• Nenhum resultado encontrado

2. Espaço idílico

2.1 A paisagem rural: luz e cor

Como referimos, seguindo uma tendência do final do século XIX que sobrevaloriza a vida campestre, estes autores praticaram o conto rústico, uma narrativa curta que apresenta uma visão idílica e utópica do campo, oposta ao mundo citadino. Esta idealização do campo enquadra-se num «realismo sadio» ou «naturalismo purificado», que desviou a atenção dos leitores para as pequenas comunidades rurais, com as suas figuras típicas e com os seus acontecimentos rotineiros. Os referidos teóricos explicam os motivos deste interesse pelo ambiente da aldeia e por histórias simples da vida rural:

Por um lado, os tipos e as pequenas intrigas da aldeia ou de vila eram mais acessíveis ao horizonte de consciência do público português do que os problemas mais complexos da vida urbana; por outro lado, perante as condições próprias da vida urbana em desenvolvimento, da burocratização, da centralização administrativa, etc., muitos escritores reagiam idealizando um sucedâneo da velha tradição bucólica onde as relações

2 Ao lermos estes contos, facilmente nos apercebemos de que eles são atravessados por várias dualidades. Uma delas é, como referimos, cidade / campo, apesar de a maior parte se localizar em espaço rural. Os espaços urbanos servem, na sua maioria, para evidenciar as qualidades do campo. Contos como «Um crime», «O meu Carnaval» e «Velho Carnaval», de Rodrigo Guerra; «A boneca» e «O “Adeus” de Schubert», de Florêncio Terra, mostram a cidade como um espaço de tragédia humana, onde dominam a pobreza, a doença, o desespero e a violência. Contudo, o espaço rural não é completamente alheio à desgraça humana, o que nos leva a outra dualidade: visão idílica da vida / tragédia humana. Embora predomine a idealização do viver campesino, alguns textos localizados em espaço rural são cenário de acontecimentos fatídicos, como, por exemplo, «O feitor», «Baleia à vista», «Uma jazida», de Rodrigo Guerra; «A derradeira notícia», «Honra antiga», «Melindre doloroso», «Página escura», de Nunes da Rosa; «A varinha» e «A aposta», de Florêncio Terra, textos onde vigoram a tristeza, o sofrimento, a morte, a maldade, o ódio, a miséria, a exploração dos mais fracos, como contraponto à alegria, à solidariedade, à felicidade e à celebração do amor predominantes nestas obras em geral. Em suma, podemos dizer que esta escrita é feita de dualidades, mostrando uma junção de realismo e idealização, de descrição minuciosa e elogio emocional do campo. No mundo rural, tanto os sentimentos negativos como os positivos surgem como uma parte natural do homem, moldado de acordo com o meio em que vive e com a educação que teve.

humanas aparecessem menos deformantes e mais espontâneas. (Saraiva/Lopes, 1992: 937)

Para apresentar uma perspectiva idealizada do espaço, torna-se fundamental usar todos os recursos e capacidades expressivas da língua, com vista a uma expansão textual. Por isso, apesar de nos situarmos no âmbito do conto literário, em muitos destes textos verifica-se o predomínio da descrição sobre a narração. Aliás, a importância do espaço num texto mantém uma relação directa com a descrição e com o relevo que esta lhe concede. Assim, para dar conta dos pormenores de uma paisagem idílica e bucólica, os momentos descritivos assumem, nesta escrita, sobretudo na de Rodrigo Guerra3, um carácter particular, revelando a influência de um movimento das artes plásticas, nomeadamente da pintura: o impressionismo. Embora mantenham temas do realismo, os impressionistas não pretendem fazer a denúncia social. A sua maior preocupação é apreender o instante em que a acção está a acontecer, criando novas formas de captar a luz, as cores e o movimento. Daí a designação de «impressionismo», que surge desta tentativa de obter a impressão do momento. Tal como os impressionistas, Rodrigo Guerra propõe-se a registar as tonalidades que as paisagens e os objectos adquirem, num determinado momento, sob efeito da luz solar. Por isso, a luz e as cores revestem-se de uma grande importância. Urbano Bettencourt desenvolve este assunto num artigo sobre a escrita deste contista, referindo:

A própria escrita denuncia o uso que faz do código pictórico, «colando-se» a ele (ou ao seu sucedâneo, a fotografia […]). Este sentido da paisagem, do cenário exterior, a utilização do pormenor, explorado até à dimensão ínfima, o sentido da gradação da luz e da tonalidade da cor, têm o seu contraponto pictórico na técnica impressionista da fragmentação da mancha, na paixão da cor e da luz do «décor» onde as personagens se dissolvem. (Bettencourt, 1987: 53)

3 Discutindo o papel da descrição na escrita de Rodrigo Guerra, Urbano Bettencourt afirma: «Esta atracção pelo abismo da descrição minuciosa […] se constitui, por um lado, uma perdição do sentido, não deixa de representar, por outro lado, a “verdadeira concepção de artista que se entretivesse a desenhar paisagens só para gozo do espírito”, instituindo de alguma forma a modernidade de uma escrita que a si mesma se anuncia (e denuncia) como um lugar de prazer. E simultaneamente com isso introduz a grande parte do “tipicamente local”, do regional (na mais sadia acepção do termo) que, mesmo sem esgotarem o sentido da ficção e sem constituírem sequer a leitura prioritária a fazer, não poderão deixar de ser tidos em conta» («Rodrigo Guerra: Alguns olhares», in Onésimo Teotónio Almeida (Dir.), Da Literatura Açoriana: Subsídios para um Balanço, Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1987, p. 53).

