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Capítulo III. Metodologias e Contextos de Investigação

3.2. Formulações em torno da História de vida

3.2.2. Três etapas principais da história oral

A história oral, como processo descritivo e narrativo, é tão antiga como a história. Nas sociedades agrafas, os acontecimentos, conhecimentos e saberes perpetuavam-se através da transmissão oral. A autoridade, a força e a importância colectiva dos mais velhos advinham, entre outros aspectos, da sua capacidade de transmitir aos jovens toda a sabedoria, nova e eterna, de um tempo passado, e constantemente (re)lembrado através das suas narrativas. Todos os saberes comunitários estavam iluminados por estas histórias que percorriam as noites e os dias dos séculos passados, formatando, de forma indelével, as identidades comunitárias.

Na história de vida e na história oral, como em outras disciplinas sociais, registaram-se modificações que importa referenciar. Três etapas principais podem ser consideradas representativas das modalidades de história oral, e suportes das histórias de vida, como refere Delgado e Gutiérrez: a) a que vai desde o princípio do século até aos anos trinta, designada por antropologismo conservacionista; b) outra que emerge num período entre guerras até aos anos sessenta e que se ocupa de estudos da

marginalidade; c) a que assume um carácter refundador na década de setenta

desenvolvendo o estudo tanto da estrutura como da cultura das sociedades complexas (1995, pp. 263-267).

No primeiro caso, as histórias de vida são orientadas e impulsionadas pelas práticas antropológicas. Pretende-se fazer circular outros tipos de formas de vida, que

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Reis & Lopes consideram que o termo narrativa pode ser entendido em diversas acepções: narrativa enquanto enunciado, narrativa como conjunto de conteúdos representados por enunciado, narrativa como acto de relatar. in Dicionário de Narratologia, 2002, Coimbra, Almedina.

Etimologicamente a palavra narrativa deriva do Latim narrare, que significa contar uma história. Este termo, por sua vez, deriva da palavra gnaros, conhecer. (…) contar e conhecer que é, de facto, o fundamento da narrativa e é indispensável ao efeito narrativo do real, torna-se fácil entender a narrativa como um modo de conhecimento” (Pedro, 1997, p. 354).

estão progressivamente a desaparecer da vida quotidiana, em resultado do progresso que as sociedades industriais fazem emergir. Nas emergentes sociedades industriais, o que é novo é encantatório, o velho esquecido. Por isso, a tarefa desta etapa tem como base fundamentalmente o estudo de caso. As biografias de sujeitos de referência das sociedades pré-industriais, que coexistem com o desenvolvimento da industrialização e com estilos de vida que se constroem no âmbito comunitário, são objecto do

antropologismo conservacionista. As mudanças que emergem dos processos de

transformação da identidade entre o comunitário e o societário são não só estruturais, como, igualmente, biográficas.

As lendas, as histórias e o trabalho de campo são objecto da produção de documentos reelaborados e interpretados com vista a produção de uma história de vida. O exemplo fundacional é de Thomas e Znaniecki com a publicação de The Polish

Peasant in Europe and America. Esta obra de W.I.Thomas, realizada em co-autoria com

Florian Znaniecki, desenvolve-se em torno da investigação das práticas sociais quotidianas de um grande número de camponeses polacos emigrantes e uma autobiografia de um deles. O Camponês Polaco foi, sobretudo, um estudo macro- sociológico das instituições sociais, mas, no decorrer do processo de investigação, Thomas adoptou uma orientação microscópica e sócio-psicológica, como refere Ritzer (2003, p. 65). É para o processo e mutações culturais que se dirigem as investigações dos primeiros antropólogos. No caso destes dois investigadores, o trabalho realizado assume uma perspectiva mais interaccionista, como diz Delgado e Gutiérrez (1995, p. 264).

