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Vitorino Nemésio: a sagração da ilha distante

3. O paraíso perdido da infância e da adolescência

3.7 Vitorino Nemésio: a sagração da ilha distante

Não poderíamos terminar este capítulo sem referir um nome de destaque entre os escritores açorianos que abordaram, no conto, a temática da infância na ilha. Assim, Vitorino Nemésio, em Paço do Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre, oferece-nos inúmeros contos em que evoca a terra açoriana como o paraíso perdido da infância. Não é nosso propósito apresentar uma análise pormenorizada destes contos, feita já por Carla Silva Cook num estudo aprofundado sobre a representação da infância na obra de Vitorino Nemésio – O Menino Escreve: Infância e Adolescência no Universo Nemesiano (2006) –

mas sim lançar um breve olhar sobre aspectos centrais nesses textos e apontar as linhas gerais do tratamento desse tema.

É incontestável a importância da infância e da adolescência na vasta obra de Nemésio. Com efeito, o escritor centra grande parte da sua escrita na reconstituição de um percurso existencial centrado na sua relação com a terra natal e com esse passado. A memória é, pois, um elemento fulcral nessa reconstituição, permitindo-lhe recuperar peculiaridades de uma vivência que ele eleva ao plano universal. A este respeito, Machado Pires afirma que «a significação açoriana da obra de Vitorino Nemésio não está […] no seu localismo, mas no seu universalismo, no ser criador – poeta, poeta em prosa, contista, romancista ou ensaísta, ou ainda cronista sui generis do Corsário das Ilhas –, por imperativo interior e força das reminiscências de infância e adolescência […], por impulso de recriação verbal dum mundo cuja distância (temporal e espacial) se sublima no verso» (Pires, 1979: 6). Na verdade, o autor busca, nas suas lembranças da infância, grande parte da matéria que depois transforma em literatura, como factos, pessoas, hábitos, sentimentos, objectos e lugares26. Nemésio alimenta a imaginação criadora e enriquece os textos com o tesouro de imagens acumuladas nesse período, mostrando um verdadeiro álbum de lugares e de figuras, de rituais religiosos, sociais e de convivência, informações de carácter cultural e paisagístico, costumes e tradições vivas, que servem de pano de fundo ao quotidiano infantil. Aliás, muitos dos aspectos que analisámos nos textos anteriores, de outros autores, repetem-se nos seus contos de temática infantil, como o despertar do amor e da sexualidade, as primeiras dores, intrépidas aventuras, o elogio dos elementos naturais (paisagens e animais, por exemplo), a proximidade física e espiritual com a terra, as ligações afectivas e cúmplices com companheiros, a relação com a religião, enfim, a iniciação da vida e descoberta do mundo, que se recortam sobre o fundo da vivência colectiva, com recurso à linguagem regional.

Na visita a esse estranho e fascinante mundo de inocência, frescura e perplexidade, a noção de paraíso perdido ganha relevância ante a distância física e temporal da ilha da infância. Distante, perdida no tempo mas recuperada através da imaginação literária, a ilha-infância de Nemésio pode ser aproximada da «casa-ninho» de Bachelard, a casa do

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Machado Pires, no mesmo artigo, explica que uma das formas por que se manifesta a ligação entre o escritor e a ilha natal é, precisamente, a construção de «personagens que evocam figuras reais da sua infância ou adolescência, pela memória das coisas, dos factos, dos pequenos nadas triviais recortados do tempo distante na memória visual e auditiva» (Pires, 1979: 10).

passado, a primeira morada, associada a momentos primordiais de iniciação no mundo, mas também a casa sonhada a partir da distância temporal e espacial, o lugar aonde se deseja regressar, que se transforma, segundo o filósofo, numa grande imagem, a «grande imagem das intimidades perdidas» (Bachelard, 1988: 112). Efectivamente, a dimensão nostálgica da obra de Nemésio nasce de uma forte consciência de ilhéu, de um profundo apego à terra, da fidelidade à memória da ilha, gravada na mente e no coração, que ecoa para sempre como núcleo vital.

