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Vasco Pereira da Costa: tempo de revelações

3. O paraíso perdido da infância e da adolescência

3.4 Vasco Pereira da Costa: tempo de revelações

A descoberta da sexualidade e o despertar do desejo são típicos do período da puberdade e, por conseguinte, abordados, com alguma frequência, na escrita da infância / adolescência. No que diz respeito ao conto açoriano, a associação deste período a uma primordialidade sensual insere-se nas tendências literárias mais recentes, sobretudo após a Revolução de Abril, em que começa a notar-se uma maior liberdade e audácia por parte dos escritores no tratamento de certos temas. Outro aspecto que começa a marcar presença nas suas obras é a crítica ao estabelecido, à autoridade, aliada à denúncia dos meios de repressão. Estes elementos são detectáveis na escrita da infância/adolescência de Vasco Pereira da Costa, que configura o espaço e o tempo perdidos através de um olhar infantil, fascinado com as primeiras descobertas mas, também, questionador do meio circundante.

Este escritor retrata experiências vividas na realidade comum, com os outros e entre os outros, embora sem suprimir o espaço íntimo individual. O sentimentalismo saudosista e a nostalgia de tempos perdidos, marcas dos contos previamente analisados, são atenuados em favor da objectividade e da naturalidade das revelações e do diálogo aberto do protagonista consigo próprio, com a sociedade, com os que participam, sob

múltiplas formas e por diversas vias, na sua trajectória, e, até, com a natureza circundante. O impulso romântico da confissão intimista, com os seus assomos líricos e divagações interioristas, tão comuns na escrita de representação da infância / adolescência de períodos anteriores, dá lugar à dimensão precisa do real, que rodeia e em que se vai formando a identidade do adolescente no caminho para a idade adulta. Os diversos movimentos de uma vida têm como cenário a realidade quotidiana e os pequenos e vulgares acontecimentos, em que se recorta o drama colectivo de um povo, sobre o qual pesa a fatalidade de um destino determinado pela peculiaridade geográfica e pelas circunstâncias políticas. Os textos patenteiam uma visão objectiva e concreta da experiência própria e alheia, enquadrada no mundo natural e social e explorada através de um realismo clarificador.

Situando-se num registo mais actual e complexo que os escritores analisados previamente, Vasco Pereira da Costa, nos contos de Nas Escadas do Império, invoca, com realismo, imagens do quotidiano no pequeno mundo açoriano e entrelaça-as com aqueles instantes primordiais, os momentos fundacionais de subida das «escadas» da adolescência, rumo ao mundo adulto. O autor apresenta uma forma diferenciada de abordar essa etapa, na medida em que o narrador se volta para o passado não com um mero olhar saudosista de quem contempla o paraíso perdido, mas sobretudo com olhos críticos que tentam captar a realidade envolvente, desmascarando as figuras opressivas e autoritárias do fascismo. Deste modo, a sua escrita sobre a infância opera uma mudança de registo, instituindo um outro ângulo de visão do universo insular e uma maior penetração no mundo iniciático da infância/adolescência, focando o despertar da sexualidade. Nestes textos, são projectadas, sobre a tela da escrita, histórias sobre a iniciação na vida e a construção da identidade pessoal, tendo como pano de fundo a vivência colectiva, os usos e costumes regionais, e recorrendo à riqueza vocabular da linguagem popular açoriana. Tal como os contistas anteriores, Vasco Pereira da Costa usa a realidade como alicerce da construção ficcional das histórias e personagens, mas reforça o período da adolescência como um tempo de revelações (do corpo, dos sentidos, da paixão e do amor) e combina o jogo evocativo com a apreensão e confrontação com o real.

