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2. Análise microgenética baseada na Psicologia Cultural e na Semiótica

2.5. Signo, mediação e seus papéis instrumentais na semiose

A concepção de signo adotada pela PC provém, originalmente, da ciência geral denominada Semiótica (Peirce, 1931-1958/1994, 2011). Na Semiótica, o signo é denominado triádico por conter necessariamente três elementos em relação mútua: (1) o signo propriamente dito (também chamado de representamen18); (2) seu interpretante, e (3) seu objeto. Esses são os três correlatos que necessariamente se conformam na composição de um signo. De modo geral, os fenômenos condicionados a essa conformação triádica são regidos pela lógica de mesmo nome. Nessa lógica, pressupõe- se que cada fenômeno que tem ocorrência é sempre composto por algo que afeta, algo que é afetado e algum ordenamento subjacente àquela relação de afetação (Peirce, 2011). Sob uma perspectiva semiótica, os fenômenos mentais também estariam condicionados à mesma matriz triádica, tornando-a formalmente adequada como base analítica para as ciências cognitivas e uma alternativa viável aos modelos fundamentados na causalidade direta (Rosa, 2007a; Valsiner & Rosa, 2007). Na concepção de Valsiner (2012), especificamente, a PC estaria voltada à investigação da emergência e da manutenção da

ordem hierárquica dos fenômenos psíquicos da vida humana. Para este fim, propõe o uso

de metodologias de investigação sistêmicas, qualitativas e idiográficas, as quais, a

18 Até certa altura de sua obra, Peirce usou o termo representamen para se referir ao correlato do signo que

“representa” as coisas ou ideias sob as formas pelas quais são percebidas. Mais tarde, preferiu abrir mão do termo, usando simplesmente a palavra signo, ou signo imediato, em referência àquele correlato em sua qualidade de representação do objeto significado na forma pela qual é percebida pelo sujeito (Pe irce, 1977, p. 193).

princípio, seriam adequadamente sensíveis aos determinantes semióticos por trás dos processos de emergência.

Na ciência idiográfica, a possibilidade de realizar generalizações teóricas a partir de dados provenientes de poucos casos, ou mesmo de apenas um, é considerada viável e conveniente (Valsiner, 2012). Neste sentido, é imprescindível que a investigação se dê sobre o fenômeno em sua apresentação empírica concreta (não se limitando à possibilidade de confirmar ou não as ocorrências de marcadores conceituais previame nte estabelecidos), uma vez que os aspectos fenomênicos generalizáveis estariam contidos nas transições que regem sua dinâmica, e, por outro lado, poderiam não deixar vestígios em sua apresentação final, inviabilizando a análise de sua emergência (Cabell, 2011; Cabell & Valsiner, 2014; Rosa, 2007a, 2007b). Na qualidade de atos mediados, os processos de transição e emergência incorporam as tendências, regras, hábitos e leis que regem as atividades de mediação. Tais processos seriam, portanto, a face empírica das dinâmicas fenomênicas sujeitas à generalização. Por outro lado, os elementos que constituem o fenômeno, não sendo apropriados para atuar como dispositivos de memória capazes de fornecer dados generalizáveis acerca dos processos que levaram a sua emergência, teriam valor secundário nesta abordagem científica. Tais peculiaridades metodológicas se devem ao fato de que as generalizações idiográficas não advêm das qualidades empíricas dos fenômenos, mas necessariamente das operações dinamizadas pela interação entre aquelas qualidades (Cabell, 2011). No caso da PC, as operações de mediação cognitiva ocorreriam de acordo com as leis que regem a dinâmica triádica dos signos, de modo que a compreensão das dinâmicas semióticas decorrentes da atividade desses elementos equivaleria à compreensão das dinâmicas processuais que regem a própria cognição. Eis o que torna fundamental a utilização de metodologias capazes de

tornar tais atividades empiricamente acessíveis à percepção do pesquisador (Rosa, 2007a, 2007b).

Pela ótica da semiótica, a mediação equivale ao uso de símbolos para operar os elementos da realidade (Valsiner, 2012). As possibilidades de mediação e os tipos de operação disponíveis, no entanto, variam de acordo com as concepções de realidade dos atores, e tais concepções, por sua vez, fundamentam-se nos diversos modelos de símbolos e práticas culturais disponibilizados ao longo de sua experiência de vida. As variações possíveis na realização da mediação são virtualmente infinitas, ainda que a ocorrência de alguma tenda a prevalecer, enquanto outras se tornam atípicas, na medida em que a própria dinâmica cultural reproduz determinadas tendências de catalisação, promoção ou inibição.

É preciso destacar ainda que o ato de significar equivale a um ato de produção de mediação. Tal especificação é particularmente importante na medida em que a Teoria da Atividade, também utilizada neste trabalho, se afasta das tipologias semióticas, priorizando o uso de categorias desenvolvidas em seu próprio campo (e que, portanto, se adequam mais diretamente a seus objetos e concepções metodológicas). Assim, o ato de significar o objeto de um processo de mediação que já estaria em vigência seria um ato de ressignificação, e, pela ótica da CHAT, um processo de re-mediação (Sannino et al., 2009). Assim, ressignificar equivaleria a alterar o sentido das ações e objetos pela mudança no sentido dos elementos simbólicos (de suas relações dinâmicas) que estariam mediando a representação ou atribuição de significados que, até então, equivaleriam às conformações preceptuais daqueles mesmas ações e objetos. Ao re-mediar um significado, o sujeito produz um novo tipo de ação, podendo, ao longo de uma cadeia de re-mediações, gerar um novo tipo de atividade. Adicionalmente, a re-mediação deliberada

está diretamente relacionada aos processos mentais de alta ordem, que tramitam em instâncias da linguagem. Logo, a re-mediação é um processo de especial utilidade na abordagem da instrumentalidade, na medida em que é imbuído pelo interesse característico da CHAT por operações coletivamente organizadas e orientadas para um fim. Além disso, conserva-se teoricamente análoga a categorias fundamentais à PC, atuando como interface conceitual entre as abordagens histórico-culturais que enfatiza m a compreensão e declaração das representações semióticas (como a PC, a Teoria da ação simbólica de Boesch, 1991, 2007; e a Teoria das Hipóteses de Mundo, de Pepper, 1970) e aquelas que enfatizam o exercício dessas representações e a operação dos dispositivos semióticos nelas incorporados (como a CHAT e a Antropologia Cultural, de Ingold, 2000, 2008).