Em torno dessa grande imagem da ilha, condensam-se inúmeras imagens e núcleos temáticos em que a relação com o espaço é fundamental. Assim, nos contos de Paço do

Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre, sobretudo nos que abordam esta temática,

Nemésio retrata um tempo marcado pelo espaço insular, que determina grande parte das vivências típicas fundamentais. De acordo com Urbano Bettencourt, o universo narrativo desses textos é, sobretudo, um «mundo marcadamente insular (terceirense), marcado pela proximidade das relações pessoais, numa situação vivencial em que humano e divino se interpenetram e a aprendizagem da vida e da morte se realiza no âmago do isolamento atlântico e das exíguas dimensões de um espaço recôndito, que intensifica o sentido e o relevo mesmo dos pequenos acontecimentos» (Bettencourt, 2002: 20). Num espaço isolado e distante, as tradições, os costumes e a cultura popular tendem a resistir melhor ao poder transformador do tempo, desempenhando um papel activo no modus vivendi da comunidade. Ora, Nemésio reconhece essa importância, pelo que concede ao imaginário popular e à tradição oral um lugar de destaque na sua obra.

O reconto oral, uma das formas de manifestação do património popular, configura uma particular relação do homem com o espaço, uma determinada visão do mundo, cuja continuidade se procurava assegurar através do relato. Suportada pela experiência transmitida de boca em boca, esta tradição narrativa ancestral privilegia não só os conhecimentos mas também o papel vivo e influente do narrador, que deixa a sua marca no relato. Nemésio apercebeu-se da riqueza das narrativas orais e explorou-a, tornando-a ponto de partida para a criação literária. No prefácio a O Mistério do Paço do Milhafre, Mateus Queimado, uma persona literária criada por Nemésio, a quem é atribuída a autoria desse texto, enaltece efusivamente os contadores de histórias da sua infância, como

Aldino e João Grande27, em especial o fascínio por eles exercido, que a memória preservou. Permitindo a transmissão de saberes e experiências e o acesso a um mundo maravilhoso, as narrativas orais constituem um elemento de destaque na recuperação do passado infantil.

O primeiro conto da obra, «O Toiro Azul», constitui a adaptação de um conto tradicional e integra o património narrativo de João Grande. Apesar de adaptada, a história é, no mínimo, original, porquanto nela se cruzam elementos de outras histórias infantis, pormenores da cultura popular açoriana e referências a elementos modernos (por exemplo, aviões), obviamente muito posteriores à época em questão, através de uma linguagem irónica e com marcas regionais. Descrito, no texto introdutório, como uma história «de poesia arturiana que a sua [de João Grande] enchia de rápidos toques irónicos» (Bettencourt, 2002: 158), o conto representa, por um lado, uma forma extremamente criativa de aproveitar o património oral e de fixá-lo para a posteridade, e, por outro, um meio de reviver a infância como um tempo mágico e propenso às investidas da imaginação28.

A intersecção entre a oralidade e a escrita está, igualmente, patente no conto «Os Reis Magos», em que o narrador de segundo grau, a avó, uma velha contadora de histórias, tal como João Grande, usa a imaginação para construir um conto popular tradicional, mas, desta vez, a partir de um conhecido episódio bíblico, adaptando-o à realidade insular. Assim, através de uma linguagem simples e linear, adequada ao destinatário directo do conto – o neto, que, por ter comido as sopas, tem direito a uma recompensa –, a narradora descreve uma verdadeira romaria de figuras pitorescas que se encaminham para o presépio, entre as quais se destacam os três reis magos. O sentimento dominante nesse cortejo é uma alegria entusiástica, resultante da satisfação de carregar oferendas para o Menino Jesus. São variados os elementos relacionados com a realidade próxima introduzidos no relato, desde tipos terceirenses (pastores, lavrador, pescador, velhas e raparigas, tocadores da ilha), costumes regionais, músicas tradicionais açorianas

27 «Nem filósofo de polpa, nem romancista de tomo, nem trágico de coturno ou sábio da gema se podem comparar, na minha estimativa sentimental de leitor, – por exemplo: com João Grande, pescador de seu ofício e narrador de contos e de “causos” no barracão das redes. O Aldino e o João Grande foram os primeiros romancistas do meu conhecimento» (Nemésio, 2002: 151).

28 De acordo com Carla Silva Cook, João Grande «transporta Mateus Queimado em viagem de retorno à sua infância. Esta viagem […] representa afinal, tão-só, o impulso autoral genuíno de reaver a felicidade simples, de retornar à fonte do bem-estar primordial. É ao escrever […] que temos uma das raras oportunidades de reviver esse tempo que mitificamos como ideal» (Cook, 2006: 157-158).

