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Visão multifacetada da condição açoriana

A geração «Glacial» é testemunha da Revolução de Abril, que determina o começo de uma nova fase da escrita açoriana, marcada por uma visão multifacetada da condição insular. Após um clima político intenso, em que a literatura é posta entre parênteses31, os escritores açorianos começam a agrupar-se e retornam às publicações. A produção literária açoriana pós-25 de Abril apresenta uma crescente maturidade literária, visto os autores sentirem uma liberdade que não conheciam antes, o que permitiu um salto literário

moral que era a perspectiva da guerra nas colónias, nasce uma consciência colectiva que se expressa no poema e no conto, de par com outras manifestações criadoras, tendo como ponto de partida um projecto que desde logo se afirma pelo desbloqueio das estruturas decrépitas da cultura insular. Como condição essencial, o princípio da condição açoriana, incapaz de trair ou de se deixar corromper» (Melo, 1972: 24). Ainda a propósito desta geração, diz J. H. Santos Barros o seguinte: «É uma geração que se lança à conquista da modernidade com firmeza, inicialmente recusando radicalmente toda e qualquer referência aos particularismos locais isolados do contexto do país e do mundo» (Barros, 1982: 62).

31 O ambiente político nas ilhas torna-se tenso devido ao surgimento do movimento independentista conservador FLA (Frente de Libertação Açoriana), com a sua ameaça de separar o arquipélago do continente, uma situação que leva muitos escritores a abandonarem o arquipélago.

qualitativo, especialmente na prosa. Um dos traços da literatura desse período é, precisamente, o fim do predomínio da poesia sobre a ficção, sendo uma das razões mais prováveis a abolição da censura. Na verdade, na poesia, dizia-se metaforicamente o que não se podia dizer directamente. Além disso, trata-se de uma escrita que, principalmente a partir dos anos 80, apresenta uma grande variedade de tendências. Outra faceta nova é o grande aumento da edição de obras no continente, uma vez que, vivendo aí, os autores passam a ter mais fácil acesso às editoras de projecção nacional. As tendências temáticas açorianas já estabelecidas acentuam-se, mas vários autores optam por seguir uma temática portuguesa não especificamente insular, ou ainda, em muitos casos, as duas simultaneamente32. Em termos gerais, a temática das obras divide-se entre os Açores e o continente ou as ex-colónias33. Apesar de muitos dos novos ficcionistas já não residirem no arquipélago, continua a verificar-se a presença do universo açoriano no conjunto das preocupações estéticas e afectivas de muitos deles. Como explica Onésimo Teotónio Almeida, «a ausência da ilha começava a fazer-se sentir e o que antes eram elementos naturais da expressão estética por abundarem à volta do escritor, agora são uma presença na memória que ele levara consigo» (Almeida, 1989: 95).

Entretanto, nos Açores, a Secretaria Regional da Educação e Cultura lança uma colecção dirigida por Álamo Oliveira – Gaivota – que já publicou mais de sessenta livros de poesia, conto, romance, teatro e ensaio. Com esta colecção, pretendia-se, sobretudo, salvar do esquecimento os contistas açorianos nascidos no século XIX. Nos anos 70 e 80, podemos, então, destacar a reedição de obras que se encontravam esgotadas desde há muito tempo ou dispersas por jornais e revistas34. Não poderíamos deixar de referir ainda a

32 É o caso de, por exemplo, Alfredo de Mesquita, que publica O Jarrão da Índia, em 1983, um livro de contos e crónicas onde podemos detectar dois ambientes dominantes: a vida das pequenas sociedades, como Angra do Heroísmo, e das grandes, como Lisboa. No âmbito da temática açoriana, destaca-se o conto «Jácome», sobre a emigração para a América no contexto da baleação e o tão desejado reencontro com as raízes permitido pelo regresso à terra natal.

