora, um “gene de cultura” que operaria na cognição e na

memória, os memes logo foram assimilados como conceitos cientificamente válidos e adotados como objetos de pesquisa para investigar a evolução da cultura sob a ótica epistemológica do evolucionismo proposta por Richard Dawkins (2007) no livro O Gene Egoísta. Mas essa assimilação teria sido realizad a sem que houvesse indícios empíricos de que a evolução das ideias na cognição se desse de forma similar a dos organismos em suas ecologias.

processo enraizado no substrato cultural concreto de seu respectivo sujeito, demanda a produção de dados que conservem certos traços de complexidade expressos em suas manifestações empíricas. Desse modo, a PC conserva em suas formulações teóricas detalhes particulares e casuais dos fenômenos psicossociais estudados. Por outro lado, há uma aparente perda de poder de predição, a partir de seus modelos teóricos, acerca da ocorrência dos fenômenos empíricos que representariam. Essa perda se daria em comparação aos tipos de previsões extraídas de modelos generalizados a partir de dados estatísticos e probabilísticos. Nestes modelos, os fenômenos são teoricamente compreendidos em matrizes de dados que possibilitam uma leitura regressiva dos processos causais, de modo que as causas que antecedem um evento possam ser acuradamente deduzidas a partir das variáveis que representariam seus efeitos. A possibilidade de análises regressivas e lineares se deve à finitude lógica dos sistemas teóricos operados, configurados como sistemas fechados, de modo que as temporalidades subjacentes aos processos neles enquadrados podem ser teoricamente tratadas como

temporalidades reversíveis (Molenaar, 2004).

Na ótica da PC, por outro lado, os elementos culturais se manifestam eivados de atributos subjetivos e simbólicos, e sempre por meio da ação de sujeitos. Nesta perspectiva, portanto, a cultura não seria algo capaz de existir em estado puro, e cada aspecto que a compõe se manifestaria sempre em uma configuração própria, sempre adulterado pelas peculiaridades contextuais e subjetivas da ação que o incorpora (Valsiner & Rosa, 2007).

Os atributos fundamentais que, do ponto de vista científico, caracterizam cada prática cultural, são conservados em cada ocorrência concreta dessas práticas. Contudo, em cada uma dessas ocorrências, algumas características que não estavam previstas na

definição geral de uma determinada prática também são empiricamente manifestadas (o ato de ler, por exemplo, costuma ser medido quanto a sua velocidade ou efetividade da compreensão, mas características como a posição do texto ao ser lido ou a preferência por certo tipo de iluminação acabam sendo desconsideradas, mesmo que, para certas pessoas, por razões particulares, elas sejam consideradas traços intrínsecos ao exercício de leitura, e tenham implicações nas características medidas). Em modelos estatísticos, essas variações casuais costumam ser consideradas desprezíveis ou categorizadas como outros e qualitativamente desconsideradas nas análises dos fenômenos (Valsiner, 2012). Na perspectiva causal (sistêmica) adotada pela PC, no entanto, essas variações devem ser consideradas a partir daquilo que têm de particular, pois, ainda que sejam bem menos frequentes que as variações classificadas como variações padrão, elas podem atuar como

catalisadores de alterações significativas no funcionamento de processos, desviando- os

dos seus fins originais e os reconfigurando de tal modo que estes passem a evoluir em função de novos fins (Cabell & Valsiner, 2014).

Em consequência, o foco da perspectiva aqui adotada não recai sobre uma noção de processo que equivale ao produto de uma cadeia fechada de funcionamento; nesta os elementos componentes (causantes) atuam em sequências ordenadas, e suas propriedades causais, sendo estáveis, constituem a base essencial de processos cujo funcionamento é algorítmico, mecanicista e maquínico. O foco da PC recai sobre os processos enquanto cadeias orgânicas de evolução. Cadeias orgânicas porque, ainda que os processos evoluam de acordo com padrões (padrões metaforicamente análogos às linhas evolucionárias das espécies, nos seres vivos), cada um desses processos é composto de agentes causantes que são eles mesmos casos particulares que incorporam aqueles padrões (seguindo com a mesma metáfora, seriam casos análogos os indivíduos de cada