Ao documento, nesta etapa de desenvolvimento da investigação social, atribui-se uma importância primordial que leva à sua fetichização. Os testemunhos orais assumem uma nova visibilidade com a investigação desenvolvida, no início do século XX, no departamento de sociologia da Universidade de Chicago. “A Escola de Chicago foi pródiga em trabalhos de investigação empírica com uma orientação de ordem antropológica e etnográfica. Entre outros, os estudos realizados por Trasher (1927) sobre os “gangs”, de Anderson (1923) sobre os “trabalhadores ocasionais” (migrant

Relações Interétnicas, Dinâmicas Sociais e Estratégias Identitárias de uma Família Cigana Portuguesa - 1827 – 1957 Capítulo III. Metodologias e Contextos de Investigação

workers), de Reckless (1926) “sobre as prostitutas”, de Thomas e Znaniecki (1927) “sobre os emigrantes”, (Ferreira, Peixoto, Carvalho, Raposo, Graça, & Marques,

[1995] 1996, p. 439) foram paradigmáticos.

A segunda etapa e modalidade de história oral e das histórias de vida desenvolvem estudos acerca das populações marginalizadas. Para a marginalidade e os conflitos sociais são direccionados muitos estudos que se processam no âmbito das ciências sociais. Os processos de marginalização em que se vive fazem emergir, não só uma marca macro-sociológica, mas igualmente uma estrutura de biografias e por conseguinte de comportamentos das populações emigrantes, que interessa estudar.

Nesta etapa, uma obra emblemática importa referenciar: Los Hijos de Sanchez (1961). Com esta investigação, baseada em histórias de vida, Oscar Lewis destaca as dimensões conflituais existentes na vida quotidiana de uma família pobre. “Ao estudar os problemas das pessoas que vivem em barracas e bairros humildes, Oscar Lewis descobriu indícios de um conjunto característico de valores e práticas a que chamou

“cultura da pobreza”: odeiam a polícia, desconfiam do governo e “tendem a ser cínicos

perante a igreja” (Harris, 2001, p. 520). Esta obra manifesta, em muitos aspectos, o mesmo sentido conservacionista que a obra citada de Thomas e Znaniecki e demarca-se deste conservacionismo antropológico quando, ao recolher histórias cruzadas de membros de uma comunidade marginalizada, desenvolve formas de interacção social que podem ter repercussões práticas nas condições de vida dos próprios marginalizados. A informação inclusa nos respectivos relatos e histórias de vida contém pistas que agilizam possibilidades de trabalho com estas comunidades.

A terceira fase e modalidade de história de vida permite construir práticas em que já não se fazem somente estudos conservacionistas ou estudos acerca da marginalização: “pode dizer-se que aqui começa uma verdadeira reflexão metodológica e epistemológica que sai do campo da história oral para reformular muitos elementos centrais da teoria sociológica” (Delgado & Gutiérrez, 1995, p. 266).

Os estudos efectuados pela escola de Chicago, durante a década de 20 (Ritzer, 2003), convocam a nossa atenção para a heterogeneidade das fontes de informação e dos tipos de dados empregues em dissemelhantes trabalhos, que eram confrontados uns com os outros, no sentido de buscar maior evidência possível. Estes estudos demonstram, igualmente, que a investigação no campo das ciências sociais experimentou progressivas mudanças que se foram manifestando, como ficou demonstrado, entre outros aspectos, na selecção e definição de novos objectos de estudo e na emergência de novos marcos conceptuais que se alicerçam em novas perspectivas teórico-metodológicas, que são distintas na sua abordagem e na utilização de técnicas de investigação qualitativas e quantitativas. O reino da ciência metamorfoseou-se, destruiu muros disciplinares e convocou diferentes ramos da ciência para a acção comum: a sociologia, a história, a antropologia, a economia.

Na década de quarenta, após a segunda guerra mundial, os sociólogos da escola de Chicago, entre outros, passam a utilizar a entrevista, a observação participante e a biografia como meios privilegiados para análise dos processos de mutação determinados pela migrações e pela complexificação da sociedade. As investigações incidem sobre dados micro-sociais e desenvolvem-se em contextos interpretativos mais amplos, que possibilitam análises e teorização de relatos num processo circular.