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A idealização da personagem feminina e a cumplicidade com a Natureza

2. Espaço idílico

2.4 A idealização da personagem feminina e a cumplicidade com a Natureza

Se analisarmos, com atenção, a caracterização das personagens femininas centrais dos dois contos anteriores, assim como a da protagonista de «A Americana», do mesmo autor, notamos que elas possuem ainda alguns traços da mulher-anjo do romantismo: símbolo de pureza campestre e simplicidade, com traços de uma beleza angelical (geralmente, cabelos louros e olhos azuis), dotada de graça e alguma fragilidade. Assim são as protagonistas destes três contos, que, tal como o espaço, passam por um processo de idealização, sem, contudo, deixarem de apresentar traços locais, sobretudo Teresa, de «O feitor», através do vestuário: «vestia a mais alegre saia, o mais alegre casabeque, pusera na cabeça o lenço mais florido e o abeiro mais gracioso. Não havia ali nenhuma outra rapariga tão esbelta de corpo, tão brilhante de olhos, tão colorida de faces, e de cabelos que se lhe pudesse comparar» (Guerra, 1980: 70). Este carácter hiperbolizante da descrição marca, igualmente, a caracterização de Maria, de «O pote de água», cuja destreza e graciosidade ao manusear um elemento do quotidiano rural a destacam das outras raparigas: «Maria era do bando a mais esbelta, a mais airosa, a mais alegre, a que melhor sabia equilibrar sobre a pequenina copa do seu chapéu o pote cheio de água. […] Haveria outras que tivessem graça naquele simples encher de água, tanta não a teriam como ela…» (ibidem: 53). Este processo de idealização é ainda mais evidente na protagonista de «A Americana», que, ao chegar à ilha, vinda dos E.U.A., provoca um evidente impacto no meio, «sorrindo para todos, espalhando pelo cais a graça fresca dos seus dentes brancos, dos seus olhos azuis, do seu cabelo loiro, do seu vestuário simples e elegante» (ibidem: 25). Até mesmo o espaço, em especial os elementos da natureza, não fica indiferente perante tamanha formosura:

5 Muitos dos aspectos analisados podem ser detectados igualmente em Os Meus Amores, de Trindade Coelho, que fornece um dos modelos preferenciais do «conto rústico», sendo duas das suas características a simplicidade e a espontaneidade da acção, como refere João Bigotte Chorão, a respeito daquela obra: «As paixões, se as há e em grau violento, devem-se mais à cegueira do instinto do que à perversão da inteligência» (Chorão, 1994: 18).

E a saudar a gentil madrugadora [a protagonista] o grande astro do dia ordenara à sua orquestra que tocasse o hino festival da manhã. As avesitas não haviam visto ainda rosto tão lindo e tão fresco. Dir-se-ia que desabrochara ali flôr exótica, produto do enxerto da rosa silvestre, do lírio, dos botões de oiro que matizam a relva, de todas as flores que perfumam os campos e os embelezam! (ibidem: 27 e 28)

Há, pois, uma relação profunda entre a personagem e a natureza, sendo uma o prolongamento da outra. Esta ligação é patente em «Suave arrependimento», visto que as duas facetas da protagonista (por um lado, o gosto pelo prazer e a promiscuidade, e, por outro, a simplicidade e a pureza espiritual) representam a expansão da dualidade cidade/campo. Ao mudar-se do espaço citadino, lugar de degradação, para o mundo rural, sinónimo de protecção e vitalidade, a personagem, Madalena, um nome com evidente carga simbólica, transforma-se e perde a primeira dessas facetas.

