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O virtual e a técnica : a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA COGNITIVA

RAFAEL FERNANDES BEZERRA

O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada

por artefatos que se comportam

Recife 2014

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O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada

por artefatos que se comportam

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco para obtenção do título de mestre em Psicologia Cognitiva.

Área de concentração: Psicologia Cognitiva

Orientadora: Profa. Dra. Maria C. D. P. Lyra, professor adjunto.

Recife 2014

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

B574v Bezerra, Rafael Fernandes.

O virtual e a técnica : a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam / Rafael Fernandes Bezerra. – Recife: O autor, 2014.

237 f. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Maria da Conceição Pereira de Lyra.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, 2014.

Inclui referências e anexos.

1. Psicologia cognitiva. 2. Semiótica. 3. Cultura – Modelos semióticos. 4. Sinais e símbolos. 5. Interfaces (Computadores). I. Lyra, Maria da Conceição Pereira de (Orientadora). II. Título.

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Dedico este trabalho ao amor, à internet e a todas as

pessoas-com-o-Q.I.-superior-ao-de-Albert-Einstein(-!) que se dedicam à superação dos equívocos históricos que sustentam a crença de que é aceitável, ou mesmo produtivo, investir na busca pela fórmula das pessoas-com-o-Q.I.-superior-ao-de-Albert-Einstein em detrimento do investime nto na superação das barreiras entre a razão e a sensibilidade humana. Estes três elementos fundamentais da realidade inspiram a minha utopia de que o segundo fará com que chegue a todos os cantos o primeiro, que é o fundamento necessário ao florescimento do genuíno terceiro.

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se devotou a nos ensinar o valor da bondade, da caridade e da superação; aquele que, ao custo da própria vida, legou aos mortais a salvação. Obrigado, Goku!

À Menininha, Keyla Mafalda, eu não sei se agradeço ou atribuo a coautoria deste trabalho. Seu suporte acadêmico e científico, suas indicações bibliográficas e de notícias, seu esforço de motivação em momentos de dúvidas e seus questionamentos em momentos de certeza; sua disposição em assumir o papel d’ “a chata”, mesmo contra o próprio desejo de sê-lo. E, sobretudo, por seu bem-querer incondicional; por não ter me abandonado nem quando eu mesmo já o tinha feito. Sem esse suporte, pouco adiantaria estar vivo e salvo. Seu cuidado trouxe sustentabilidade a todo o esforço. Gratidão sem tamanho, Menina ! (Além de todos os outros sentimentos que já são gratuitos). E não deixemos, ambos, de ser gratos ao Skype e aos outros canais digitais, que possibilitaram a virtualidade de nossa proximidade separada por centenas de quilômetros e uma conectividade ruim.

Imensamente grato, também, àqueles que deram “aquela força” na reta final: grato a Tadeu, pelo abstract caído do céu. Grato aos colegas de moradia (Gabriel, Hugo e Ricardo) por suportarem resignadamente a displicência com os afazeres domésticos, sala, banheiro, cozinha e restos de louças sujos, atrasos no aluguel, dentre outras inconveniências cotidianas. Grato a todos os amigos que acompanharam à distância as semanas finais daquele mestrado, e que mandaram cargas e descargas de energias positivas. Tanta força no finzinho só pode ter vindo daí!

Grato a Cândida (que alguns prefeririam chamar de Malditinha), que chegou de surpresa nos últimos instantes dos pênaltis, e, além de deixar apresentável minha apresentação de defesa, ficou para assisti-la, e acabou por tomar conta de Keyla e de mim,

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Grato a Henrique, que se dispôs a participar deste trabalho, tendo sido sempre compreensivo e aberto. O sucesso deste trabalho se deve em grande parte a sua disponibilidade.

Grato ao pessoal do LabCCom, por sustentarem a ilusão de que este trabalho seria defendido em março (ilusão que, no fim das contas, se concretizou). Grato a Jaan Valsiner, por suas dicas sobrenaturalmente relevantes, e a Nikita Kharlamov, por me revelar o incrível mundo da delimitação contexto-institucional dos recortes de um projeto de pesquisa.

Grato a Maninha, que assumiu minha orientação a despeito de todos os inconvenientes, prestando-se, mais tarde, ao enduro de vários constrangimentos e quebras de protocolo que poderia ter escolhido não enfrentar. Foi tanta peleja que, mesmo se eu tivesse morrido, teria dado um jeito de psicografar a dissertação e baixar num médium pra a defesa, só pra garantir que o empenho não teria sido em vão. Felizmente não foi o caso. A dívida será paga com papers. Que essa parceria esteja à altura de sua disposição científica!

Grato aos que fizeram o PPG em Psicologia Cognitiva durante minha passagem por lá. Ainda mais grato aos que impediram que fosse desfeito. Grato aos colegas: às curicas, aos filosófico-pedantes, aos que viajavam, aos que tinham fé; à extensão do TJ, e aos doutorandos, que mantiveram o nível da discussão. Grato a Mussa! Companhia amigável que por diversas vezes abortou a solidão dos jantares no RU.

Grato a Selma, coordenadora, defensora da dignidade discente, e companhia noturna no deserto 8º andar do CFCH. Grato a Alina, entusiasta da vida inteligente nos corredores da PG, e cuja sabedoria acadêmica (e humana) esteve sempre à disposição.

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Grato a Luciano, que me atraiu ao universo da Psicologia Histórico-Cultural, que ajudou no delineamento de meu projeto, e que continua sendo fonte de inspiração às ideias e à carreira.

Grato aos membros de minha banca de defesa, Síntria e Robson, com toda a sua paciência, comprometimento e gentileza. Suas colaborações e exigências foram fundamentais para transformar o rascunho avaliado (que leram sob o nome de dissertação) em um texto de valor acadêmico menos contestável. Sua humanidade foi fundame nta l para o balanceamento de minha sanidade mental.

Grato a Fabiana e a Carlos, que me acolheram em seu lar, e cuja família eu tive o privilégio e a alegria de ver se formar. Além de gente boa de se estar perto, ainda trouxeram Mariana pra alegrar mais a casa e o mundo.

Grato ao Estado brasileiro, que, agenciado pelo CNPq, subsidiou esta etapa de minha formação por meio de bolsa de mestrado, concedida por 24 meses.

Grato ainda a minha família e a todos os colaboradores da Fernandes & Bezerra LTDA., provedores de suporte material nesses tempos difíceis em que se dedicar a uma pós-graduação sustentando-se apenas com uma bolsa (especialmente fora de sua cidade) é uma empreitada digna apenas dos mais devotos ou desesperados (ou ainda daqueles masoquistas celibatários que de vez em quando, mas não muito frequentemente, a gente vê em um ou outro grupo de pesquisa. Não é justo usá-los como parâmetro).

Grato, por fim, aos outros Oficiosos, que trouxeram vida e espírito à mais importante, promissora, edificante e fecunda instituição para-acadêmica da história recente do 8º andar: a Cachaça Cognitiva. Gabriel, Hugo, Raissa, Silvinha, Lara, Amanda. Imensuravelmente grato, mas não menos saudoso. Sem vocês, Recife não passaria de uma

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lá.

A todos vocês, e a muitos outros que o espaço não contempla, sou grato por me tornar alguém que gosto mais de ser. Sou grato por aprender a desistir de desistir, a amar o amar, a buscar o que almejo, e a perdoar as coisas humanas.

