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Transcrição do registo oral para o registo escrito: tradução é traição

Capítulo III. Metodologias e Contextos de Investigação

3.2. Formulações em torno da História de vida

3.2.5. Transcrição do registo oral para o registo escrito: tradução é traição

O acto de entrevistar desenvolveu-se num contexto inter-relacional de grande complexidade, implicou capacidade/competências, preparo teórico-metodológico e posturas éticas específicas. O carácter dialógico em que foi construída a história oral exigiu-nos disponibilidade para lidar com a intimidade/diversidade. A capacidade para

Relações Interétnicas, Dinâmicas Sociais e Estratégias Identitárias de uma Família Cigana Portuguesa - 1827 – 1957 Capítulo III. Metodologias e Contextos de Investigação

ouvir, o interesse e o respeito pelos pontos de vista daqueles que aceitaram contar a sua história, partilhar a sua experiência, com alguém que lhes é muito íntimo (são nossos primos e tios) do seu meio social, familiar e comunitário. Esta postura relacional não suprimiu as diferenças, mas, tal como a técnica do sfumato, permitiu criar proximidade e familiaridade entre inteligibilidades diferentes (Santos, p. 335) à medida que os universos se interpelaram, diminuíram as inquietações de ambas as partes. A nossa postura foi importante para a ruptura/estreitamento/neutralização de barreiras e optimização da relação social. O tipo de relacionamento existente e o que se desenvolveu durante as entrevistas foi determinante para os resultados obtidos, isto é, o tipo de relação social existente/construída entre os intervenientes contribuiu para qualidade dos relatos obtidos.

O registo gravado da voz foi o documento básico e original dos relatos. A transcrição da entrevista oral para o registo escrito construiu uma relação dicotómica entre código oral e código escrito. A escrita tomou o lugar da fala. O destino do discurso foi confiado à littera, não à vox (Ricoeur, 1995, p. 78). A relação cara-a-cara tornou-se texto. A relação dialógica, segundo Ricoeur, foi destruída (idem). A entrevista gravada e a transcrição da mesma são meras fotos do contexto mais amplo em que a narrativa foi produzida.

As implicações que advêm da transcrição do registo oral para o registo escrito prendem-se com o facto de as investigações, em muitos casos, se basearem fundamentalmente nas versões escritas dos testemunhos orais, e esta tradução é traição, como referem Poirier & Raybaut:

“Da mesma forma que muitas vezes se diz que toda a tradução é traição, há quem afirme que toda a passagem do oral ao escrito implica necessariamente uma desnaturação, na medida em que a transcrição desloca radicalmente o enunciado, que foi

produzido em função da oralidade e de certa forma desqualificado quando foi separado

A transcrição dos testemunhos orais, mesmo “desqualificados”, revela-se necessária para as citações em textos científicos, para publicações dos testemunhos, entre outras razões. Os testemunhos orais gravados apresentam uma riqueza discursiva que a sua transcrição não consegue enunciar, como, por exemplo, os ruídos emocionais: o sorriso, o choro ou os suspiros que manifestam tristeza, saudade e/ou admiração pelos

entes queridos, ou o silêncio que o interdito impõe, uns ais, hum ou ahn de

negação/admiração/espanto, que exteriorizam, por vezes, indignação e revolta; assim como a repetição de palavras, as frases inacabadas, os períodos confusos, a omissão de termos, sobretudo uma certa forma de se exprimir, um característico arrastar de voz. A “esta produção oral de um discurso que se faz, na maior parte das vezes, diante de uma certa assistência, é o que se chamou a "oralitura". Esta "oralitura", a que estão ligadas, de uma certa maneira, as histórias de vida, constitui uma arte literária – à produção da qual está directamente associado o auditor. Existem trocas contínuas entre o narrador e os assistentes, que se transformam, por vezes, mais ou menos em co-autores” (Poirier, Clapier-Valladon, & Raybaut, 1995, ibidem).

As fronteiras existentes entre o registo oral e o escrito desaconselham qualquer pretensão de mapeamento extensivo, por razões que se prendem com a “cegueira do

gravador” – a impossibilidade de registo das interacções não verbais: a movimentação

do corpo, das mãos, as expressões faciais, o pestanear, os movimentos das sobrancelhas, a direcção ou dissimulação do olhar, entre outros.