(o Pezinho e a Chamarrita), elementos gastronómicos, ditos e expressões populares. Várias personagens bíblicas são comparadas a figuras locais, como nos mostra o seguinte excerto: «E assim estiveram os três reis dançando e fazendo matinada, sem maldade nem sacrilégio, que nem os foliões da Serra em dia de coroação» (Nemésio, 2002: 172). É visível a preocupação da narradora em comparar os elementos da história bíblica com figuras que integram o quotidiano imediato da criança, tornando, desta forma, a acção mais compreensível e interessante aos olhos dela. Como, na infância, o mundo está circunscrito a esse espaço próximo, fonte de imagens felizes, sinónimo de intimidade, protecção e familiaridade, Nemésio opta por reformular as narrativas orais, criando a sua própria versão da história e adaptando-a às características do ambiente popular açoriano. Tendo substituído o cenário original – Belém –, a ilha afirma-se como espaço vital, reflectindo uma componente íntima de fidelidade.

A par das modificações e da inserção de novos contos, uma das inovações de O

Mistério do Paço do Milhafre é o papel desempenhado pela figura de Mateus Queimado,

que, juntamente com John Derosa, constituem «narradores interpostos» (Garcia, 1987: 94) ou «intraficcionais» (Meneses, 1998: 409). Nemésio atribui-lhes a importante função de evocar e relatar experiências passadas, em determinados tempos e espaços. Autor do texto introdutório de O Mistério do Paço do Milhafre, onde tece considerações sobre a arte de contar, personagem e narrador de sete dos quinze contos da obra, Mateus Queimado não é uma criatura ficcional independente do autor empírico, porquanto não é difícil detectar algumas semelhanças entre as suas experiências relatadas e a vida do escritor. Em suma, diz-nos Paulo Meneses:

Mateus Queimado não se institui […] como um autor empírico substituto do escritor Vitorino Nemésio, ou seja, como um seu heterónimo, mas antes como um efectivo narrador intraficcional […], dependente, enquanto tal, das curtas, formulares e parentéticas declarações conta/escreve Mateus Queimado, produzidas por uma voz narrativa anónima, extra e heterodiegética relativamente ao nível em que se coloca e à relação que assume face à/com a diegese. É por ocupar este peculiar e relevante espaço na ficção e na crónica nemesiana que Mateus Queimado se eleva à condição de um

outro eu-mesmo a que recorre o escritor sempre que, nos seus textos, procura penetrar e

É como se Nemésio se investigasse enquanto outro, mas um outro com fortes ligações ao núcleo insular. Assim, Mateus Queimado encontra-se directamente ligado ao mundo arquetípico da ilha natal, às suas raízes da infância. Tendo escutado as histórias narradas pelos exímios contadores já referidos, afirma-se como depositário da sua arte de narrar, que tenta recriar ao transmitir as suas vivências. Se o pendor histórico está patente na novela «Os Malhados», foi, no entanto, a experiência pessoal do autor que forneceu a maior parte da matéria em que baseou os seus contos. Assim, Nemésio usa Mateus Queimado, responsável pelo processo de enunciação narrativa, para relatar o que a memória foi aprendendo em contacto com a realidade concreta e multifacetada do quotidiano açoriano.

Nos contos «O Passarinho Morto», «O Espelho da Morte», «Cabeça de Boga», «A Lição de Solfa», «O Navio Pirata» e «A Burra do Lexandrino», Mateus Queimado afirma- se como narrador ou mediador dos acontecimentos através da expressão «conta Mateus Queimado». O tempo retratado é o da infância, e o espaço é o microcosmo da ilha, esse paraíso distante onde vivem a inocência, a curiosidade, a imaginação, as promessas e os mitos, mas também os medos, as dúvidas e os primeiros embates com as grandes verdades da vida. Posto isto, podemos afirmar, recorrendo às palavras de Urbano Bettencourt, que estas narrativas constituem um macrotexto, «uma espécie de novela de aprendizagem, em que, num espaço estratificado em termos de “os da terra” e “a pescadeirada”, a formação e a descoberta de si e do outro integram o erudito e o popular, a escrita e a oralidade, e a música sempre» (Bettencourt, 2002: 26). Efectivamente, na revisitação a esse período, o narrador recupera lugares, pessoas, animais, coisas, rituais, aventuras que povoam o imaginário infantil e que se tornaram fulcrais no processo de crescimento. De notar que o carácter homogéneo deste conjunto de contos advém, sobretudo, da transição das personagens de um texto para o outro, da configuração de um mesmo ambiente, da presença de motivos recorrentes e do mesmo tratamento dado às situações narrativas.

