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Hélder Melo: entre a realidade e a ficção

3. O paraíso perdido da infância e da adolescência

3.2 Hélder Melo: entre a realidade e a ficção

Apesar de cronologicamente se distanciar destes autores, Hélder Melo revela um modo semelhante de tratamento da temática açoriana, em particular do tema da infância. Abordando inúmeros aspectos etnográficos e elogiando a tradição, este escritor manifesta, sobretudo em O Trevo de Quatro Folhas e Outras Histórias, uma devoção incondicional pela sua terra natal. Regressa, por isso, através da memória, aos momentos em que a ilha ainda conservava intactas a simplicidade, a autenticidade e a harmonia do quotidiano rural açoriano. Esses momentos situam-se no tempo da sua infância e juventude, marcado pela admiração por certas figuras, pelo amor à família e amigos, pela valorização das pequenas coisas do quotidiano, pelo sentido religioso, pela inocência e pureza de sentimentos. Ao afirmar, no prefácio e no início de muitas narrativas, a veracidade dos acontecimentos, o escritor assume-se como o verdadeiro protagonista das várias histórias. Estamos, pois, perante textos híbridos, que dificultam uma classificação genológica, provavelmente resultantes da faceta de jornalista do autor, fiel à realidade factual. Todavia, no prefácio, Hélder Melo classifica-os de «pequenos contos, nos quais recordo cenas e ambientes que

eu próprio observei na minha infância, e um ou outro acontecimento de épocas passadas que me foram contados por velhos amigos. […] Todos têm um fundo do verdadeiro» (Melo, 1983: 7 e 8). Portanto, segundo o autor, são duas as fontes que forneceram a matéria para os seus textos: a experiência pessoal, em contacto com a realidade empírica, e as narrativas orais ouvidas de outrem, agora recontadas através da sua voz. Outro aspecto importante referido nesse paratexto é o sentimento dominante: a saudade. De facto, o escritor mantém uma ligação muito forte com o período da infância, pois, apesar de distante no tempo, continua tão vivo ainda como reminiscência. Em praticamente todos os textos, o narrador manifesta uma profunda saudade do passado, como se o presente fosse apenas uma sombra da felicidade de outros tempos. Ao afirmar que as suas narrativas mostram cenas e ambientes, Hélder Melo aponta já para a simplicidade da acção, visto que as histórias não apresentam grande conflitualidade ou profundidade, da mesma forma que as personagens não possuem uma notória densidade psicológica. As histórias são apenas fragmentos de memórias, pequenos episódios marcantes na vida do autor, não apresentando uma grande preocupação na construção de uma intriga com princípio, meio e fim.

Não é nosso objectivo analisar aprofundadamente esta obra, mas apenas lançar um olhar atento e crítico sobre a visão da infância insular configurada nos textos. Antes de mais, a narração oscila entre a primeira e a terceira pessoas. No segundo caso, como as imagens gravadas na memória do narrador se relacionam, principalmente, com as figuras que marcaram o seu passado, essa entidade assume-se como um observador, visto que agora a atenção recai sobre elas. Há indicações do espaço geográfico onde decorre a acção (normalmente, o Pico e o Faial), assim como referências temporais específicas. Em termos gerais, o autor utiliza um discurso que varia entre o poético, o cómico e o irónico. O léxico e a pronúncia regionais estão presentes nas falas de muitas personagens. Além disso, algumas das histórias revelam um pendor moralizante, na medida em que, por vezes, tudo se concentra na tentativa de exercer uma determinada influência sobre o leitor, a quem o narrador se dirige com frequência. A moral vigente nos textos relaciona-se com o enaltecimento do amor pela terra, do amor a Deus e do amor entre os membros da família. Todos estes aspectos ajudam a configurar uma visão idílica da infância. Deparamo-nos, em alguns momentos, com figuras, situações e sentimentos menos

positivos, que são, no entanto, encarados como próprios do processo de crescimento e atenuados pelas imagens de felicidade.