S2

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ABSTRACT 13

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14

APRESENTAÇÃO 14

INTRODUÇÃO 16

1. TÉCNICA: A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA E SUA PROGRESSIVA INFORMATIZAÇÃO 20

1.1.TÉCNICA E COGNIÇÃO SITUADA 20

1.2.A HISTÓRIA POR TRÁS DAS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA 34

1.3.A OPERACIONALIDADE DA TÉCNICA COMO DISPOSITIVO METAFÓRICO DE INTERFACEAMENTO ENTRE

SIGNOS 39

2. ANÁLISE MICROGENÉTICA BASEADA NA PSICOLOGIA CULTURAL E NA SEMIÓTICA DE

PEIRCE 47

2.1.APSICOLOGIA CULTURAL SEMIÓTICA E O EMPREENDIMENTO EM UM NOVO PARADIGMA SOBRE A

COGNIÇÃO 47

2.2.A MEDIAÇÃO COMO PROCESSO SEMIÓTICO EM EVOLUÇÃO 53

2.3.ESQUEMAS COGNITIVOS, MEDIAÇÃO E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS 64

2.4.A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA E SUA CONFIGURAÇÃO SEMIÓTICA 69

2.5.SIGNO, MEDIAÇÃO E SEUS PAPÉIS INSTRUMENTAIS NA SEMIOSE 75

2.6.MEDIAÇÃO E CATALISAÇÃO DE SIGNOS: CONDUZINDO O FLUXO RECURSIVO DE UM PROCESSO SEMIÓTICO

82 2.7.AS 10 CLASSES DE SIGNOS NA SEMIÓTICA E SUAS PROPRIEDADES INSTRUMENTAIS 101

2.7.1.AS CLASSES DE COISAS E SUAS QUALIDADES:|1 O|,|2O|,|3O|

E |4O| 103

2.7.2.AS TRÊS CLASSES NÃO SIMBÓLICAS DE LEGISIGNOS:|5O|,|6O| E |7O| 127

2.7.3.AS CLASSES SIMBÓLICAS:|8O|,|9O|

E |10O| 134

2.7.4.AS IMPLICAÇÕES DAS CLASSES DE SIGNOS E SUAS PROPRIEDADES SEMIÓTICAS NA REALIZAÇÃO DE

INFERÊNCIAS ABDUTIVAS 142

3. OBJETIVOS E MÉTODO 149

3.1.MÉTODO 149

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO DO EPISÓDIO ANALISADO 157

4.1.RECEPÇÃO 158

4.2.A SESSÃO DE NAVEGAÇÃO ENQUANTO ESTEVE DESACOMPANHADO 163

4.3.DISCUSSÃO 185

5. PERSPECTIVAS FUTURAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS 214

REFERÊNCIAS 218

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Resumo

BEZERRA, R. F. O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada

por artefatos que se comportam. 118f. Dissertação (Mestrado) – Pós Graduação em

Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

A pesquisa aqui proposta teve como fim a investigação dos meios pelos quais são mobilizadas e instrumentalizadas as propriedades semióticas expressas na microgê nese de ações realizadas na operação de interfaces digitais. A matriz teórica utilizada foi a Psicologia Cultural Semiótica, subsidiada pela Teoria da Atividade Histórico-Cultural e pela Semiótica peirceana. A produção de dados empíricos e a análise foram realizados a partir de um episódio videografado, em que um jovem realizou atividades que lhe eram habituais, em um computador. Dessas atividades, as operações realizadas na interface da rede social Facebook se destacaram como via de instrumentalização de funções e ferramentas digitais. A análise dos dados foi operacionalizada pela adoção do ciclo

metodológico, uma proposta de análise idiográfica configurada para a abordagem de

fenômenos de causalidade sistêmica. Demonstrou-se a ocorrência de relação entre as qualidades semióticas e as propriedades instrumentais dos esquemas operacionalizados na microgênese das ações realizadas com a interface. Alguns padrões processuais foram identificados; padrões de mediação do fluxo recursivo da atividade foram delineados, tendo se destacado a ocorrência de tipos de propriedades aparentemente divergentes, mas complementares em sua atuação como determinantes da mediação semiótica. Um desses tipos diz respeito à regência das semioses por deliberação volitiva, enquanto o outro diz respeito ao efeito de forças exteriores ou mesmo alheias ao sujeito, mas que impunha m certas configurações instrumentais características sobre o fluxo das ações realizadas. As relações dinâmicas observadas entre esses padrões apontaram para a prevalência de um equilíbrio dinâmico entre determinantes teleonômicos e teleológicos sobre a catalisação da agência no âmbito dos contextos instrumentais por eles afetados.

Palavras-chave: Cultura da interface, Psicologia Cultural, Semiótica, Esquemas

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Abstract

BEZERRA, R. F. The virtual and the technique – the Microgenesis of instrume ntal

action mediated by artifacts which behaves. 118f. Dissertation (Master’s Degree) –

Graduate Program on Cognitive Psychology, Federal University of Pernambuco, Recife, 2014.

The reported research had as leading aim the investigation of the means by which the

operating actions with digital interfaces microgenetically instrumentalize the semiotical properties featured at the activity. The adopted theoretical matrix is the Semiotic Cultural

Psychology, supported by Cultural-Historical Activity Theory and by Peirce1s Semiotics. Data production and analysis were made from a video-recorded episode in which a high schooler accomplished familiar activities by using a computer during a experimentall y-proposed session. Amongst these activities, those performed at the facebook were remarkably distinguished as resources for instrumentalize digital functions and tools. At data exploration and synthesis, the methodological cycle was applied as idiograp hic analysis tool, being arranged to approach systemically causal phenomena. The microgenetic emergence of actions revealed an immediate relationship between semiotical qualities and semiotical properties of those instrumental schemes operated to actuate over the interface. Those observations driven to the outline of short patterns of processes, and therefore to the outline of patterns of mediation in the activities’ recursive flow. Those outlines highlighted the occurrence of types of properties apparently dissonant between each other, but actually complementary when actuating as semiotic mediators. One of these types concerns the determination over the semiosis by volitio na l deliberation, as the other concerns the effect of exogenous determinations (possibly even unnoticed by the affected person). At the experimental session events, the actuation of those properties inflicted typical instrumental arrangements upon the flow of actions while it were performed. The recurrent occurrences of typical actions suggests the occurrence of dynamic balance between teleonomical and teleological actuators as they affected the catalysis of user’s agency concerning the instrumental contexts that their actions were performed within.

Keywords: Culture of interface, Cultural Psychology, Semiotic, Symbolic schemes,

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Considerações iniciais

Apresentação

Este trabalho é fruto de um esforço de pesquisa que buscou estabelecer um delineamento das práticas culturais representativas da realidade sociotécnica contemporânea, em que o uso de recursos digitais vem se difundindo em ritmo e com força avassaladores, subsidiando a formação de culturas de interface. A matriz teórica primária de sua fundamentação foi a Psicologia Cultural, sendo também assimilados conceitos e pressupostos relevantes da Teoria da Atividade Histórico-Cultural. A primeira enfatiza a abordagem de fenômenos culturais e cognitivos de natureza simbólica, enquanto a segunda concebe a existência de uma intercessão intrínseca e fundame nta l entre a realização de atividades situadas em contextos operacionais e o desenvolvime nto de formas de subjetivação culturalmente emergentes, que em alguma medida teriam sua evolução no âmbito daquelas atividades. Além dessas duas abordagens, a Semiótica peirceana foi adotada para organizar a compreensão de signo usada nesta pesquisa como unidade de análise. A produção de dados empíricos e a análise foram realizados a partir de um episódio videografado, em que um jovem realizava atividades que lhe eram habituais, em um computador. Dessas atividades, as operações realizadas na interface da rede social Facebook se destacaram como via de instrumentalização de uma diversidade de funções e ferramentas digitais. A análise dos dados foi operacionalizada pela adoção do ciclo metodológico, uma proposta de análise idiográfica que orienta um processo de sistematização progressiva dos dados e de sua compreensão teórica. Partiu-se de dados empíricos fracamente estruturados, mas com referenciais teóricos consistentes, com o intuito de promover uma evolução mútua de ambos cujo produto final foi o corpus de dados sistematizado para esta dissertação. Ao longo da exploração dos dados, alguns

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padrões processuais foram identificados, tendo o foco da análise recaído sobre ações efêmeras e pontuais, na fronteira entre a volição, teleológica, e os atos incidentais, de viés intuitivo. Alguns padrões de mediação do fluxo recursivo da atividade foram delineados, de acordo com as tipologias utilizadas, tendo se destacado nesses padrões certas propriedades aparentemente divergentes, mas complementares em sua atuação como determinantes da mediação semiótica, polarizada em dois extremos: em um deles, a regência das semioses se devia ao efeito da deliberação volitiva, e, no outro, ao efeito de forças exteriores ou mesmo alheias ao sujeito, mas que impunham certas configurações de valor instrumental distintivo sobre o fluxo de suas ações.