A descoberta da sexualidade e a entrada no período pré-adulto são aspectos centrais nos contos «Faia-da-terra» e «O Gibicas», que correspondem ao primeiro e último contos da obra. Situando-se no presente, o narrador lança um olhar retrospectivo sobre o

mundo iniciático e fascinante da adolescência, focando, no primeiro conto, a exploração do corpo, o despertar do desejo e a primeira desilusão amorosa, e, no segundo, a aprendizagem da vida (a reprodução), o valor da amizade e o confronto com o «outro». A adolescência surge como um período de contrários, um tempo de alegria, de companheirismo, de aventuras, de emoções fortes, de entusiasmo, mas, também, um tempo de constatação das primeiras dores, próprias e alheias. Outro aspecto importante nestes contos é a alternância entre o narrador-menino e o narrador-escritor. Ou seja, o narrador viaja entre o passado e o presente, surgindo ora como o adolescente que aprende e descobre, ora como o homem que escreve as suas memórias. Contudo, a idade adulta é, claramente, relegada para segundo plano, na medida em que a infância / adolescência adquire um estatuto privilegiado, sendo uma fase de experiências essenciais para a formação da identidade.

Na escrita da infância, é comum os autores elegerem elementos que conotam especial significação no universo particular dos narradores e personagens. Esses elementos entrecruzam-se simbolicamente no seu percurso existencial, num processo metafórico que conjuga as peripécias individuais com o simbolismo evocado por cada um desses elementos. Desta forma, há, entre eles, uma relação de correspondência que os torna complementares. Já vimos um conto em que isso acontece, «O binóculo do meu padrinho», de Dinis da Luz, em que o objecto em questão simboliza o fascínio, a curiosidade, o sonho e a imaginação infantis, que se perdem com a entrada no mundo adulto. Vasco Pereira da Costa, no conto «Faia-da-terra», estruturado em torno dos movimentos de descoberta e de ruptura típicos do período da puberdade, atribui uma conotação especial a um elemento natural, a faia-da-terra, estabelecendo uma relação simbólica entre essa árvore e a vida de Teresa, a vizinha do narrador e sua primeira namorada. Da árvore sobrevêm elementos identitários, visto que o seu desenvolvimento reflecte a evolução da relação entre o narrador e Teresa, desde o despertar dos sentidos e do desejo sexual, passando pela descoberta e exploração do corpo14, até à desilusão

14 «Uma cortina intermitente envolvia a faia expectante, e um bafo morno, golfado das profunduras da terra, misturava-se com a aragem fresca chegada do céu. – Olha o que eu já tenho… O peito empinado de Teresa espetava-se pelos meus olhos como dois aguilhões que pareciam querer furar a suera. […] Fiquei vermelho que nem malagueta brava. Teresa, no entanto, olhou a árvore e rematou, ressabiada: – A faia está a dar bagas. É todos os anos a mesma coisa. A gente também, qualquer dia, começa a criar baguinhas… E a mão certa de Teresa encaminhou a minha, hesitante, para os mistérios de uma suera encarnada» (Costa, 1978: 18).

amorosa. Enquanto vigorosa, a faia serve de «templo»15, cenário e testemunha da paixão juvenil, integrando um espaço idílico, que estimula a força de Eros. Porém, após a partida de Teresa para os Estados Unidos, seduzida pela miragem do sonho americano e suas promessas de abundância, a árvore fica seca, «sem dar satisfações à chuva, à terra, ao vento, às outras árvores. […] Não há a fazer senão pô-la a cozer pão» (1978: 26). Esta imagem poética reflecte, nitidamente, o fim da relação, a decepção amorosa, sentida pelo narrador, e a passagem definitiva de criança para adulto, à custa de algum sofrimento. Situando-se no presente e assumindo-se como escritor, o narrador adulto recebe uma carta de Teresa, que lhe pede que lhe envie algumas flores da faia, o que mostra que o passado na ilha e os tempos de menina, apesar de irremediavelmente perdidos no tempo, ainda estão bem presentes no seu pensamento e deixam uma profunda saudade. A faia é, precisamente, um elemento que conecta o narrador e a personagem feminina ao universo a que pertenciam, personificando momentos significativos do seu trajecto vivencial.