uma das espécies). Tais casos estão ainda situados em contextos concretos (análogos a sistemas ecológicos), interagindo uns com os outros ao longo do tempo, e sujeitos a variações acidentais no curso de seu desenvolvimento; variações que podem, por fim, alterar as formas de interação dos agentes modificados, levando-os a novos modos de se relacionar com os agentes causantes já conhecidos, ou mesmo os de outros tipos. Na prática, a alteração das propriedades causais de um desses elementos pode repercutir nos processos dos quais é componente e, consequentemente, modificar- lhes as propriedades causais em relação aos sistemas dos quais participam. Ao longo do tempo, a agregação dessas pequenas variações leva à reconfiguração progressiva do sistema: ao mudar os meios, mudam-se os fins, e, com eles, as cadeias de fenômenos causados pelo todo de sua interação. Os sistemas se adaptam às variações em seus meios, e, neste sentido, eles evoluem12. Evoluem por razões casuais (até então imprevisíveis pela lógica sistêmic a afetada), além de terem adulteradas as condições que os permitiriam ser reiterados em suas configurações pregressas, o que redireciona o progresso de sua evolução. Por esses motivos, tais sistemas não podem ser considerados logicamente finitos, sendo, portanto,

sistemas abertos, de modo que a temporalidade intrínseca a seu funcionamento é

12 Uma evolução sistêmica desse tipo pode ser ilustrada pela superação de uma relação de duplo vínculo – double bindng (Bateson, 1987). O duplo vínculo é um tipo de sistema relacional e autorreforçador em que

a interação entre dois lados ocorre por meio de mensagens que são simultaneamente apropriadas e inapropriadas. Uma das situações comuns que o caracterizam é o caso em que, numa empresa, gerentes cobram de seus subordinados que apresentem desempenho muito acima da meta (pois considera, tacitamente, que dessa forma se esforçarão para chegar pelo menos próximo do normalmente desejado), ao mesmo tempo em que estes controlam sua produção para que esteja sempre abaixo da meta (pois acham que um aumento em eficiência seria acompanhado de elevação nas metas e aumento da cobrança). Nesta relação, a relação gerente-subordinados configura um ciclo que afeta negativamente a produtividade. Co m a intervenção de um consultor, as crenças de gerentes e subordinados poderiam ser gradualmente modificadas, tornando suas relações funcionais, aprimorando a comunicação e levando, assim, à superação do duplo vínculo. Muda-se, portanto, a lógica do sistema.

irreversível (Rosa, 2007a; Valsiner & Rosa, 2007). Os sistemas abertos são, pois, típicos

sistemas heraclitianos.

Logo, ao mesmo tempo em que as interações entre agentes causais são os meios

necessários para a perpetuação de uma dinâmica sistêmica já em curso, elas podem ser

também os meios suficientes para a agregação de mudanças no curso de sua evolução, tornando-o diferente de si mesmo no transcorrer do tempo, mas conservando, a cada mudança, a sua identidade geral como fenômeno. Esses tipos de sistemas que podem variar ilimitadamente em suas conformações são denominados sistemas abertos (Valsiner & Rosa, 2007). Pode-se considerar que o funcionamento e a evolução desses sistemas são análogos aos de ecossistemas. Mas, no contexto da PC e da Teoria da Atividade Histórico - Cultural (CHAT), em vez de indivíduos autônomos, os “agentes” (nesse caso, actantes) dos sistemas são uma diversidade de elementos cultural-cognitivos: signos, símbolos, ações, semioses e outros tipos de circunscrições teóricas com propriedades causais semelhantes; em vez de espécies, as linhagens equivalem a cadeias de recursões contínuas entre aqueles tipos e elementos, e podem ser compreendidos como semioses, interpretações, atividades, fluxos recursivos, etc.; e todos estes conformam e dinamiza m as totalidades orgânicas que são os sistemas sócio-histórico-culturais, cada um dos quais corresponde a uma dimensão ou faceta do que habitualmente é referido como uma

cultura, propriamente dita: práticas culturais, sistemas de atividades, técnica, tecnologia,

discursos, representações, mitologias, linguagens, estética, moralidade, valores, ética, beleza, inteligência, normalidade, identidade, dentre uma infinidade de outros aspectos aparentemente distintivos dos vários traços próprios de cada um dos diferentes grupos humanos (Boesch, 1991; Ingold, 2000, 2008; Rosa, 2007a, 2007b; Valsiner, 2012).