Para a pesquisa aqui apresentada (no Capítulo 4), a abordagem metodológica utilizada como interface compreensiva entre a base conceitual apresentada neste capítulo e os exercícios de exploração e análise dos dados foi o ciclo metodológico, proposto por Branco e Valsiner (1997) e Valsiner (2000, 2012, 2014). Tal abordagem propõe que o pesquisador atue como centro operacional nas atividades de produção de dados empíric os e analíticos de sua pesquisa, mas não se limitando, em seu fazer, aos papéis institucio na is que regulam a realização de sua prática (professor, cientista, bolsista de produtividade, etc.): o pesquisador, nas qualidades de produtor de conhecimento e de sujeito histórico e culturalmente situado, deve reconhecer a si mesmo como elemento de coesão entre os diversos corpos de informação, analisados sob um nexo comum, e, posteriorme nte, transformados em novos conhecimentos. Munido de seus conhecimentos operacionais e teóricos, mas também inevitavelmente imbuído de seus valores pessoais e culturais, de suas crenças gerais sobre o mundo, e dos objetivos que orientam a sua atuação (e que,

sabidamente ou não, fundamentam-se em todos os atributos anteriores), o pesquisador seria o único “recurso de análise” capaz de prover nexo comum a informações de origens e naturezas diversas. Através de inferências abdutivas, o analista projeta sobre os conteúdos que examina os ordenamentos epistemológicos que lhe são familiares (pois habitam seus sistemas pessoais de conhecimento), o que, ao longo de seu empreendimento de reclassificação progressiva, acaba por aproximar seus significados e a reorganizar as informações inicialmente diversas em um todo compreensivo (ou pelo menos em uma menor quantidade de conjuntos, e mais próximos entre si). Sistematizado, o corpo de informações apresenta significações próprias, novas, e potencialme nte instrumentais para a produção de novos conhecimentos (Branco & Valsiner, 1997; Valsiner, 2000, 2012).

Todo o ciclo condiciona a atividade de pesquisa de tal modo que a produção de novos dados repercute na estrutura metodológica engendrada, que sofre algum tipo de evolução (Branco & Valsiner, 1997; Valsiner, 2000, 2012). Essas mudanças, por sua vez, reverberam tanto nas formulações teóricas que sustentaram a reflexão analítica ao longo da investigação quanto nos sistemas de conhecimentos implícitos e explícitos do próprio pesquisador (o esquema básico do ciclo é ilustrado pela Figura 3). Deste modo, as considerações acerca dos fenômenos investigados (mas também as suas bases científicas) são continuamente revisadas e reformuladas, e as diretrizes metodológicas vigentes continuam a ser ajustadas e reiteradas até que se chegue a formulações teoricamente consistentes, coerentes com todas as instâncias compreensivas que compõem o ciclo, e que respondam às questões que contingenciaram a investigação, de acordo com as pertinências que conservaram ou adquiriram ao longo do processo (Branco & Valsiner, 1997).

A evolução científica ocasionada por este exercício promove ainda o desenvolvimento da coerência vertical que alicerça a abordagem científica posta em prática, reforçando assim a coerência mútua entre seus elementos constituintes: suas assunções e construtos teóricos, os fenômenos por ele abordados, os conhecimentos que lhe são concernentes, os métodos pelos quais opera, e também entre o sistema como um todo e as competências pessoais do investigador (Valsiner & Rosa, 2007). Como consequência, a ciência em questão se torna progressivamente menos dependente de modelos explicativos cuja coerência é fundamentalmente horizontal. Em outras palavras, aquela ciência se torna mais próxima da realidade que aborda, aprimorando a sua operacionalidade e a efetividade de suas formulações e intervenções (Valsiner, 2014; Valsiner & Rosa, 2007).

Figura 3. Representação abstrata do ciclo metodológico (ou círculo metodológico).

Adaptado de Branco e Valsiner (1997). A imagem representa as vias de interação entre as instâncias do processo de pesquisa, interligadas e orientadas pela subjetividade do pesquisador. As setas sólidas representam o sentido em que as inferências estão metodologicamente estruturadas. As setas vazadas representam as inferências que podem ocorrer intuitivamente, independentemente do plano metodológico, mas que promovem modificações na compreensão de partes ou do todo do esquema de pesquisa.

Ademais, talvez o ciclo metodológico seja uma ilustração adequada de um dispositivo (conceitual) organizador de atividades que têm como finalidade, especificamente, a

promoção de re-mediações: a adoção desse esquema metodológico leva a alterações progressivas nos valores das informações (sejam semânticos, sintáticos ou semióticos), conferindo- lhes novos significados. Nesses processos, o ciclo é instrumental na orientação conferida à progressão semiótica das informações, que se tornam progressivamente convergentes, o que favorece seletivamente o incremento, a cada novo ciclo de re-mediação, de compatibilidade entre cada uma delas.

2.6. Mediação e catalisação de signos: conduzindo o fluxo recursivo de um processo