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A guerra colonial passa a representar um importante tema explorado pelos escritores açorianos, em especial por José Martins Garcia, João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Eduíno Borges Garcia e Álamo Oliveira. Quase todos se envolveram directamente na guerra, e as marcas são visíveis nas suas histórias e personagens, que representam o sofrimento do povo açoriano, cuja juventude foi mobilizada para o combate. Levados para terras distantes e estranhas e para ambientes adversos, na certeza da derrota e não acreditando nos ideais nacionalistas, foram vítimas de um processo de brutalização física mas sobretudo emocional. 34 Não pretendendo apresentar uma listagem exaustiva, fica apenas a referência a algumas obras de maior importância no âmbito deste trabalho, em particular as colectâneas de contos dos chamados «contistas da Horta»: Pastorais do Mosteiro (1976) e Gente das Ilhas (1978), de Nunes da Rosa; Contos e Narrativas (1981) e Água de Verão (1987), de Florêncio Terra; A Americana (1980), de Rodrigo Guerra. Desde há décadas inéditos, os contos de Alfredo Mesquita são reunidos e publicados sob o título O Jarrão da Índia (1983).

publicação, em 1978, da Antologia Panorâmica do Conto Açoriano, com trinta textos de vários autores, organizada por João de Melo, cujo prefácio lança importantes pistas sobre a evolução das temáticas e os principais autores. Por essa altura, uma geração mais antiga continua a sua escrita voltada sempre para o meio insular: Manuel Barbosa edita os contos

Enquanto o Galo Canta (1985); Manuel Ferreira reúne os seus contos nas colectâneas O Barco e o Sonho (1979) e O Morro e o Gigante (1981)35; Dinis da Luz, que, em 1953, publicara um volume de contos intitulado Destinos no Mar, colige de novo narrativas em A

Sereia Canta nos Portos (1979). Estes contistas mantêm uma forte vinculação territorial,

narrando histórias ligadas a um determinado espaço e tempo. O conteúdo é, claramente, açoriano, inserindo-se numa linha nitidamente tradicionalista, ainda que cada escritor use os moldes estéticos da sua preferência36.

Entre os principais ficcionistas do pós-Revolução de Abril, evidenciam-se nomes como José Martins Garcia, João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa e Álamo Oliveira, que apresentam uma escrita inovadora, mais diversificada em termos temáticos e, até certo ponto, subversiva. Em muitos dos seus contos, a temática açoriana não surge explicitamente, muito embora possamos notar a inspiração insular. A sua maneira de escrever volta-se para a realidade açoriana não com os olhos saudosistas dos que contemplam o paraíso perdido, mas, antes, com olhos críticos que tentam reavaliar essa realidade e relacioná-la com o resto de Portugal e com o mundo, oferecendo-nos

35 Manuel Ferreira regressa às publicações com O Barco e o Sonho, em 1979, após duas décadas de ausência, uma obra que lhe concede um lugar de importância na tradição contística açoriana, não só pelo facto de a sua edição de dois mil exemplares, distribuída principalmente em Ponta Delgada, ter esgotado logo, mas por representar uma escrita que supera muitos medianos contistas posteriores a Vitorino Nemésio. A respeito da obra, diz João de Melo que «estamos perante um livro miudamente trabalhado na sua estrutura, no termo chão e na sua temática cheia de palpitações históricas sobre casos falados e acontecidos ou tão-só sugeridos à realidade açoriana» (Melo, 1978: 99).

36 A estes três contistas, podemos acrescentar outros nomes, que, tal como os referidos, procuraram representar, nas suas obras, a vivência insular autêntica. Daí a importância dos pormenores de carácter etnográfico, a atenção aos usos e costumes e a localização da acção em espaço insular. A intenção estética articula-se com um enraizamento, no sentido de uma vinculação da escrita ao seu próprio contexto, servindo a expressão da condição açoriana. Em muitos textos, verifica-se a quase ausência de intriga, pelo que dominam episódios caricatos, humorísticos e pitorescos do quotidiano rural. É importante referir, ainda, a função moralizante de várias narrativas, que oferecem uma lição moral ao leitor, constantemente interpelado ao longo das obras. Estes aspectos estão todos presentes em Perdoe pelo Amor de Deus (1981), de Augusto Gomes, O Trevo de Quatro Folhas e Outras Histórias (1983), de Hélder Melo, e Contos Desta e Doutras

Vidas (1988), de António Bulcão. A temática açoriana revela-se através da exploração de temas como o mar

e a influência dos vapores nas pequenas comunidades, o trabalho quotidiano da terra, a religiosidade fervorosa do povo açoriano, a emigração e o desejo de regressar à terra natal, a força destruidora dos fenómenos da natureza. Podemos referir, ainda, a configuração de episódios retirados da História dos Açores. Note-se que a vivência açoriana é vista a partir de uma perspectiva colectiva, já que a preocupação central é a representação da maneira de ser do povo açoriano.