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Introdução

Everytime you consult a calendar or clock, other people are thinking for you.

(Kevin K. Birth)

Antes de entrar na discussão teórica propriamente dita, é fundamental situar o leitor do lugar epistemológico de onde falo. Este trabalho se baseia em uma síntese de reflexões teóricas a partir de abordagens epistemologicamente próximas. Por outro lado, a despeito de suas semelhanças de família, elas guardam distinções fundamentais nas formas pelas quais se constituem conceitualmente, sendo necessária a produção de interfaces analíticas que evidenciassem os pontos em comum de interesse neste trabalho. Do que as perspectivas adotadas apresentam em comum deve ser primeirame nte salientado que se fundamentam em ontologias relacionais. Uma ontologia relacional é uma ontologia do devir (que, na tradição ocidental, remete a Heráclito de Éfeso), sendo de especial interesse o caráter orientado (e não casual ou probabilístico) das mudanças no

ser. Numa ontologia relacional, cada mudança está situada no âmbito de um processo, de

modo que mudar não é simplesmente a alteração de um estado a outro, mas a incorporação de características que evoluem de acordo com a gênese um fluxo governado por leis.

Algumas das referências que orientaram minha reflexão são frequenteme nte classificadas como “pós-modernas”, o que, a princípio, as afastaria de meu referencia l metodológico, fundamentado na Psicologia Cultural do círculo de Valsiner1 (à qual me

1 Uso a expressão “Psicologia Cultural do círculo de Valsiner” para me referir a esta abordagem da

Psicologia que ainda não recebeu uma denominação definitiva. Em alguns textos aparece como Psicologia Cultural do Desenvolvimento, em outros como Psicologia Cultural Semiótica, ou simplesmente Psicologia

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referirei nesta dissertação apenas como Psicologia Cultural, ou PC), que identifica naquelas perspectivas certa disposição científica para produzir análises e conhecime ntos sem pretensões de generalização. Valsiner (2000) é explícito em especificar que seu projeto de ciência psicológica se propõe à generalização, alinhando-se a uma epistemologia idiográfica (Molenaar, 2004; Valsiner, 2000). Todavia, das minhas referências, aqueles que se enquadrariam no rótulo de pós-modernos não são explíc itos em descartar a generalização como uma possibilidade de seu fazer científico (Latour, 1994; Lévy, 2011a). Eles apenas adotam posições aversivas à postura científica tradicional (que tendia ao determinismo naturalista), apresentando propostas que se mostram compatíveis a perspectivas idiográficas com pretensões de generalização (Molenaar, 2004).

Outro ponto de consonância entre as perspectivas adotadas é a noção de cultura. Todas renunciam a noção de cultura como uma instância da realidade à parte do sujeito e com a qual ele teria uma relação de consumo, e frisam que esta noção não é apropriada para compreender os fenômenos humanos na organicidade de suas dinâmicas (Ingold, 2008; Latour, 1994; Lévy, 2011b; Valsiner, 2012). De forma muito semelhante, todas adotam a noção de cultura como algum tipo de semiosfera (Valsiner, 2012), em que objetos e eventos significativos se tornam integrados aos sujeitos por meio de experiências em que todos são significados com seres que compartilham uma mesma realidade vivencial (e, consequentemente, suas propriedades ontológicas). Na PC, cultura é uma noção que se refere aos tipos de atos de mediação semiótica, dentre eles os que

Cultural. Ela se distingue de outras Psicologias de concepção sociocultural (ou histórico -cultural, ou ainda sócio-histórica) por adotar uma base conceitual fortemente fundada ou diretamente proveniente do trabalho de Jaan Valsiner, que tem atuado como promotor e agregador no desenvolvimento do que considera uma nova ciência psicológica.

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convencionam suas atividades histórico-culturais (Valsiner, 2012; Valsiner & Rosa, 2007). Tim Ingold (2000, 2008), que fundamenta a noção de técnica aqui discutida, alinha-se diretamente ao culturalismo da PC. Já Pierre Lévy (1997, 2011b) desenvolve o conceito de ecologia cognitiva, um tipo de semiosfera especialmente sensível à técnica e às instâncias objetivadas do conhecimento, e que (re)condicionam continuamente nossos modos de ser, pensar e agir. Bruno Latour teoriza sobre o ator-rede (Latour, 1994), concepção de sujeito que incorpora uma reinterpretação mais abrangente sobre as relações homem-objeto e sobre seus desdobramentos sociais, buscando superar as oposições sujeito-objeto e objetivo-subjetivo clássicas da epistemologia ocidental naturalista.

Além de convergirem em suas concepções, estas referências também abordam, grosso modo, a mesma problemática: as consequências da operação de determinados tipos de artefatos sobre o desenvolvimento individual e coletivo sobre seus usuários, assim como seus desdobramentos na produção de significações, esquemas cultura is, modalidades de intersubjetivação e de socialização.

O esforço de inter-relacionar essas perspectivas se mostra viável não apenas porque se voltam para a abordagem de fenômenos semelhantes (ainda que em diferentes apresentações), mas porque todas se propõem a lidar com estes fenômenos a partir de compreensões transdisciplinares, que não se deixam limitar a um ou outro saber específico, mas que se fazem na comunhão desses saberes.

A matriz teórico-epistemológica que uso como base operacional para realizar esta inter-relação é a Psicologia Cultural. Essa abordagem conta com sofisticação conceitua l apropriada para a produção da interface teórica proposta. Sua concepção é histórico -cultural, assimilando reflexões insufladas pela virada linguística (Harré & Gillett, 1999;

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Valsiner, 2012) e pelo pragmatismo (Armengaud, 2006; Peirce, 1931-1958/1994). Sua epistemologia, fundamentada na semiótica Peirceana (Peirce, 2011; Rosa, 2007a; Sannino, Daniels, & Gutiérrez, 2009), possibilita a concepção da cultura como fundamento virtual da natureza humana, como corpo concreto de uma ecologia semiótica, e como conteúdo e configuração processual da cognição – uma cognição situada (Oliveira, 2011). A abordagem metodológica operacionalizada nesta dissertação se volta aos processos de produção de significados, com interesse especial pela produção de conhecimentos e modos de saber práticos, engendrados na microgênese dos contextos instrumentais que os contingenciam. Colateralmente, outros temas de interesse concernentes a tais modos de saber são suas implicações ao desenvolvimento de hábitos e padrões de ação, e seus desdobramentos na constituição de identidades sociotécnicas e de culturas de interface, temas que são discutidos no primeiro capítulo desta dissertação. É após essa contextualização de questões sociotécnicas e históricas que a ênfase teórico -metodológica do trabalho ganha corpo, tendo seus fundamentos discutidos no segundo capítulo, sua operacionalização prática no terceiro (objetivos e método) e os resultados de sua efetivação no quarto capítulo (resultados e discussão). No quinto e último capítulo, algumas considerações finais sobre a discussão são apresentadas, assim como as perspectivas futuras de desenvolvimento para a linha de investigação que permanece como espólio da conclusão deste trabalho de pesquisa.