Outra característica comum no «conto rústico» é a articulação entre a natureza e os sentimentos das personagens, ainda um traço do romantismo. Com efeito, além de pano de fundo para as histórias ou quadros, a natureza acompanha os estados de espírito das personagens. Desta forma, momentos de tristeza e desilusão correspondem a paisagens lúgubres, enquanto que instantes de alegria e felicidade surgem associados a imagens luminosas. Por exemplo, em «O feitor», de Rodrigo Guerra, a natureza e as estações do ano reflectem os acontecimentos e os sentimentos predominantes, estruturando o conto em duas partes: a primeira, cuja acção se desenrola nos meses de Verão, sobretudo em Julho, mostra um cenário idílico, radioso, com muita cor, luz e vitalidade, reflexo de um ambiente de festa e alegria, sobretudo no dia do aniversário do filho do morgado; a segunda parte, situada no Inverno (Novembro e Dezembro), apresenta uma natureza sombria, desoladora, triste, representativa dos acontecimentos trágicos da história (desilusão amorosa, gravidez fora do casamento, desonra e morte). Em vários contos, a própria natureza chega a despertar nas personagens sentimentos de alegria e felicidade, mostrando uma relação harmoniosa entre os dois, que podemos verificar em «Margarida – amor fiel», de Florêncio Terra: «E essa luz abundante deixava também o seu fulgor em olhos lindos e cheios de prazer, e rebrilhava no esmalte dos dentes que o riso das bôcas vermelhas desvendava. Era a alegria dos corações, dando mão à alegria da natureza» (Terra, 1942: 167). Todavia, também podemos encontrar contos em que se nota um contraste entre o espaço idílico e os

estados de alma. Em «Linda noite», de Nunes da Rosa, a beleza da noite6 contrasta com a angústia de envelhecer sentida por um casal de idosos, que, numa eira ao luar, conversam com o narrador sobre o sentido da vida e sobre os efeitos da passagem do tempo.

Um dos grandes temas destes contos é o amor. Num espaço idealizado, a natureza idílica, que apela aos sentidos e estimula sensações, é conducente ao amor, surgindo, muitas vezes, como confidente e coadjuvante na relação amorosa. Em «A Americana», de Rodrigo Guerra, o encantamento sensorial e espiritual, motivado pela contemplação da paisagem rural açoriana, desperta sentimentos amorosos: «Na disposição de alma em que estava, com a paisagem a sorrir-lhe primaveras, o aparecimento daquele rapaz foi como que parte obrigada do quadro que tinha ante os olhos! Ele era, por assim dizer, a manhã, cheia de sol e de perfumes, a despertar-lhe na alma sentimentos novos e desconhecidos» (Guerra, 1980: 28).

Este papel da natureza é evidente em «A última laranja», de Florêncio Terra, um conto que, através de uma linguagem simbólica e metafórica, aborda a iniciação sexual de dois jovens recém-casados. O pomar surge como cúmplice dos encontros amorosos, fornecendo o cenário ideal para a celebração dos sentidos e para o despertar da paixão: «As laranjeiras já os conheciam e adornavam-se de suas mais belas flores, derramavam os seus mais suaves perfumes para acabar de os embriagar e prender. […] E por entre os ramos verdes, primeiro constelados de pétalas brancas, de cândida pureza, e chumbando depois ao pêso dos frutos, apareciam, banhados de riso, de prazer e de alegria, os rostos dêle e dela» (Terra, 1942: 248). O branco das flores simboliza a pureza inicial, que se conserva até ao dia do casamento, enquanto que os frutos representam o amadurecimento da relação e, num discurso intertextual com o Antigo Testamento, o início da actividade sexual: «Ele contemplava hesitante o fruto admirável. Mas ela, de um salto, apanhou-o. […] Logo a [laranja] partiram, e foram comendo aos gomos a polpa fundente. […] E todo o fruto desapareceu. […] Então as suas bôcas, ainda não saciadas, ainda escorrendo sumo, procuram-se, uniram-se, prolongando a posse do fruto delicioso» (ibidem: 249 e 250). Em suma, nestes contos, a descoberta vibrante do amor tem, quase sempre, como cenário a natureza, fecunda, bucólica, pura, alegre e conivente com o despertar da paixão juvenil.

6

«Fazia uma lua cheia, muito branca e doce, duma pulverização subtil de farinha alva, enchendo dum imenso clarão religioso a enorme estagnação contemplativa das coisas. […] O céu, de tintas macias, coava uma luz derramante sobre o cume afiado dos cabeços azulados, e as estrelas dispersas, tocadas de sono, abriam a pálpebra duma estranha riqueza de oiro» (Rosa, 1978: 153).