novas (e insólitas) perspectivas. Subvertendo o discurso tradicionalista e oficial, mostram- nos a anti-História, especialmente a marginalidade carregada ao longo de séculos pelo açoriano em relação ao português continental37. A intenção parece ser a de questionar a realidade portuguesa e as posições historicamente assumidas, procurando revelar aquilo que define o açoriano / português num novo mundo em que os valores se alteram constantemente e as verdades se despedaçam a qualquer momento. O humorismo, a ironia crítica, a sátira, o grotesco, o registo burlesco, o fantástico, o estranho são recursos de que esta nova geração de ficcionistas se serve para mostrar outras versões da realidade. Representam, pois, uma lufada de ar fresco no âmbito da prosa açoriana.

O primeiro desses ficcionistas, José Martins Garcia, jovem picoense, estreia-se antes do 25 de Abril com livros de crítica e intervenção através da crónica e da sátira. Contudo, após a revolução, embora cultive, igualmente, o teatro e o ensaio, elege o romance e o conto como géneros de relevo. A partir de 1974, torna-se extremamente assíduo nas publicações38, mas é em 1979 que lança Morrer Devagar, uma obra importante na evolução do conto açoriano, um livro cuja acção se situa nos Açores, em Lisboa e nos espaços da guerra colonial. Apesar de ter escrito muitos outros livros de contos, interessa- nos esse, em particular, visto nele o autor explorar um importante traço da condição açoriana e a que deu o nome de «estética da repetição». Este aspecto, já anunciado nos seus romances, viria a constituir um dos principais fios condutores da sua ficção narrativa, atingindo níveis máximos nos contos de Morrer Devagar, em que a vida nas ilhas é pautada pela repetição, pela monotonia, pela permanência e pela obediência a rituais que vêm de outros tempos. Luiz António de Assis Brasil descreve a obra como «uma série de pequenas histórias nas quais a perspectiva insular da imutabilidade aparece em toda a sua força. Sem qualquer contemplação, José Martins Garcia faz um inventário da mesmice e da

37 Visto terem passado pela experiência do seminário, alguns escritores desta geração adoptam uma concepção anticlerical, pois sentiram-se vitimizados não só pelos dogmas da política e da instituição militar, mas também pelos dogmas da própria religião católica. Escrever representa, pois, uma forma de catarse, de libertação emocional dos traumas; e, ao mesmo tempo, uma maneira de denunciar os podres da nação. 38 A dura experiência da guerra colonial, em que foi oficial miliciano na Guiné durante dois anos, inspirou- lhe o romance Lugar de Massacre (1975), que marcou definitivamente a sua personalidade e maneira de escrever. Além desse romance, destacamos A Fome (1978), O Medo (1982), Imitação da Morte (1982),

Contrabando Original (1987) e Memória da Terra (1990). O conto também ocupou um lugar de relevo na

sua obra, tendo publicado muitos volumes, como Katafaraum É uma Nação (1974), Alecrim, Alecrim aos

Molhos (1974), Revolucionários e Querubins (1977), Receitas para Fritar a Humanidade (1978), Morrer Devagar (1979), Contos Infernais (1987), Katafaraum Ressurrecto (1992). Também cultivou o teatro, bem

como o ensaio e a crítica literária, efectuando importantes trabalhos de investigação, principalmente sobre Fernando Pessoa e Vitorino Nemésio.

falta de horizontes» (Brasil, 2003: 33). A fome e o medo, que dão título a dois dos seus romances (A Fome, 1978, e O Medo, 1982), também assolam o microcosmo insular, e têm a marca da fatalidade, pois são causados por condições geográficas, meteorológicas e geológicas. O autor oferece-nos, pois, uma nova forma de dramatização da condição insular, sob os signos de fatalidade histórica colectiva, servindo-se de uma linguagem satírica e crítica, apoiada em mecanismos como a hipérbole, a ironia, o sarcasmo, a caricatura, a paródia e o grotesco, recorrendo, por vezes, a um certo realismo fantástico.