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1. Técnica: a instrumentalidade da cultura e sua progressiva

informatização

1.1. Técnica e cognição situada

A noção de que a cultura é o substrato simbólico da cognição implica que as funções cognitivas estão sintonizadas a diferentes gêneros de atividades culturais. Cada um destes gêneros corresponde a uma instância do universo simbólico em que o sujeito está inserido; uma instância que se caracteriza em função das ações que devem ser realizadas ou das coisas que devem ser feitas em um dado momento da vida (ou, em outras palavras, em função de cada contexto pragmático em que a ação do sujeito se situa). Das diferentes instâncias da cultura, nos interessa particularmente a técnica (Ingold, 2000).

A técnica é uma dimensão fundamental da experiência, com desdobramentos sobre os processos de significação das práticas e percepções, sobre a construção do conhecimento e, em última instância, sobre o desenvolvimento das estruturas de vida dos indivíduos e coletivos humanos. É, pois, uma via de significação fundamental na construção da identidade humana. Sendo a cultura um dos substratos fundamentais da cognição (o que será tratado de forma mais detalhada no segundo capítulo), a investigação das implicações específicas de sua dimensão técnica tem se tornado cada vez mais relevantes, dada a importância que os artefatos vêm adquirindo na vida humana desde o início do industrialismo.

A técnica, como dimensão da cultura humana, não deve ser entendida como “tecnologia”. A tecnologia é um corpus de conhecimento conceitual, objetivado e codificado em uma linguagem “científica” (propedêutica). Seu propósito é o de universalização de um conhecimento e de sua aplicabilidade, independentemente do contexto cultural e das identidades de seus usuários. A técnica, por outro lado, vai para

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além da dimensão dos conhecimentos declarativos. Como instância da cultura, se caracteriza por seu aspecto relacional, de modo que as operações técnicas são sempre incorporadas em relações sociais, e somente podem ser entendidas nesta matriz relacional, como aspecto da sociabilidade humana (Ingold, 2000; Tomasello & Hermann, 2010). Logo, ela está profundamente relacionada com a identidade de seus agentes.

Tanto a técnica como a tecnologia são primariamente associadas à realização de atividades produtivas, à dimensão humana do fazer. Mas, enquanto a tecnologia concerne à operacionalização de conhecimentos universais, explícitos e objetivos, a técnica se faz concreta na subjetividade. Ela está incorporada e é inseparável da experiência de um sujeito em particular em seu esforço de moldagem de uma coisa em particular. A técnica localiza o sujeito (a sua subjetividade) no cerne da atividade, incorporando a sua identidade ao fazer e aos saberes postos em prática, e estando incorporada a uma experiência mais intuitiva que analítica. Os conhecimentos operados são, em si, conhecimentos práticos, tácitos, que fluem e se configuram em sintonia com o contexto empírico da ação, não sendo necessariamente organizados por algum corpus de regras explícitas (Ingold, 2000).

Instanciada na técnica, a cultura é significada como conhecimentos em uma configuração empírica, como se pode perceber na experiência de profissionais cuja formação é tanto prática quanto teórica. O músico, ao tocar, evoca em seu fluxo perceptivo as experiências que teve anteriormente com seu instrumento. O recurso a conhecimentos declarativos sobre teoria musical é exceção em sua performance, reservado apenas para quando sua própria experiência empírica não é referência suficie nte para avançar com o fluxo de sua prática.

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A distinção de técnica e tecnologia se faz importante quando nos propomos a compreender as consequências da progressiva informatização das práticas humanas, pois esta compreensão depende da forma como concebemos a relação de co-constituição entre homens e coisas2.

Algumas correntes de pensamento estabelecem que, grosso modo, os homens fazem as coisas, e, então, as coisas fazem os homens. Isto é, haveria certo caráter cultura l objetivo nos produtos da atividade humana, e esta cultura, imbuída nos objetos, se faria disponível para ser consumida por seus usuários, impactando na formação de sua identidade social (Carriere, 2013; Ingold, 2000). Seria como pensar que um violinista adquire maneiras refinadas à medida que domina o seu instrumento porque o violino é um instrumento refinado, ou que um professor se torna sensível porque lê muito sobre o que seja a sensibilidade. Os objetos estariam atuando aí como fetiches: entidades reificadas e (supostamente) capazes de produzir cultura e imbui- las nas pessoas (Boesch, 2007).

Esse pensamento, todavia, encontra resistência em uma segunda concepção, que, grosso modo, estabelece que os homens fazem as coisas e as coisas são usadas pelos homens, que, em seus fazeres, produzem cultura e, consequentemente, produzem formas de ser humano (formas de ser na cultura). Nesta concepção, os objetos, não sendo dotados de agência própria, atuariam apenas como mediadores na ação (Sannino et al., 2009). Seria na interação (na experiência intersubjetiva entre pessoas) que, em última instânc ia, emergiriam as contingências que norteiam a produção dos significados (Ingold, 2000;

2 Uso o termo “coisa” neste trabalho com a acepção apresentada por Rosa (2007a). Uma coisa seria qualquer

conteúdo perceptível na qualidade de signo: objetos, eventos, qualidades, tipos, dentre outros. Adicionalmente, uma coisa também pode ter o significado de algo com o qual o sujeito não está familiarizado em de forma alguma, não sendo ela ev ocativa de nenhuma significação específica (mas com o qual pode vir a se familiariza r).

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Lyra, 2014; Sannino et al., 2009). Nesta perspectiva, o refinamento do violinista não viria de seu instrumento, mas da incorporação de práticas e saberes circulantes no meio dos violinistas, e a sensibilidade do professor viria do interesse pelas coisas humanas, e não do fato de saber sobre a sensibilidade – isto, claro, considerando os casos em que os violinistas se tornam refinados, que é apenas uma das infinitas possibilidades encontradas em seu contexto cultural. Neste caso, os objetos estariam atuando como ferramentas (Ingold, 2000; Tomasello & Hermann, 2010).

Há ainda uma terceira perspectiva, que estabelece que, com o advento do industrialismo, da automação e da massificação, o homem naturalizou-se à ideia de que não é necessário responsabilizar-se pela produção de cada aspecto de sua vida, sendo possível (e conveniente) consumir artefatos e conceitos produzidos por terceiros, fora de seu contexto cotidiano. Nesse contexto, os artefatos seriam entes ambíguos, dotados de

actância – a capacidade de algo realizar atos, não necessariamente intencionais, o que a

diferencia da agência, a partir da qual se produz ações necessariamente intencio na is (Latour, 1994; Segata, 2011). Desprovidos de intenciona lidade, não seriam capazes de produzir cultura, mas seriam capazes de condicionar3 as formas pelas quais as pessoas o

fazem. Logo, a existência de determinados saberes e práticas culturais passaria necessariamente pela agregação de determinados artefatos e suas funcionalidades. Neste sentido, não é possível se tornar um violinista refinado sem que antes se tenha acesso a um violino (como artefato e como objeto de um universo simbólico, representacional e

3 Ao longo do texto, ao fazer uso do termo “condicionamento” e suas variantes, estarei me referindo ao

efeito de atividades produtoras de hábitos (condições) que promovem ou inibem a ocorrência de determinadas ações diante de determinados estímulos. A menos que o contrário seja especificado, o termo não será usado com conotações epistemológicas comportamentalistas.

