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Os «contistas da Horta»: infância e tradição

3. O paraíso perdido da infância e da adolescência

3.1 Os «contistas da Horta»: infância e tradição

Já na passagem do século XIX para o século XX, os «contistas da Horta» consagram alguns textos exclusivamente à evocação nostálgica dessa etapa da vida, configurada a partir de uma perspectiva romântica. Neste sentido, os seus contos patenteiam uma visão idílica da infância e do quotidiano rural inserido no espaço insular. Os narradores de primeiro ou segundo grau evocam, ao sabor da saudade e da emoção, reminiscências pessoais, imagens concretas do mundo matricial, pequenos acontecimentos e quadros campesinos, tradições e costumes regionais, elogiando as paisagens e as gentes.

No conto «Dois lugares vazios», de Água de Verão: Contos e Narrativas, de Florêncio Terra, o narrador de primeiro grau cede a palavra a um velho açoriano, contador de histórias, que evoca o imaginário pessoal e social da sua infância e juventude num serão onde estão todos reunidos à sua volta: «quando o velho açoreano, desde longos anos

expatriado, começou a sua narrativa, todos se calaram e formaram círculo em volta dele escutando atentamente» (Terra, 1987: 15). Neste serão, representativo do resgate da narrativa oral, a memória do velho é reavivada e leva-o a revisitar um momento do passado em particular: o dia de Natal, na sua terra, lá longe, no tempo e no espaço. Marcada pela simplicidade e pela rusticidade da acção, das personagens e do espaço, a história que conta possui contornos positivos, uma vez que esse dia era vivido com uma enorme alegria e confraternização. Além de pormenores de carácter regional e etnográfico, especialmente o modo como se realizava a matança do porco, um costume tradicional açoriano, assim como alguns rituais religiosos, a narrativa alude, ainda que subtilmente, a um dos efeitos negativos da emigração: a separação da família. A ilha perdida no meio do oceano assume-se, desta forma, como um paraíso onde ainda se mantinham a vitalidade da infância e a coesão familiar, contrastando com um presente assombrado pela velhice, pela morte e afastamento das pessoas queridas, em especial os pais. Predomina, claramente, a descrição, demorada e pormenorizada, aliada a uma linguagem poética e emotiva. O narrador não se preocupa tanto com a narração de uma história e com o encadeamento de várias acções, mas sim com a recuperação de acontecimentos rotineiros e imagens marcantes na sua infância, propiciadoras de momentos felizes, e com a tentativa de captar um certo traço local, através da descrição de figuras, hábitos e paisagem. A conflitualidade é substituída pela exaltação de um tempo perdido (o da infância) e de um espaço perdido (a aldeia distante, no meio do oceano).

A revisitação do passado leva o velho contador a divagar, poeticamente, sobre a infância7, representada, metaforicamente, como «diabo», o que reflecte o espírito irrequieto, travesso e rebelde próprio dessa etapa da vida, e como «Deusa», mulher, revelando a luminosidade, a doçura, a alegria, a inocência e a simplicidade normalmente associadas a uma criança. Apesar de conterem uma carga extremamente positiva e alegre,

7 «Sim rapazes do diabo éramos nós, mas santo diabo esse a que pertencíamos de corpo e alma e que não era outro senão os nossos dez, doze anos, a nossa vida rica de seiva, a nossa alma varejada de luz e iriada de ilusões e de esperanças, o nosso espírito impressionável, fresco como uma flôr desabrochando. Sim, era o diabo… ou antes: – era a Deusa da nossa infância, essa doce figura e jovem mulher, banhada em risos, escultural, branca, de túnica flutuante e leve, os pés nus, os ombros, o colo nu, na simples e casta nudez da Natureza; sim, era Ela, a nossa fiel amiga que nos não abandonava nunca, e nos dava o gozo imenso de viver!...» (Terra, 1987: 16).

as recordações do velho escondem, lá no fundo, a saudade dolorosa desse passado ilhéu radioso, irremediavelmente perdido e apenas vivo na memória8.

Um dos textos de Florêncio Terra mais ricos em pormenores de carácter etnográfico é «Fruta do tempo» (Água de Verão: Contos e Narrativas), dominado pela descrição de vários costumes e tradições açorianas, em especial a matança do porco. O narrador participante, um velho açoriano, evoca, ao longo do texto, o tempo da sua infância, principalmente os momentos que nele mais despertam saudade, usando uma linguagem emotiva e coloquial. A sua atenção recai sobre esse costume adoptado em praticamente todo o arquipélago e que representa uma autêntica festa no quotidiano rural açoriano. Facilmente nos apercebemos de que o narrador valoriza bastante a tradição e o tipicamente local, tecendo um elogio explícito ao campo e aos seus produtos. A infância não é, por conseguinte, o tema dominante no texto, pois serve apenas a contextualização temporal das situações rememoradas e presentificadas através da memória. O assunto privilegiado relaciona-se com os aspectos etnográficos e tradicionais do quotidiano açoriano. Todavia, ao interpelar o leitor, o narrador não deixa de enaltecer esse período cronológico da sua vida e confessar a saudade que sente desse tempo primordial.