Como sucedeu com vários companheiros de geração, o percurso de vida de João de Melo, em especial da sua carreira literária, construiu-se, principalmente, a partir de três pontos: Açores, África e Portugal continental39. A sua obra é perpassada por um olhar crítico sobre o passado português e sobre os valores da sociedade contemporânea. Estreia- se na ficção, em 1975, com Histórias da Resistência, em que a temática açoriana está presente apenas em alguns contos. É, porém, nos romances O Meu Mundo não é deste

Reino (1983) e Gente Feliz com Lágrimas (1988)40, onde traça um retrato das comunidades rurais dos Açores, recorrendo, para isso, à memória da infância vivida nesse espaço periférico, que a circunstância insular e a vivência açoriana estão presentes de forma mais veemente. Nos contos de Entre Pássaro e Anjo (1987), Bem-Aventuranças (1992) e As

Coisas da Alma (2003), podemos detectar, aqui e ali, a inspiração insular, sobretudo nas

histórias sobre as geografias da infância, sobre a dor da partida e sobre o regresso aos lugares primordiais. O lirismo e a expressividade poética são marcas da sua escrita, servindo a expressão de mundos interiores atormentados pela fragmentação da identidade pessoal, pela inquietação amorosa e pelos novos e estranhos modos de amar, pelas crises conjugais.

Outro importante ficcionista que se estreia nos anos 70 é Cristóvão de Aguiar, micaelense que residindo fora do arquipélago, em Coimbra, há largos anos, começa por

39 João de Melo é, sobretudo, um escritor de romances e contos, mas publicou também livros de ensaio e crítica literária, antologias, poesia, crónica e literatura de viagens. Particularmente nos romances, mostra-se um escritor insatisfeito com o sistema social, político e cultural do país. Por conseguinte, as suas obras permitem, nalguns momentos, repensar a realidade portuguesa, algumas vezes a partir da circunstância insular e periférica. Por isso, deparamo-nos, por vezes, com um olhar irónico e sarcástico, um olhar que analisa a História e critica a sociedade contemporânea. Todavia, a preocupação do autor não é a imitação fiel da realidade mas sim a transfiguração do real, que atinge, nalguns momentos, o estranho e o absurdo. A experiência traumática da guerra colonial inspirou-o em várias obras, em especial no romance Autópsia de

um Mar de Ruínas (1984).

40 Ao romance Gente Feliz com Lágrimas, foram atribuídos vários prémios, destacando-se, em 1989, o Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.

publicar romances41. O autor prolonga a temática dominante da sua trilogia romanesca no volume de contos A Descoberta da Cidade e Outras Histórias (1992), já que o elemento central é, mais uma vez, o passado na ilha. Aliás, podemos dizer que o principal tema da sua obra é, precisamente, a recuperação do tempo da infância no espaço insular, que se cruza com o universo da emigração e da guerra colonial. A par disso, verifica-se uma tentativa de reproduzir um determinado léxico, fonética e sintaxe populares, que se articulam num ritmo narrativo fluente. Um pormenor interessante é a reutilização de certas personagens, que circulam ao longo de várias obras, nomeadamente figuras da infância. Em Trasfega (2003), os contos despertam a reflexão sobre o que é ser homem no Portugal contemporâneo, com a crítica à guerra, à exploração do homem pelo homem, mas também sobre o que é ser homem nas ilhas de bruma, com a exploração dos dramas da emigração e com a crítica à falsidade dos códigos morais vigentes. Cristóvão de Aguiar escreve contos de ambiência regional, mas não de um regionalismo superficial e folclórico. Como Miguel Torga, retrata o apego à terra, a cultura particular, as figuras típicas, a honra colectiva, a sabedoria e a simplicidade do povo, a quietude e a beleza da paisagem, mergulhando fundo nas raízes para representar o universal.

Podemos dizer que uma das temáticas privilegiadas na ficção açoriana é, indubitavelmente, a memória da ilha. Tal como Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa baseou a sua produção contística na representação de um espaço e de um tempo que são, fundamentalmente, os da infância e da adolescência no pequeno mundo açoriano, mostrando, ao mesmo tempo, um olhar crítico das estruturas sobre que assentava a sociedade de um passado recente. Estes aspectos estão presentes nos seus livros de contos

Nas Escadas do Império (1978) e Plantador de Palavras, Vendedor de Lérias (1984).