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discursivo) e a seus refinamentos, para que, por meio dele, se possa fazer um fazer “violinístico” refinado.

Por outro lado, não é realmente necessário que uma pessoa cultive ostensivame nte o interesse pelas coisas humanas, e muito menos que conheça sobre sensibilidade, para que se torne sensível, pois a sensibilidade tem menos a ver com o domínio de competências e habilidades conceituais e mais com a capacidade de fazer interpretações contextuais adequadas. Isto porque a sensibilidade é um tipo de saber mais relacional do que técnico. Ela está mais diretamente relacionada à conformação da agência (dos modos de ser e agir) que de sua operacionalização prática. Portanto, um técnico poderá atuar sensivelmente, imprimindo, por meio de suas ações, esta qualidade de sua agência em sua prática sem que deliberadamente queira torná-las sensíveis. Enquanto mediador relacional, a sensibilidade será instrumental em sua prática. Neste sentido, ela pode ser vista como uma ferramenta: uma ferramenta relacional, abstrata enquanto coisa, mas concreta enquanto prática cultural mobilizável.

Assim, o violino em sua materialidade e a sensibilidade em sua virtualidade nos permite vislumbrar as ferramentas sob duas perspectivas distintas e analiticame nte complementares: uma como elemento de mediação4 da ação e a outra como elemento

agregador de actância, contribuindo assim na conformação da agência. E enquanto chega a ser pleonástico afirmar que os modos de ser são instrumentais na produção de cultura, também não chega a ser surpreendente constatar que os artefatos têm um papel releva nte para este fim, especialmente quando eles precisam ser ativamente operados para

4 Para uma melhor compreensão sobre o ato de mediação, a seção 2.2, no segundo capítulo, pode ser

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desempenhar alguma função, pois isto implica que quaisquer realizações por meio deles alcançadas teriam partido da intencionalidade subjacente àqueles modos de ser.

Mais difíceis de desvendar, contudo, são as quimeras que passaram a abundar na vida humana a partir da modernidade tardia: objetos massificados, movidos a energias não mecânicas, autômatos; objetos que se comportam, e que, com o avanço da informática, passaram a ter características quase mágicas. Estes artefatos possuem tipos de actância raramente vistos até muito recentemente na história humana, extravasando o papel de auxiliar constitutivo da agência do sujeito, e ativamente o tornando alienado de efeitos outros que possam emergir com a adoção destes artefatos. De forma semelha nte, como quaisquer outros artefatos adotados pelas práticas humanas, estes também agem como elementos de mediação, mas as significações por eles mediadas acabam assimilando as alienações tangenciais a seu uso, que se tornam naturalizadas aos modos de ser do sujeito. Tais alienações não se reduzem à insensibilidade do sujeito a aspectos maquínicos que se agregam a seu modo de ser, mas à naturalização desta insensibilidade, fortemente vinculada a um universo simbólico no qual o consumo é um modo legít imo de adquirir significações sobre a realidade e sobre si, o que o torna tão ou mais importante quanto a autopoiesis na constituição da realidade e da identidade do sujeito, sujeitando a subjetividade a certo grau de padronização (que não se trata do princípio do controle redundante, mas de uma padronização maquínica, em que significados ficam perpetuamente abertos para serem completados nas interfaces das máquinas). Estes novos tipos de artefatos também deixam mais evidentes a multiplicidade dispersa de fontes, meios e mediadores de efeitos que origina a agência humana, formando uma ilustração

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deste processo que é bastante similar àquela proposta pela Teoria Ator-rede5 (Latour,

1994; Segata, 2011).

É necessário que tenhamos uma noção do papel das ferramentas na realização da ação humana e compreendamos a sua relação com a técnica e com a produção de significados, o que exploro a seguir.

Antes de qualquer coisa, é preciso ter em mente que ferramentas, em si, não realizam ações e nem produzem cultura. Ingold (2000) define como ferramenta “um objeto que estende a capacidade de um agente de operar em um dado meio. Repare, em primeiro lugar, que a existência de algo enquanto ferramenta requer a presença de um agente. Este agente, Ingold especifica, deve ser um animal6 ou humano, ter capacidade de

agir deliberadamente, com intencionalidade, pois é apenas no contexto de uma ação ou atividade, realizada por um sujeito, que algo se torna uma ferramenta (e deixa de ser uma coisa qualquer), incorporado num processo de mediação semiótica. Logo, a “alma” de uma ferramenta não está na coisa mesma, mas na dimensão humana de seu uso: o foco da própria noção de ferramenta está no humano, pois não se trata de um objeto qualquer, mas de um objeto cultural (Sannino et al., 2009). Ela é, portanto, um elemento catalizador

5 Bruno Latour teoriza sobre o ator-rede (Latour, 1994, 2005), concepção de sujeito que incorpora uma

reinterpretação mais abrangente sobre as relações homem-objeto e sobre seus desdobramentos sociais, buscando superar as oposições sujeito-objeto e objetivo-subjetivo clássicas da epistemologia ocidental naturalista. Nesta concepção de sujeito, não seria possível distinguir os determinantes de um efeito a partir das estruturas envolvidas em sua causação, uma vez que todos os entes actantes e agentes envolvidos teria m contribuído com alguma propriedade em particular, mas cuja manifestação dependeu do exato contexto de sua manifestação.

6 Ingold (2000) discute a existência de certa culturalidade nos animais, demonstrando que seus

comportamentos não são fruto apenas de sua programação gênica, mas da aprendizagem que têm ao longo de seu desenvolvimento individual, e que guardam características preservadas e transmitidas socialmente. Não se trata, contudo, da cultura como encontrada nos humanos, pois os animais não teriam a capacidade de significar uma distinção entre sua identidade individual e a identidade de seu meio, o que torna a sua experiência com ferramentas extremamente limitada e fundamentalmente difere nte da dos humanos.

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na produção de significados que é imanente à ação; ela se incorpora em um processo de mediação semiótica, tornando-se um substrato concretizador da técnica (Sannino et al., 2009).

Por outro lado, talvez seja mais preciso dizer que, ao incorporar-se em um processo de mediação semiótica, a ferramenta reitera-se como substrato concretizador da técnica, pois, como dimensão da cultura, a técnica também evolui histórica e ontogeneticamente, de modo que os significados são fruto da “reciclagem” de seus antecessores, previamente disponíveis na experiência do sujeito.

Portanto, na concepção histórico-culturalista (especialmente Teoria da Atividade Histórico-Cultural, ou CHAT), a ferramenta “estende a capacidade de um agente” de operar culturalmente em um dado meio, e, consequentemente, reconfigura a capacidade do agente de modificá- lo (Sannino et al., 2009). Isto nos remete a uma máxima desta abordagem que diz que é preciso transformar um objeto para que se possa compreendê -lo (C-lot, 2009). Neste processo de transformação, o sujeito não se limita a produzir uma nova concepção do objeto de sua ação. Todos os elementos envolvidos acabam ganhando nova significação: objeto, sujeito, ferramentas e a própria ação; são todos re-mediados e re-compreendidos como elementos familiares entre si, simbolicamente agregados como integrantes de um mesmo contexto (Sannino et al., 2009). A Re-mediação, acima mencionada, é um conceito da CHAT em que se considera o ato de mediação dentro de um processo em que a coisa mediada está em função de uma cadeia de mediações. Deste modo, ao modificar o mundo, o homem constrói a si mesmo, sendo a ferramenta um elemento de interface simbólico-prática entre ambos, e conferindo certa continuidade entre um e outro. A técnica, como instância da cultura, atuaria como o espírito, a processualidade estruturante desta simbiose.

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Para melhor situar o lugar da técnica na cognição nesta pesquisa, aponto, na sequência, diferenças e semelhanças teóricas entre a abordagem histórico-cultural e a

Ecologia Cognitiva de Lévy, a qual também será mais bem detalhada ao longo dos

próximos parágrafos.