Importantes no período da adolescência, os laços de amizade entre o narrador e os companheiros são centrais em «O Navio Pirata». Nestes anos que se perderam no tempo, as brincadeiras de rapaz, as vozes e os gestos dos colegas de escola, as aventuras impulsionadas pela força da imaginação oferecem significados primordiais que marcam rupturas e descobertas. Nessa narrativa de evasão às aulas com vista à tomada imaginária de um barco encalhado na costa, o grupo de amigos, agindo em cumplicidade e

partilhando um sentimento de rebeldia e coragem, embarca numa pequena aventura no reino da fantasia, na medida em que, com a ajuda da imaginação, transforma pedaços de navios naufragados na «cidade fatal da nossa pirataria» (Nemésio: 2002: 272). Desafiando a autoridade alfandegária, engendram um estratagema para conquistar a carcaça abandonada, um plano que, para desilusão do narrador, não é necessário pôr em acção devido à ausência do guarda. Após o ritual de implantação do seu almirantado, o tempo torna-se monótono, e o narrador, auto-repreendendo-se, confessa que «começava a entrar em nossos corações piratas o farpão do repouso e a nódoa da cobardia. Não tínhamos feito nada que se visse ou prestasse, naquelas duas horas de folga e de trégua dada à vida. Não merecíamos o feriado, o naufrágio, a sineta de bordo, nada!» (ibidem: 275). Só quando o pai de Venâncio vem procurar o filho, perseguindo-o para o castigar, a monotonia é quebrada. É então que a fuga desenfreada do rapaz desperta nos companheiros o prazer da desobediência, «o travo a coragem e a sangue da nossa pirataria» (ibidem: 276). Com efeito, o mito do heroísmo encontra-se, muitas vezes, associado a este período da vida, por se tratar de uma fase que oferece múltiplos desafios e que exige, por vezes, a superação de dificuldades num contexto hostil, mesmo que este exista apenas na imaginação do adolescente.

Em suma, neste conto, podemos destacar dois aspectos essenciais: por um lado, a genuína amizade que une o narrador e os companheiros, figuras que conotam especial significação no seu universo; por outro, a liberdade imaginativa e aventureira, que os leva ao reino da fantasia em voos largos e que lhes permite experienciar momentos mágicos e inesquecíveis, em grande parte estimulados pela pequenez do espaço e pelo espírito irrequieto que caracteriza o ilhéu. Trata-se, pois, de um conto luminoso, porquanto apresenta o tempo da infância / adolescência perdida como um período perpassado de imagens de alegria, euforia e deslumbramento, oferecendo situações em que é necessário recorrer à auréola virtuosa da coragem.

Contrariamente a esse texto, «Cabeça de Boga», que retrata a tristeza, a dor da despedida, a desilusão amorosa e a dureza do trabalho precoce, «Espelho da Morte», marcado pela doença, pela invalidez e pelo confronto com o «outro», e «O Passarinho Morto», que foca a aprendizagem da morte e a mágoa resultante da perda de um ente querido, desenvolvem-se num ambiente sombrio, mostrando que a infância insular, apesar de constituir um espaço-tempo dourado, carregado de boas lembranças, não é um período

de felicidade absoluta. As dores e a constatação da morte são, igualmente, necessárias ao crescimento. Assim, os factos da infância / adolescência narrados por Mateus Queimado decorrem de experiências concretas, das quais o sofrimento não é alheio. Assim no-lo comprova a personagem Abílio, de «Cabeça de Boga», com quem o narrador mantém uma sólida e duradoira amizade, mas que é obrigado, aos treze anos, pelo pai, a abandonar a escola e a ingressar no mundo do trabalho29; ou o rapaz entrevado de «Espelho da Morte», título que corresponde à sua alcunha. Tendo nascido no mesmo dia que ele, o narrador sente-se profundamente perturbado por essa figura, presa a uma cama de que nunca se levanta. Todo o conto desenvolve-se num ambiente pesado, o que se coaduna com as cerimónias pascais descritas, sobretudo a procissão do Senhor dos Enfermos, apontada como uma procissão diferente das outras, por ter menos pessoas e nem um andor.