Em «O Gibicas», o narrador elege, novamente, um elemento em particular, no seu percurso existencial, desta vez uma figura, um companheiro de infância, cuja alcunha corresponde ao título do conto e com quem mantém uma ligação afectiva e cúmplice. Apesar de amigos e de colegas de turma, há um nítido contraste entre o narrador e o Gibicas, quer no tipo de conhecimentos que possuem, quer no estatuto social. Assim, cada um representa um diferente tipo de saber: o saber institucional e o saber prático, respectivamente. Para o narrador, o segundo tem mais valor, pois é aquele que se aprende vivendo, em contacto com a realidade do dia-a-dia e com os mistérios que presidem à vida. Por isso, afirma que, na sua infância/adolescência, teve dois professores: o da escola, que lhe ensinava as matérias e impunha a disciplina, e o Gibicas, apontado como o «Mestre», o «professor de Vitalogia»16. Uma das principais matérias ministradas pelo Gibicas é, precisamente, o processo da fecundação e da reprodução. É com um certo

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«Aquela faia-da-terra, para Teresa, a mais moça, era a modos que um templo: ficava horas desfiadas, nos galhos empoleirada, rodando nos dedos as bagas amarelas, os cabelos adornados das flores brancas e cheirosas, numa liturgia primaveril e pagã que alentava a vida e animava a terra. E há a música. Pois ele é lá possível que pense Teresa e a faia sem música!... Não albornei no ouvido nenhuma melodia, não. O silêncio marcava-as, ambas e duas. Mas talvez o vento, as folhas que se mexiam, sei lá, os pios do melro preto ou do tentilhão… De certo, posso dar fiança, que, música, havia-a» (ibidem: 16).

16 «Quero entrementes esclarecer que na escola do Alto das Covas tive dois professores. Um conferia os meus conhecimentos em matérias mais ou menos abstractas – História, Geografia… as lições de cor, a leitura, as cópias, os ditados e os números. Competente e mantenedor da disciplina, esse era o que tinha o título e os louros de mestre insigne, respeitado nas cãs, descontados que forem os calzinhos no botequim do Lourinho mal assomavam na ladeira do chafariz os primeiros nabiças de São Mateus. O outro era o que tinha vida para dar e ensinar. Esse, o Gibicas» (ibidem: 132-133).

humorismo que o narrador relata os vários momentos em que ele e os companheiros vão desvendando a sexualidade e o corpo, mediante os ensinamentos desse colega mais sábio, que representa o mundo natural, a crítica ao estabelecido, a irreverência, a insubmissão, a rebeldia juvenil perante o mundo das convenções, da hipocrisia e das aparências, que a Igreja e a escola ajudam a perpetuar.

No que diz respeito às diferenças sociais, o narrador vive no seio de uma família sem preocupações financeiras e goza de uma grande variedade de brinquedos, ao passo que o Gibicas necessita de mendigar e trabalhar para ajudar a família, manifestando uma profunda preocupação e revolta face ao despedimento do pai, vítima de injustiças alheias. O narrador admite que, na adolescência, não compreendia a vida difícil do amigo. Só mais tarde, as memórias do vivido permitiram-lhe depositar sobre o passado a compreensão posterior do seu significado que, embora pudesse ter sido pressentido, só depois se apreendeu. Por isso, o acto da escrita é uma forma de avaliar as suas atitudes e pensamentos nesse período e de se redimir. Há, portanto, uma filosofia orientadora da narrativa, pois as imagens da infância feliz vão além dos factos, implicando, igualmente, valores e uma determinada visão do mundo, alicerçada no questionamento do mundo exterior e interior.

O lado crítico do olhar infantil que percorre estes dois contos de Vasco Pereira da Costa manifesta-se, também, na visão da América. Contrariamente aos escritores analisados anteriormente, esse olhar põe em causa a visão da América como um paraíso, associado à abundância, à felicidade e à concretização dos sonhos. Como vimos, Teresa, do conto anterior, deixa-se enredar por essas miragens e abandona a terra natal, especialmente a faia que ela tanto amava, para enveredar por uma vida, no estrangeiro, pautada pelo trabalho árduo, longe da natureza e atormentada pela saudade da ilha. Em «O Gibicas», os americanos da Base Aérea iludem o pai do rapaz com promessas de trabalho fixo, levando-o a abandonar o emprego de anos, para depois o despedirem, após cinco meses, uma situação que causa profunda revolta no Gibicas, que, diante do professor, do padre e dos americanos, manifesta aberta e ousadamente a sua posição. O fascínio e a admiração pela América são, por conseguinte, postos em causa nestes contos, que mostram o outro lado da realidade, o lado menos positivo, que associa o país à desilusão e fracasso dos sonhos.

3.5 CRISTÓVÃO DE AGUIAR: O VALOR AFECTIVO DAS ORIGENS E A