A interdependência ontogenética entre subjetividade e técnica (incluídas aí as ferramentas) nos permite conceber uma abordagem ecológica da cognição, como proposta por Pierre Lévy (1997). No que diz respeito ao papel das coisas inanimadas na ação e na reflexão humana, a proposta de Lévy é epistemologicamente próxima à de Latour (1994), de quem assimilou algumas reflexões fundamentais, dando-lhe desenvolvimento próprio. Assim, tomarei esse autor como porta-bandeira desta epistemologia, a fim de simplificar o esforço compreensivo de compatibilização com a Psicologia Cultural. Há diferenças significativas nas propostas das duas epistemologias : uma enfatiza o aspecto mediacional dos objetos, e a outra enfatiza a sua actância. Todavia, estas compreensões não devem ser tomadas como mutuamente excludentes. Na operação de um mouse, por exemplo, é possível observar em ação aspectos enfatizados em ambas: por um lado, aquele objeto é tomado como elemento constitutivo em processos de significação, participando da produção dos efeitos decorrentes de seu uso. Neste processo, as propriedades instrumentalizadas na ação não estariam no mouse, mas na capacidade do agente que o opera em instrumentalizá- las. Por outro lado, ao ser considerado um actante, o objeto tomaria parte na realização de ações a partir de sua própria condição objetal. Neste sentido, o movimento do mouse promovido pelo agente moveria o cursor na tela, mas seriam as propriedades programadas no mouse que mediariam os tipos de movimentos de cursor efetivamente factíveis: este objeto virtua l não se moverá tridimensionalmente a partir de comandos do mouse mesmo que o agente

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tentasse fazê-lo. O mais provável, contudo, é que o agente sequer lembre que manipula um mouse ao usar um computador, movendo sua mão de acordo com os padrões aos quais já se habituara, percebendo o seu movimento afetar, como se diretamente, o cursor. Como objeto, o mouse permaneceria subjacente a essas operações, fundindo-se ao esquema geral de operação da interface em que o cursor habita.

Logo, haveria pontos de conciliação relevantes a serem considerados entre aquelas perspectivas, com as análises de cada uma salientando aspectos da experiência com artefatos que não são enfatizados pela outra. Particularmente no caso da Psicologia Cultural, isso leva a uma insensibilidade quanto aos aspectos da técnica que são alienados na experiência do sujeito, mas que, todavia, continuam sendo condicionantes desta.

Ainda que não se identifique como teórico histórico-culturalista, Lévy advoga, de forma consonante com aquela abordagem, que as faculdades intelectuais do humano não seriam nativas de sua natureza fisiológica; elas se dariam como decorrência da adoção de recursos cognitivos exteriores, sendo, portanto, efeitos ecológicos. Lévy fala de

tecnologias da inteligência como nativas de ecologias cognitivas: enquanto aquelas

dizem respeito aos modos de ser e fazer do sujeito, bem aos moldes do que Ingold (2000) define como técnica, uma ecologia cognitiva corresponderia a um ambiente simbólico em que vivem imersos diferentes coletivos humanos. Lévy sintetiza a sua concepção ao enunciar:

os coletivos cosmopolitas compostos de indivíduos, instituições e técnicas não são somente meios ou ambientes para o pensamento, mas sim seus verdadeiros

sujeitos. Dado isto, a história das tecnologias intelectuais condiciona (sem no

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cognitiva, cujo programa esboçamos na terceira e última parte deste livro. (Lévy,

1997, p. 19)

A abordagem de Ingold (2000) tem como fim demonstrar que a técnica é uma dimensão nativa da experiência humana, de sua natureza cultural. Em sua obra, uma tensão fundamental é estabelecida entre os saberes e fazeres tradicionais, que representariam a técnica em seu estado orgânico, e os saberes e fazeres da modernidade, que representariam a técnica em uma condição fragmentada, re-compreendida (e descaracterizada) pela noção de tecnologia, hostil à subjetividade do agir. Isto o leva a explorar mais detalhadamente os fazeres de povos ancestrais e aborígenes, ilustrações que favorecem a sua intenção de demonstrar que a experiência sociotécnica do indivíd uo ocidental contemporâneo não difere, em essência, da de um humano primitivo. Todavia, o foco nas práticas de povos primitivos não explora com tanta riqueza as variações na experiência técnica do próprio homem moderno. Lévy (1997), por outro lado, enfatiza a tensão existente dentro da própria modernidade entre modos de saber naturalistas e objetivistas e modos de saber (e ser) centrados na experiência dos sujeitos e nas redes orgânicas que elas compõem. Uma tensão análoga àquela apresentada por Ingold, mas que salienta as continuidades entre técnica e tecnologia, ao invés de salientar as suas dissonâncias. Lévy também situa entidades não humanas (como artefatos, instituições e programas) como habitantes das ecologias cognitivas e atores nas práticas sociotécnicas, o que, a princípio, faz parecer contraditória uma aproximação entre sua epistemologia e a histórico-culturalista.

Se nos detivermos sobre os conceitos de tecnologia da inteligência e ecologia

cognitiva, podemos observar que os dois convergem com a noção de técnica – tratada

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de Ingold (2000), permanecem pouco diferenciadas graças à centralidade de sua oposição entre técnica e tecnologia. A noção de tecnologia da inteligência incorpora a primeira destas esferas de relações: a relação funcional entre a conformação do saber (uma conformação relativa – saber-saber, saber-fazer, fazer-fazer) e a instrumentalidade do saber. Ao tomar elementos do contexto vivencial/sociotécnico como objeto de significação, destaca-se o caráter objetivo dos conhecimentos e dos modos de ser disponíveis na cultura como um aspecto que acaba sendo assimilado pelo sujeito. O alfabeto, por exemplo, é um recuso técnico que necessariamente possui algumas características padrão que o possibilita ser usado para determinados fins convenciona is. Em português, a letra “a” representará sempre um mesmo fonema, e o mesmo é válido para as outras 25 letras, o que possibilita que sejam combinadas sequencialmente para formar palavras escritas que representam sons. Outra característica do alfabeto é a organização ordinal de suas letras: o “a” é sempre a primeira letra, o “b” a segunda, e assim por diante, até o “z”, que é sempre a última. Isto faz com que as letras do alfabeto possam ser usadas como marcadores ordinais. Portanto, por mais variadas que sejam as idiossincrasias do alfabeto como aprendido por um sujeito (a caligrafia das letras, as particularidades vocais da pronúncia, o reconhecimento e a criação de novos tipos de propriedades, etc.), elas não anularão as suas propriedades socialmente básicas: os contornos característicos de cada letra, a sua ordinalidade e a sua capacidade de representar fonemas continuarão sendo perpetuadas. E não importa quais novas significações o sujeito realize sobre o alfabeto e suas letras, suas propriedades e suas funcionalidades canônicas irão permanecer válidas, pelo menos enquanto forem canônicas. As formas do saber condicionaram os modos de usá-lo.

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O princípio expresso acima seria válido para qualquer tipo de recurso cultura l, conferindo- lhes a capacidade de ser generalizados7, sistematizados e transmitidos como

tecnologia, com algum grau de estabilidade semiótica. De acordo com Valsiner (2012), a estabilidade dos signos e arranjos semióticos é relativa e fluida, mas esta estabilidade já é suficiente para proporcionar o caráter ecológico dos intercâmbios entre cultura e cognição. A própria atividade do sujeito, a realização de ações e significações, reproduz esta estabilidade, o que, de certa forma, conforma a própria Inteligência (enquanto processo de re-mediação) como uma tecnologia. Isto nos remete à segunda relação enunciada, que diz respeito ao conceito de ecologia cognitiva, e que destaca a tensão perene entre as facetas subjetiva e objetiva dos signos.