«O Passarinho Morto» volta a abordar os temas da doença e da morte, através do falecimento de um animal de estimação do narrador, apesar de todos os esforços para o salvar. O momento da sua morte é marcado por tristeza e mágoa, mas também pela aceitação dessa etapa como algo natural, atenuada pelos rituais funerários domésticos, pelo aconchego familiar e pelo conforto da religião:

Levámo-lo então em suas garras frias para o quintal de baixo. Atravessámos em silêncio a pia de lavar, o cedro bermudiano, as babosas do tanque, o poço… E, escondidos pela abada da madressilva e das baunilhas, abrimos, entre o damasqueiro em flor e a latada de boal, a sepulturazinha. O canário ali ficou – estrito, limpo, como se o tivéssemos semeado. A Mercês fez-lhe à volta uma caniçadinha e pôs-lhe uma cruz de

margaridas. (ibidem: 245)30

Trata-se de uma concepção da religião muito abrangente, visto englobar também os animais, que, por manterem laços afectivos fortes com os donos, são vistos, praticamente, como membros da família.

Um espaço que parece ter marcado a infância/adolescência do narrador é a casa das tias, pois, segundo ele, no conto «A Lição de Solfa», nela «abria-se-me um mundo

29 Esta personagem faz-nos recordar o Gibicas, uma personagem de Vasco Pereira da Costa, companheiro do narrador, que, apesar de criança, é obrigado a trabalhar como engraxador e a mendigar para ajudar a família pobre.

30 Este episódio possui claras semelhanças com o conto de Cristóvão de Aguiar, «A Girafa», onde o narrador experiencia, igualmente, a perda de uma amiga especial, a cadela, enterrada com as mesmas honras que qualquer pessoa e com pleno direito a entrar no reino do Paraíso.

mais largo de intimidade e de experiência» (ibidem: 261). Curiosamente, Vitorino Nemésio foi educado na Praia da Vitória, quase sempre na casa das tias Menezes. Descreve-a como um espaço imponente, quase um palácio, de grandes dimensões, com muitas janelas, «comprida e profunda como um quartel ou um convento» (ibidem: 262). Ao contemplar a paisagem a partir da casa, «com a serra em frente e o mar de viés» (ibidem: 262), o narrador «tomava uma vaga consciência da paz e abastança» (ibidem: 262) da sua família. A devoção religiosa ditava grande parte dos hábitos naquele espaço, visto que as tias, fervorosamente devotas, rezavam, em conjunto, todos os dias. Este ambiente familiar, já evocado em «O Passarinho Morto», despertava no narrador uma sensação de conforto e tranquilidade, uma «paz redonda e sonolenta» (ibidem: 263), convidativa ao devaneio: «E eu lá adormecia no fofo dos bafos femininos, com um Padre- nosso na boca e a imaginação no mar» (ibidem: 264). Na verdade, apesar deste ambiente de protecção e conforto, aliados a esta «casa-ninho», Mateus Queimado parece já sentir a ânsia de ir mais além, de aceder ao apelo do desconhecido, estimulado pela amplidão dos horizontes e pela força da imaginação, um destino cumprido, mais tarde, pelo próprio Nemésio.

No mesmo conto, notamos que a religião é um elemento importante no quotidiano infantil, uma vez que, além de participar nos rituais domésticos, o narrador, depois dos sete anos, e por determinação do pai, passa a ajudar o padre Rocha na celebração da missa, outra semelhança com a vida do escritor. O seu empenho e dedicação ao Senhor mostram resultados imediatos, pois, já na primeira missa, desempenha, eficientemente, as suas tarefas. Apesar dos esforços para ser um bom acólito, notamos que, ao longo destes contos, o narrador não revela uma total e inquestionável devoção religiosa. Nalguns momentos, a sua perspectiva assume os contornos de uma crítica implícita, mediatizada pelo olhar da experiência, que questiona o sentido das coisas. Por exemplo, em «Espelho da Morte», a razão apontada para a realização da procissão dos enfermos prende-se mais