Enquanto que o primeiro revela uma escrita contida, realista, focando temas como a descoberta do corpo, as primeiras dores amorosas, num fundo colectivo marcado pelas pequenas coisas do quotidiano e pela presença do sonho americano, o segundo contém um misto de técnicas narrativas, suportado por uma prosa despedaçada que oscila entre a linearidade e o realismo, por um lado, e a poetização, o fantástico e a ambiguidade, por

41 Após uma experiência no campo da poesia, Cristóvão de Aguiar publica o romance Raiz Comovida: A

Semente e a Seiva (1976), que, nas palavras de Onésimo Teotónio Almeida, é «um vigoroso exercício

estilístico de memória da infância através da linguagem de um grupo de personagens de grande riqueza humana» (Almeida, 1989: 95). Este romance é o primeiro de uma trilogia, completada pelo segundo volume – Vindima de Fogo – logo em 1979, que prolonga essa revisitação afectiva do mundo insular do autor, e pelo terceiro – O Fruto e o Sonho – em 1981.

outro. A segunda obra mostra-nos um sentido mais profundo da ilha, através do recurso à linguagem simbólica e mitológica. A evolução na arte de contar do autor revela uma crescente subjectividade, originalidade e uma nova maneira de olhar a condição insular.

Embora se tenha estreado na ficção narrativa bem mais tarde do que os seus colegas, Álamo Oliveira partilha dos mesmos ideais e da mesma visão crítica do mundo, mostrando, igualmente, um olhar diferente e irreverente que percorre a História, a condição açoriana e a realidade portuguesa mais vasta. Passou pela experiência traumática da guerra colonial e iniciou os estudos no seminário, pelo que se inspirou nessa experiência para escrever determinadas obras. É autor de uma vasta obra, que inclui poesia, drama, romance, conto e ensaio, unificada pela temática açoriana, que mostra um homem profundamente marcado por condicionalismos históricos e geográficos. Publicou dois livros de contos, Contos com Desconto (1991) e Com Perfume e com Veneno (1997), marcados, sobretudo, por uma grande originalidade, sentido de humor e perspectiva crítica e irónica do homem e da comunidade em que ele se insere. A condição insular está presente em inúmeros momentos, revelando uma multiplicidade de facetas (etnográfica, antropológica, histórica, literária e linguística) deveras enriquecedora42.

É na década de 70 que podemos começar a falar de literatura da emigração propriamente dita, no contexto açoriano, devido à emergente actividade de escritores emigrados, como Onésimo Teotónio Almeida, que, a partir dessa altura, esboçam novas tentativas de expressão literária das comunidades portuguesas nos EUA. Com os anos 80, nota-se a confirmação das revelações da década anterior e a evolução dos escritores luso- americanos. Apesar de se verificar a tematização da emigração na literatura dos Açores já na segunda metade do século XIX, é ao longo do século XX, sobretudo após o 25 de Abril, que a ficção desenvolveu e complexificou o tema, mostrando uma perspectiva mais profunda e completa a partir do outro lado, isto é, dos destinos da emigração. No conto, destacam-se autores como Onésimo Teotónio Almeida, Manuel Ferreira Duarte e José

42 Nos contos de Álamo Oliveira, a ilha surge como um microcosmo, em que as pessoas encaram o mesmo dia-a-dia, pautado pela monotonia, pela solidão insular e pela pequenez do espaço. Apesar de subverter constantemente a História, o escritor deposita nos contos a verdade de um povo e de uma vivência, atormentada quer pelas forças sociais e políticas (desigualdade social, incompetência governativa, exploração dos mais fracos, hipocrisia dos membros da Igreja), quer pelas forças da natureza (sismos, vulcões, tempestades), uma manifestação do poder divino. O que Álamo Oliveira nos pretende mostrar nestes contos não é a versão oficial da História mas sim a subversão dessa mesma História ou, se quisermos, uma «contra- realidade», expressa, na maior parte das vezes, através do recurso ao fantástico, ao irreal, ao estranho, ao absurdo e ao grotesco.

Francisco Costa, embora a emigração surja, pelo menos indirectamente, em quase todos os livros de contos açorianos43.

Com (Sapa)teia Americana (1983), o primeiro autor apresenta-nos um espaço particular: a «Lusalândia», território indefinido onde vivem os açorianos que emigraram para os EUA há mais de um século. Trata-se, nas palavras do escritor, de uma «ilha rodeada de América por todos os lados» (Almeida: 1987: 7). Nesse espaço, o emigrante coloca-se entre dois mundos de língua, padrões, costumes e valores diferenciados. Daí encontrarmos temas como o conflito de gerações, as dificuldades de adaptação e a contaminação do português pelo léxico inglês. As histórias tratam, essencialmente, o