O que pretendemos demonstrar é que nem a entrevista gravada, nem tão pouco a sua transcrição, são capazes de captar o contexto (Pedro, 1997) total em que ambos se constituíram. É neste quadro de diálogo, de relação dialéctica estabelecida entre narrador e narratário, que se produziram os nossos testemunhos orais. Os narradores, ao descreverem a (sua) experiência vivida com Manuel António Botas, Maria da Conceição Botas e António Maia, “escavam a sua própria cultura” (Santos, 2000) e constituem-se participantes activos, na medida em que narram as suas experiências de vida no interior da sua família, do seu grupo, da sua comunidade. Estamos, por isso, de acordo com Poirier & Raybaut quando referem que, nas culturas ditas “tradicionais, o

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“sujeito” individual – parceiro da entrevista – é o produto de muitas componentes comunitárias, razão pela qual a entrevista vai, portanto, localizar-se constantemente no quadro de dinâmica social: na medida em que o personagem suplantar a pessoa, a testemunha tem tendência para reproduzir não a realidade objectiva, mas a verdade subjectiva do grupo, aquela que é admitida através das redes comunitárias (as diferentes estruturas de acolhimento constituídas pela família, a linhagem, a aldeia, a classe etária, o clã, a seita, etc.) – ele vai ser o intérprete de cada um destes grupos” (1995, p. 28).

As distorções, deformações, ocultações do real não são características que se possam encontrar somente na entrevista gravada e/ou na sua transcrição, ela é uma realidade presente, também, nos testemunhos orais produzidos, como o demonstram Poirier & Raybaut. Existe, pois, o perigo de se reproduzir um "projecto” de vida mais do que uma história “vivida" (Poirier, Clapier-Valladon, & Raybaut, 1995, 23).

Parece útil recordar o papel seleccionador que cabe a cada um dos nossos sistemas perceptivos; e, mais redundante ainda, parece lembrar que esses sentimentos são sempre dirigidos por concepções: pelo que o conhecimento é uma construção (Berger & Luckmann, 1999) e não uma simples recepção, o que significa que o ”real é pré-construído pela percepção” (Bourdieu, Chamboredon, & Passeron, 1999, p. 46).

Poder-se-á pensar, então, que uma transcrição “tecnicamente perfeita” dos nossos relatos, ou do relato propriamente dito, contém imagens sem interferências no que verdadeiramente ocorreu? Que os dados recolhidos se apresentam tal e qual como foram extraídos do corpo de quem os produziu? Que o relato provém de uma fonte activa; uma fonte que fala; que derramou sobre nós toda uma torrente de informações que procurávamos; que esta é uma realidade que se captou sem mediações?

De facto, os dados que obtivemos acerca de Manuel António Botas, Maria da Conceição Botas e António Maia não são a realidade: neste material simbólico, um

dado é sempre uma determinada estruturação da realidade; a transposição do real para o

sentido, o real é sempre um real construído.Por tudo isto, a crítica teórica que está subjacente à utilização dos dados recolhidos através dos relatos que realizámos não é, nem pode ser, uma crítica à sua objectividade, mas antes uma crítica ao seu processo de construção. E nesta construção contínua ele não tardará a suscitar, pelo seu próprio funcionamento, novos problemas (cf. Bruyne, Herman, & Schoutheete, 1991, p. 19).

Neste estudo, transformámo-nos em hermeneuta, porque a “hermenêutica começa quando o diálogo acaba”, como refere Ricoeur (1995, p. 81). Não nos interessou o texto enquanto objecto sagrado, portador de uma revelação e, por isso, buscámos, para além do texto, textos que trespassam o falar do narrador. Convertemo- nos num indagator, que segue uma pista, o indagador a quem interessa não somente o que se passa a nível do contexto explícito – que contém tudo o que se entende acerca do narrador –, mas igualmente o contexto implícito que está integrado num contexto mais global.

É um momento de desnaturalizarmos o estabelecido, já que uma das nossas principais incumbências, enquanto investigador, metamorfoseado em hermeneuta, é

guerrilhar com o estabelecido, o naturalizado e o universalizado. O sentido não está no

nosso texto nem nas palavras que o constituem, está para além dele, está em quem o lê. Um texto que se pretende que emane de uma relação experiencial, interpretativa, dialógica e polifónica.

A história de vida enquanto fonte, como demonstrámos, apresenta duas particularidades: a do momento do relato propriamente dito e a do processo de constituição do documento.