Mas, leitor querido, quem me dera a mim poder tornar a encontrar hoje o prazer puro, o contentamento sem mistura, o alvoroço, a alegria d’alma que na minha alma de criança sentia perante esse e outros presépios da minha infância e que ainda agora, fechando os olhos, vejo numa iluminação que deslumbra, rodeados de gente sôfrega, de crianças, cujas pupilas são outras tantas luzes, e que gritam a cada surpresa e se desvanecem a cada novo trecho desse singelo e novo quadro. (ibidem: 29)

Os sentimentos experienciados no tempo dourado da infância já não são possíveis no presente, como se tivessem sido contaminados pelo desencantamento perante a vida e pela passagem do tempo e estivessem apenas guardados no baú sem fundo da memória.

Devido à sua estrutura e elaboração das categorias narrativas, estes dois textos dificultam a tarefa de identificação do género a que pertencem, uma vez que são

8

Este texto pode ser aproximado a «A matança do porco», de Hélder Melo (O Trevo de Quatro Folhas e

Outras Histórias), que aborda esta festa tradicional açoriana, através de uma linguagem descritiva e

emotiva. Ambos os narradores elogiam o tempo da infância, por se tratar de uma época de grande alegria e felicidade, em que se valorizava os costumes açorianos.

dominados pela descrição minuciosa, pelos pormenores, apresentando, portanto, pouca conflitualidade e a quase ausência de acção ou intriga. Estamos, pois, perante quadros do quotidiano rural, narrativas descritivas, estáticas, em que o narrador se debruça sobre a descrição de paisagens, hábitos, costumes regionais e personagens geralmente não envolvidas em cadeias de eventos. Trata-se de relatos factuais que apresentam considerações do narrador acerca do espaço e dos vários ambientes rurais, acerca do sentido da vida e do passado e que levantam dúvidas relativamente à sua natureza ficcional. No entanto, não deixam de lançar pistas importantes que nos permitem compreender o modo como a temática da infância foi tratada na fase inicial do percurso do conto de temática açoriana.

A infância insular como tempo e paraíso perdidos é um aspecto presente no conto «De volta à terra» (A Americana), de Rodrigo Guerra, que, contrariamente aos textos de Florêncio Terra, apresenta uma história com princípio, meio e fim, uma descrição mais condensada e uma maior preocupação com o desenrolar da acção, aspectos que o aproximam da estética contística. A história assenta no regresso à terra natal por parte de um velho emigrante açoriano. As suas raízes e a sua identidade estão presas a um espaço do qual foi necessário sair, mas onde tem de retornar, de modo a restabelecer a unidade perdida. No momento em que, a bordo do navio, começa a avistar a ilha ao longe, recorda a sua infância e mocidade naquela terra, vistas a partir de uma perspectiva positiva e idílica, que o velho tenta prolongar no presente, pois espera, irracionalmente, encontrar a terra natal inalterada desde o momento em que partiu. Vivido no regaço vulcânico da ilha, esse período é evocado numa aura de alegria, vitalidade, beleza, felicidade, amor, afecto e devoção religiosa. Ao ver a ilha surgir ao longe, ele sente-se rejuvenescer espiritualmente, como se tivesse regressado a esse tempo dourado. Perto de desembarcar, acredita firmemente, embora de forma ilusória e enganadora, que irá encontrar o mesmo espaço e as mesmas pessoas:

O que a ilha do Pico, com só o vê-la de longe, lhe recordava, é incalculável. Foi como se lhe passasse ante os olhos a grande fita animatográfica da sua mocidade, dessa mocidade que ali devia existir, quer nas casas, quer nas pessoas, quer no mar, quer no campo!... Sim! Ainda lá deviam estar, na varanda, a sua querida mãe, o seu pai, os seus irmãos. (Guerra, 1980: 167)

Todavia, quando pisa terra, o seu sonho de eterna mocidade desmorona-se, uma vez que se apercebe da verdadeira realidade: ninguém o conhece, a não ser um companheiro de infância, quase irreconhecível; o espaço sofreu profundas alterações; os seus pais e os seus amigos já haviam morrido; a única irmã que lhe restava estava envelhecida. Após o encontro com o real, tudo adquire um carácter negativo: «Como tudo agora lhe parecia triste e feio! As ruas eram estreitas, as casas eram pequenas. Tudo envelhecia em volta dele na hora dolorosa do regresso à terra. Havia casas que se desmoronavam» (ibidem: 168). O envelhecimento atinge ainda o próprio protagonista, visto que, no final, um antigo criado, agora velho, abraçando-o, constata: «– “Como o menino está velho!...”» (ibidem: 168). Em absoluto contraste com as imagens de felicidade do passado na ilha, no presente há a constatação amarga da passagem do tempo, da mudança, do envelhecimento, da infância e mocidade irremediavelmente perdidas para sempre. A activação da memória gera um confronto que lhe mostra como ele é um estranho na sua terra. O paraíso da infância e da mocidade, configurado a partir de imagens do quotidiano, subsiste apenas como reminiscência. O único regresso permitido a esse tempo de felicidade só é possível através da memória.