A subjetividade é o real habitat do conhecimento humano, onde ele tem existênc ia viva. Mas a objetividade possibilita o interfaceamento, e as interfaces são funções fundamentais para a ocorrência de relações ecológicas, que contam com certo grau de circunscrição e estabilidade. Logo, vale salientar que a estabilidade, aqui, não deve ser confundida com rigidez. Ao contrário do que afirma Damásio (1999, citado por Hasalager & Gonzalez, 2003), a vida, para conservar-se, não precisa de fronteiras, mas de interfaces. Pensar em fronteiras é pensar em uma cisão entre interior e exterior. Pensar em interfaces é conceber uma inter-relação funcional entre sistemas distintos. Enquanto uma enfatiza a divisão, a outra salienta a integração. É na compreensão dessas relações que se faz fundamental uma concepção ecológica: em um ecossistema, é por meio das interfaces que se gerenciam as inter-relações entre os sistemas envolvidos. As distinções entre dentro e fora, eu e outro, não são absolutas, mas relativas, sendo mais apropriadamente

7 O sentido de generalização a que me refiro aí se refere à captura de uma significação, ação ou seus

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caracterizadas como tensões8 do que como fronteiras. Não sendo estáticos, ecossistemas

conservam a sua identidade por meio do balanço (e não do equilíbrio) entre seus elementos e dinâmicas. O organismo vivo, portanto, sendo ele mesmo um ecossistema, não se preserva por defletir interações, mas por geri-las.

Para Lévy (1997), a objetividade das ideias e coisas no mundo é a qualidade que possibilita o estabelecimento de vínculos entre instâncias subjetivas e objetos, e, assim, seu interfaceamento, levando à conformação de relações ecológicas em redes (Latour, 1994; Lévy, 1997). As relações no âmbito dessas redes são dinâmicas e fractais (Lévy, 1997): as mudanças no sistema incorporam suas recorrências, o que leva a uma reorganização, em vez de uma descaracterização, das estruturas ecológicas. Neste sentido, a objetividade favorece intercâmbios e interações, possibilitando a geração de interfaces efetivas entre sujeitos, objetos e dinâmicas culturais. A agência se torna, então, uma função da rede como um todo, e não apenas da subjetividade como elemento isolado (Sannino et al., 2009).

Pelo filtro da abordagem histórico-cultural, podemos considerar que uma ecologia cognitiva se caracteriza, no fim das contas, pela intersubjetivação: interfaceame ntos regulares (mas fluidos) entre modos de ser e fazer e subjetivos, mediados e re-mediados por instrumentos culturais que favorecem as abduções que integram o objetivo e o subjetivo.

8 Enquanto fronteiras são bem delimitadas e perenes, tensões se constituem de um jogo contínuo de forças

diversas sobre um mesmo substrato, o qual varia em forma e configuração, na medida em que as forças que ele suporta oscilam.

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1.2. A história por trás das tecnologias da inteligência

No decorrer da história, as inovações técnicas não substituíram seus antecessores, sendo mais apropriado dizer que estes foram assimilados e reconfigurados, a exemplo da história das técnicas de comunicação. Nesta seção, trato da técnica e da cognição situada, numa breve exploração histórica clássica de como determinadas inovações técnicas levaram a inovações “cognitivas” (subjetivas, nos paradigmas, nas lógicas, nas representações de mundo e homem).

Lévy (1997) explora a relação entre técnica e cognição a partir da seguinte questão: “como e por que diferentes tecnologias intelectuais geram estilos de pensamentos distintos?” Esse autor passa pela construção e gestão da memória e pela produção da temporalidade como dimensões da experiência mediadas por tecnologias da inteligência. Sua análise se inicia pelas sociedades anteriores à escrita, em que a oralidade é um aspecto técnico primário. Nelas, destaca-se o papel da fala e da escuta como vias de transmissão do conhecimento, com a sabedoria sendo passada dos velhos aos jovens. A inteligência é ligada à memória, e as representações auditivas seriam as mais importantes, com os rituais sociais passando pelas narrativas e pela musicalidade. A palavra teria como função não apenas a comunicação, mas a gestão da memória social como um todo.

A estratégia de construção de uma representação tem papel fundamental para evocá-lo na memória. A elaboração de narrativas é uma estratégia de compreensão e memorização que favorece a guarda de uma memória. As informações são mais bem retidas quando associadas a esquemas familiares, e são mais fáceis de lembrar quanto mais estivermos afetivamente envolvidos com ela. Os esquemas simbólicos anteriores subsumem/corrompem a informação nova a seus tipos. Na oralidade primária, prevalece a eficiência mnemônica de representações interconectadas entre si, expressando relações

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de causa e efeito, referentes a domínios do conhecimento concretos e familiares, e que se relacionem ao contexto concreto da vida e da identidade do sujeito. “Não há, portanto, como opor um pensamento mágico e selvagem a um pensamento objetivo e racional. A ecologia cognitiva da oralidade primária se baseia na memória de longo prazo e em recursos narrativos e dramáticos e mitológicos. São as melhores estratégias de codificação de que dispõem. As temporalidades são cíclicas, com a reiteração das memórias, e, na ausência de pontos fixos, a cronologia é marcada pelo devir.

A escrita emerge como técnica em momentos históricos de sociedades que passaram a cultivar os próprios recursos básicos, o que demandou que se fixassem na terra e no tempo. É desta época que as transições e recorrências vão perdendo lugar para a permanência: surgem o Estado, os muros, a métrica. A escrita é só mais uma dentre as várias técnicas desenvolvidas para superar o caráter efêmero da realidade, constituindo um meio para a criação e gestão de simbologias duráveis, produzindo irreversibilidade no tempo. Como tecnologia de comunicação, a escrita isola a mensagem de um contexto vivo, conversacional, substituindo a função empática do orador pelo exercício de interpretação do leitor. A perda do contexto de interlocução abriu espaço para o desenvolvimento de gêneros facilitadores da interpretação, universalistas, objetivis tas, enviesados. Deles surgem as teorias, os mitemas, os discursos com pretensões univers a is, que sempre têm bases textuais. O conhecimento ganha conformação modular, inibindo seu arranjo em narrativas, ou reconfigurando-as em arranjos mais prosaicos e menos míticos. A escrita fez da palavra um instrumento de colonização. Seu poder de padronização aumentou com o advento da impressão.

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No que concerne à razão, os oralistas9 praticam outra forma de pensar: são

propensos a significarem as relações entre coisas em termos de situações, e não de categorias. Categorias pertencem a uma racionalidade inventarial fundamentada no uso de símbolos e esquemas escritos. A própria filosofia teria surgido de uma ressignificação da oralidade primária por uma lógica conceitual prosaica. Também a história, como gênero literário e de raciocínio, é um efeito da escrita. Criada de forma linear e segmentada, ela retrata o devir em termos de ser. A escrita, ainda que não tenha determinado, condicionou tais formas de pensamento, sendo a prosa não só uma forma de expressão, mas uma identidade constitutiva. As interfaces da escrita impressa aprofundaram o distanciamento da discursividade concreta, habilitando formas abstratas e esquemáticas de representação, hoje já naturalizadas. A padronização da informação (manuais, dicionários, inventários) viabilizaram o surgimento da crítica, que se debruça sobre um passado terminado. A independência espaço-temporal e a preservação dos saberes acentuou a cumulatividade do conhecimento e com ela o sentido do progresso. As descobertas recentes ganharam relevância em relação aos saberes do passado, iluminando o futuro como temporalidade virtualmente promissora. As seguidas re-mediações destas técnicas e contextos levaram ao desenvolvimento da ciência moderna, com sua sistemática de intercâmbio de inovações via papers impressos. A padronização e fidedignidade trazidas pela prensa padronizaram a objetividade, viabilizando o surgimento de um novo estilo cognitivo.