A saudade da infância e a representação desse período como um tempo dourado são aspectos centrais no conto «Retalhos da minha infância». Tudo conflui no sentido de mostrar uma visão positiva da infância, desde a beleza da paisagem9, os acontecimentos rotineiros da pequena vila, as saudosas figuras, sobretudo a avó e a D. Adelaide, até mesmo as sensações, como o cheiro, o paladar, a visão, a audição e o tacto10. A história retrata, através de uma linguagem simples e emotiva, o fascínio que a chegada do vapor exerce sobre uma criança, o narrador, e mostra como esse meio de transporte influencia e acelera a vida da população local. A curiosidade, a ingenuidade, a impaciência e o entusiasmo caracterizam o seu modo de encarar a realidade circundante. Quase todo o texto é dominado por esse olhar infantil, e a história é narrada ao ritmo das recordações e duma consciência emocionada, como se o narrador-protagonista estivesse a experienciar as vivências pela primeira vez, tal é o poder de presentificação da memória. Todavia, o final revela a presença do narrador adulto, que, agora situado no presente, termina numa nota nostálgica: «Que saudades! Que saudades, meu Deus!» (ibidem: 14). Deste modo, a escrita surge como uma forma de compensar a saudade da infância no solo natal.

A activação da memória pode ser desencadeada de fora para dentro, isto é, pela presença de um determinado objecto ou lugar, no qual o narrador vê as lembranças armazenadas. Assim acontece em «A louca», em que as recordações da infância são despoletadas por um elemento do mundo exterior: «a secular ermida da Prainha de Cima, digna do pincel romântico de Júlio Dinis» (ibidem: 99). Desta forma, o narrador- personagem recua até uma certa tarde de Outono «para reviver figuras aldeãs, que não se me apagaram ainda da memória» (ibidem: 100). Com efeito, a narrativa é composta pela caracterização física e psicológica das figuras que marcaram a infância do narrador, algumas detentoras de elogiosas virtudes, como a beata Srª Maria Rita, «bondosa criatura», outras portadoras de defeitos, como a Mónica, «meio anormal, zarolha e

9 «Ao longe o vapor diminuía, lançando um fumo negro e espiralado, que sujava o céu turquesa. Ao fundo, S. Jorge – a Ilha das arribas – estendia-se languidamente sobre a safira argêntea daquele bonançoso mar de um formosíssimo outono» (Melo, 1983: 11-12).

10 «No patamar da escada recebeu-nos a Sra. D. Adelaide e aquele cheiro inconfundível do seu “Moca”, que nos esperava lá dentro […]. O café escaldava, perfumado e docinho. A compota de pêssego (a melhor que comi na minha vida) tinha reflexos de oiro na compoteira de cristal. Os fofos pães de leite, barrados com apetitosa manteiga, vizinhavam-se dos biscoitos amanteigados e dos “esquecidos”, deliciosos, de mistura com rosquilhinhas de aguardente» (ibidem: 10).

deficiente na fala» (ibidem: 100 e 101), e a Louca, uma «velhota solitária e silenciosa» (ibidem: 102) que apavorava as crianças e o próprio narrador-menino. Vivendo afastada do convívio social, num casebre abandonado e apodrecido, é uma figura demente, peculiar e assustadora que marcou o quotidiano infantil do narrador. Destaca-se um dia em que o rapaz viu a estranha personagem, completamente nua, atravessar o pátio:

A visão emocionante, do seu olhar espavorido, da face esquálida e pergaminhada, dos cabelos crinisparsos, de um branco sujo, dos seus membros de rã e dos sacos desajeitados dos longos seios, todo aquele conjunto do seu esqueleto coberto por uma pele negra, cor de terra, eis uma imagem insólita que emerge das recordações da minha infância e me transporte à galeria shakespeareana, do Hamlet à criação fantástica das bruxas de Lady Macbeth. (ibidem: 102)

Esta visão grotesca não só provocou espanto e medo no narrador como estimulou a sua imaginação, levando-o a tecer relações entre o mundo empírico e a literatura. Deste modo, o autor termina como começou, com a referência a dois grandes escritores (primeiramente, Júlio Dinis e, agora, Shakespeare), exímios criadores de mundos ficcionais e personagens inolvidáveis.