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Capítulo V. Honra e Vergonha na Comunidade Cigana e na Sociedade Portuguesa Oitocentista

5.5. A honra e vergonha na sociedade oitocentista lisboeta

Os estudos desenvolvidos por Cecília Barreira acerca da sociedade oitocentista portuguesa, reunidos no livro História das Nossas Avós – Retratos da Burguesia em

Lisboa (1994), fornecem um conjunto de indicadores interessantes acerca de um período

de tempo que medeia os anos de 1890 e 1930. Cecília Barreira elege como objecto do seu estudo as grandes questões que atravessam o quotidiano da mulher burguesa, as suas vivências e realidades.

A problemática e os contextos estudados não são uniformes: a realidade é complexa, multifacetada, dinâmica e plural. Se algo existia de comum, era o facto de a mulher que se divorciava, a adúltera, a prostituta e a artista de cabaret ou revistas, serem socialmente condenadas por não se regerem pelas normas comuns (Barreira, 1994, p.15). A emancipação da mulher era igualmente um caso para condenação.

A educação feminina acontecia no interior do espaço doméstico. A menina aprendia a dirigir, a cozinhar e a limpar uma casa com esmero. As primícias do ensino público feminino em Portugal surgem com o decreto de 3 de Agosto de 1870 da autoria do ministério de Saldanha. O referido diploma aspirava formar a mulher para a “ sua principal missão de verdadeira mãe de família bem como fornecer-lhe os primeiros lineamentos do ensino profissional, remate da educação20 (Barreira, 1994, p. 39).

Os jornais e revistas da época muito contribuíam para a construção da

verdadeira mãe de família como é o caso do Almanaque Ilustrado do Jornal O Século

(1898, p. 7) que, passados mais de vinte anos da publicação do supracitado decreto, persistia na divulgação dos necessários ensinamentos para a formação da mulher na sua principal missão de verdadeira mãe de família.

20 Legislação Portuguesa, I série, nº 170, 3 de Agosto de 1870.

Uma mulher deve aprender21; a coser; a cozinhar; a ser amável; a se obediente; a ler livros úteis; a levantar-se cedo; a fugir de ociosidades; a guardar um segredo; a evitar a bisbilhotice; a ser graciosa e alegre; a dominar o seu génio; a ser muito indulgente; a ser a alegria da casa; a cuidar bem dos filhos; a conversar pela meiguice; a não falar antes de tempo; a ser a poesia e a flor do lar; a não ser demasiado ciumenta; a não andar sempre pelas lojas; a tratar de tornar-se agradável; a ter uma grande bondade de coração; a ser o apoio e a força do marido; a desposar um homem pelo seu mérito; a ser corajosa em todas as circunstâncias; a saber que o fim da existência é o aperfeiçoamento.

O casamento obedecia a um ritual em que, muitas vezes, a jovem era a última a saber das intenções dos pais. O pedido oficial de casamento processava-se com a deslocação do noivo a casa dos futuros sogros em companhia do pai, ou de pessoa idosa das suas relações, para formalizar o “pedido de mão”. Seguidamente, entregava o tradicional anel à noiva. Um jantar fechava a noite. Tratavam-se então pormenores sobre o dote; os dias em que os nubentes se poderiam encontrar. Eram interditas manifestações de afectividade, para além da troca de olhares e de um breve e recatado tocar de mãos (Barreira, 1994, p. 79).

A jovem deveria manter-se casta. Os estudos sobre a virgindade ensinavam os homens a acautelarem-se acerca de uma ausência de “pureza” das mulheres. Da grossura do colo, ao olhar e ao rosto em geral. Os olhos da virgem eram “belos e erguidos”, contrariamente a “tristes e baixos” quando o não fosse. A própria voz sofreria alterações. As virgens tinham-na clara e timbrada. Os peitos eram volumosos na mulher que “pecava22” (Barreira, 1994, p. 80).

Alguns livros recomendavam aos maridos que o acto da desfloração fosse menos doloroso; que dormissem em quartos separados para que certos odores e situações embaraçosas lhe fossem poupados (Barreira, 1994, p. 83).

21 Formatação nossa.

Relações Interétnicas, Dinâmicas Sociais e Estratégias Identitárias de uma Família Cigana Portuguesa - 1827 – 1957 Capítulo V. Honra e Vergonha na Comunidade Cigana e na Sociedade Portuguesa Oitocentista

Cecília Barreira refere que a mulher casada detinha uma situação totalmente subalterna. O Código Civil de 1867, citado pela autora, nomeadamente no seu artigo 1185, refere que a mulher deve obediência ao marido; no artigo 1187 vais mais longe a ponto de a proibir de qualquer escrito sem a autorização marital; o artigo 1189 refere que “a administração de todos os bens do casal pertence ao marido, e só pertence à mulher na falta ou impedimento deste”. O marido possuía o direito de abrir a correspondência da esposa. O divórcio não era reconhecido. Apenas a separação judicial de pessoas e bens. O tribunal poderia decretar a separação no caso de o marido alegar adultério da esposa. Pelo código penal, o marido que matasse a esposa adúltera e o seu cúmplice era apenas condenado a seis meses de desterro da comarca (1994).

Muitos desafios e duelos efectuavam-se, nesta época, aparecendo quase sempre uma mulher pelo meio. Importa mencionar que estas lutas não eram ocasionadas pelo amor a uma mulher, mas, em muitos casos, para salvar uma honra considerada manchada e insultada. O que se encontrava em jogo, mais do que o amor, mais do que a vida, era a estima por si mesmo, a reputação, a honra, como refere José Machado Pais ([1986] 1987).

Os duelos entre homens para salvar a honra manchada eram, efectivamente, usuais. Mas muitos destes homens, que se batiam em duelos pela defesa da sua honra, efectuavam frequentemente, outras lutas: eram lutas pela conquista e sedução de uma mulher fosse ela ou ele casado, ou não. Efectivamente, a opinião pública era tolerante com a falta de fidelidade do marido para com a mulher:

- Tu, ao menos, és altiva, lutas; eu não soube nunca o que era lutar. Foi logo ao princípio… Enganou-me com todas as mulheres, com as minhas criadas, na minha própria casa.

- E tu?

- Eu calei-me, eu sofri, eu disse-lhe - Se queres, bate-me, mas não me enganes. (Raul Brandão, 1983, 23 citado por José Machado Pais, 1987, p. 139)

23 Raul Brandão, Memórias, vol. III, Lisboa, Perspectivas e Realidades, 1983, p. 134

José Machado Pais afirma que a imagem da mulher ideal é produto de várias imagens porventura contraditórias que acerca dela a imprensa construía. Por um lado, impunha-se que a mulher vivesse confinada ao lar, submetida a obrigações morais, submissa ao pai e ao marido. Por outro, exigia-se, simultaneamente, que a mulher fosse bela, que realçasse essa beleza com adornos adequados, que seja fascinante, misteriosa e até perversa:

“ A mulher ideal é aquela que sabe fazer-se amar pelas suas qualidades, pelo seu bom coração e pela sua inteligência. Deve esta mulher ter, a par de tudo isto, um físico invejável, um corpo escultural, uns pés pequeninos (sempre muito bem calçados), as mãos muito cuidadas, com as unhas muito rosas24.” ([1986] 1987, p. 103)

Os preconceitos, as superstições, as crenças, a igreja e os presumidos conhecimentos da medicina, elogiavam a virgindade, a honra e a pureza femininas na sociedade portuguesa oitocentista.