Já a informatização trouxe a digitalização dos conhecimentos e das representações. Sob a roupagem digital, qualquer matéria se torna infinitamente maleáve l

9 O termo oralista vem em substituição à designação “analfabeto”, que toma como referência as culturas

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e reproduzível. O desenvolvimento da informática faz com que os especialismos e proselitismos técnicos caiam em desuso, acessibilizando a manipulação de informação empírica e programática com níveis de maleabilidade e acessibilidade próximos aos que possibilitaram a popularização da escrita. Sons podem ser sequenciados, sintetizados e gravados digitalmente, dispensando a execução instrumental. Imagens e vídeos se tornam plásticos e tão editáveis quanto textos, transformando o mundo das representações em um mundo de ideografias dinâmicas (Lévy, 1997). A própria programação se torna progressivamente simplificada, com linguagens e lógicas mais próximas das naturais e o desenvolvimento progressivo de interfaces entre interfaces, cada vez mais eficientes em integrar a cognição e sensorialidade do usuário em uma experiência computacional em rede. As novas conformações entre representações, hipertextualidade e inteligê nc ia artificial viabilizaram um tipo de bricolagem digital por meio da qual os atores sociais reconfiguram seus saberes, identidades e suas agências, re-mediando os ordenamentos de seus universos simbólicos e, consequentemente, suas formas de construir significações. O estoque, a circulação e a reapresentação da informação são abrangentes e automatizados, com diferentes codificações e apresentações. Representações em multimídias cada vez mais desenvolvidas, acessíveis e aprazíveis aludem à possível obsolescência próxima das mídias impressas e habilitam uma nova forma de saber, que não se reduz à memorização ou à interpretação, baseando-se na exploração interativa. Tal saber constitui verdadeiramente um conhecimento por simulação.

O uso das interfaces computacionais está mudando tanto as formas de interação quanto as de “seleção”. Interfaces cada vez mais abrangentes e sensíveis devem levar a uma sistemática funcional que integre e unifique as ações mútuas de usuários e sistemas, o que se torna cada vez mais viável com o desenvolvimento da computação ubíqua.

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Complementarmente, a gestão da informação também vem se tornando progressivame nte automatizada e personalizada, com programas que contam com buscadores sofisticados, ou que aprendem sobre nossos hábitos e preferências, codificando e filtrando as informações que nos fornecem de acordo com este aprendizado. O uso de redes e da potência de cálculo da informática se torna tão naturalizado quanto o da eletricidade e da água encanada. Estando cada vez mais interconectados entre si, estes vários sistemas se tornam, de forma consistente, componentes de nossas ecologias cognitivas. Assim, “aquilo que ontem fora interface torna-se órgão externo” (Leontiev, 2004, p. 101).

Todavia, uma tecnologia não substitui a outra. Com o advento da escrita, e mesmo da modernidade, a oralidade continua prevalecendo como principal via de transmissão de representações e modos de ser. Mesmo nos escritos, as modalidades orais foram, por muito tempo, prevalentes, e até hoje o que caracteriza um bom texto não é seu preciosismo linguístico, mas a sua fluência, característica da fala. O mesmo pode ser dito da informática, que surgiu e opera de acordo com os esquematismos da escrita e evolui em direção à usabilidade intuitiva e coloquial. Contudo, tanto a computação quanto a escrita modificaram a oralidade, pois deram suporte à reconfiguração das formas de representar, narrar e esquematizar, constituindo-se como tecnologias da inteligência. Os modos de ser imbrincados em redes e interfaces ainda não se consolidaram em configurações canônicas, e nem são claras as implicações do conhecimento por simulação nos processos de significação (Lévy, 1997).

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1.3. A operacionalidade da técnica como dispositivo metafórico de interfaceamento entre signos

Há muito as ciências cognitivas reconhecem haver uma relação de co-constituição entre os saberes e as estruturas epistêmicas dos sujeitos. Esta é uma relação que diz respeito à conformação de sua visão de mundo: ela diz respeito ao que é concebível como realidade possível, e também à forma (Gestalt) sob a qual estas concepções estão conformadas. Diz respeito ainda às facetas do que é possível em termos de conformação do saber (conceitos, representações) e das interações (discursos, ações) entre sujeitos e mundo(s). Diz respeito, por fim, à postura assumida por cada sujeito diante deste mundo. Se eu opto por investir em meu enriquecimento pessoal, não me sentindo responsável pela desgraça daqueles sem renda em um mundo em que uns têm sorte e outros têm azar; se eu tenho plena convicção de que o câncer de meu irmão foi curado pelo poder a mim concedido pelo Divino Espírito Santo; se eu defendo ardentemente a garantia de direitos humanos mesmo para os autores dos atos mais monstruosos; se eu me jogo de uma ponte com a perna amarrada a um elástico esperando me sentir bem por isso; se reajo impulsivamente a um assalto tão logo veja uma arma; ou se me sinto mal ao conceber a possibilidade de me esgueirar por espaços estreitos ou escuros... isto se deve à minha concepção do que seja o mundo real, determinante no delineamento de minha própria identidade.

As lentes de uma visão de mundo são intuitivas e configuram o caráter concreto dos objetos ao incorporá-los na totalidade gestáltica da realidade como concebida pelo sujeito (Valsiner, 2007). Esta relação de interconstituição sujeito-objeto tem sido abordada por diversas teorias nas ciências psicológicas, sob diferentes vieses. A teoria piagetiana, por exemplo, considera que a intencionalidade centra-se no caráter positivo

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(ou assertivo) dos objetos e informações, sendo a substância de sua objetividade modelada em um processo de equilibração das estruturas cognitivas. A Psicologia Cultural Semiótica considera que a intencionalidade humana é compartilhada, de modo que as significações sobre o objeto e seu caráter como coisa real são construídas no âmbito de um contexto interacional (entre sujeitos), por meio da re-mediação de signos, símbolos e dinâmicas semióticas culturalmente disponibilizadas (Rosa, 2007a; Sannino et al., 2009; Tomasello & Hermann, 2010; Valsiner, 2012). Stephen Pepper (1970) propôs que as qualidades percebidas nas coisas são generalizadas pelo filtro compreensivo de metáforas-raiz, as quais condicionam nossas interpretações da realidade de acordo com determinados delineamentos interpretativos, historicamente próprios de visões de mundo específicas (mecanicista, organicista, contextualista, etc. – Sarbin, 1986). A Construal

Level Theory (Teoria dos níveis de construção/significação) estabelece que quanto mais

espacial, temporal ou socialmente próximo o fenômeno ou objeto percebido, mais concretos e minuciosos são os termos e representações usados para se referir a ele, e quanto mais distantes, mais abstratos e vagos (Milfont, 2010; Milfont, Abrahamse, & McCarthy, 2011).

Ao mencionar concepções tão diversas, não proponho que se negligencie as diferenças epistemológicas entre elas. Ao contrário, elas devem ser contrastadas para salientar que, mesmo no âmbito de teorizações tão fundamentalmente distintas, certa faceta empírica do fenômeno perceptivo conservada em todas: a realidade diante da qual o ser humano reage e com a qual interage é uma realidade que existe concretamente em sua percepção, sendo sua concretude estável, mas dinâmica, e, sobretudo, generalizá ve l. Já no que diz respeito à sistemática sob a qual esta generalização acontece, há distinções bem demarcadas entre estas teorias. A seguir, exploro algumas destas distinções a fim de

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