Rodrigo Guerra explicita, nos próprios textos, que a paisagem rural assume os contornos de um quadro impressionista, sobretudo devido à vivacidade e às variações da cor, aproximando, desta forma, as duas artes – a literatura e a pintura:

Lá fora, por entre as paredinhas, por entre o verde-claro das vinhas, vêem-se mover cores vistosas, como se fantasioso paisagista se entretivesse a espalhar tintas sobre aqueles campos. Era o vestuário alegre das moçoilas a ver-se aqui e além […], acentuando-se depois nos seus variados tons: saias azuis com barras amarelas, casabeques de chita clara pintalgados de vários matizes […], e por aí adiante, toda a pintura fantástica de um impressionista. (Guerra, 1980: 68)

Repare-se como o escritor capta a tonalidade da cor ao pintar com palavras um verdadeiro quadro impressionista, no conto «O pote de água»:

Em cima, no balcão do «senhor morgado», via-se todo o campo de vinhas alargar- se numa doida alegria de tonalidades luminosas, subir para o lado da montanha até esmorecer no tom mais escuro do arvoredo, descer para o lado do mar até se avivar num azul de turquezas, - pedra preciosa engastando-se no oiro de toda a paisagem… Mais além, aninhada sobre tapetes de verdura, era casta e noiva a aldeia que o sol vestia de branco, e que, ali, naquela manhã, com a sua casaria e a única torre da sua pequenina igreja a subir para o ar azul, silenciosa na distância, rodeada de árvores e de vinhas, toda se enchia de sonho, - do vago sonho das coisas que se sonham e que se não realizam. (Guerra, 1980: 51 e 52)

Neste excerto, nota-se, claramente, a importância do olhar e do ponto de vista (balcão do senhor morgado), que se detém minuciosamente nos pormenores e nas cores. Apesar de esta paisagem idílica se localizar na ilha do Pico e possuir características nitidamente específicas (a montanha e as vinhas), o autor atribui-lhe um carácter utópico, ao envolvê-la num ambiente de sonho, dada a perfeição e a harmonia que ela transmite. Contudo, o desenlace do conto, que retrata a desilusão amorosa e o abandono da protagonista por parte do filho do morgado, sugere a ideia de não concretização dos sonhos.

Uma das cores que surgem com frequência nos momentos descritivos é o dourado, que traduz um dos efeitos da luz sobre a paisagem, sobretudo quando o Sol nasce e começa a iluminar todo o espaço. No conto «A Americana», do mesmo autor, o despontar da luz na clara madrugada envolve a paisagem em tons dourados, assim como o cabelo da protagonista, que é, igualmente, da cor do ouro. Trata-se de uma cor associada à ideia de perfeição e que contribui para instituir a idealização do espaço campesino e da própria personagem feminina.

Em Contos e Narrativas, de Florêncio Terra, os efeitos da luz e a cor são elementos constantemente usados na descrição do mundo rural. Nos contos «A volta da pesca», «A debulha» e «Tua, tua, mas a casar», o autor descreve minuciosamente a paisagem, desde a madrugada até ao entardecer, dando-nos a ideia de passagem do tempo através do relevo concedido aos efeitos do Sol, considerado como fonte de vida, como um elemento imprescindível para o trabalho na terra e, através de um processo de personificação, como um amigo. Num discurso metafórico, vemos como o Sol começa a iluminar toda a paisagem, que, deste modo, ganha vida:

[…] o sol nascendo por detrás do Pico, piscando no dorso da montanha as suas agulhetas de oiro, e vindo por ali abaixo iluminar aqui, acolá, montes, arvoredos, moínhos e casinholas brancas; enquanto do outro lado, o mar alongava a sua folha estanhada, com barcos de pesca parados juntos dos Ilhéus cheios de luz; e, distante, o Faial, espreguiçando-se sôbre as águas, sorri na frescura rosada da casaria da cidade. (Terra, 1942: 40)

O excerto mostra como a incidência da luz é uma forma de valorizar os objectos. Além de fazer uma descrição panorâmica do espaço, o autor atribui características humanas à própria ilha, que, ao despertar com os primeiros raios de luz, se mostra satisfeita e sorridente perante o trabalho bem executado por parte do Astro-rei. Noutro conto, a atribuição de traços humanos à ilha do Pico e ao próprio Sol revela uma profunda harmonia na natureza:

O sol, a este tempo, andava já dourando para o nascente e um feixe de projecção dos seus raios resvalava lá em cima pelo cume nevoso do Pico, como um afago àquela

cabeça branca. Eram fins de Março e o cimo da montanha, bem coberto de gelo, alvejava iluminado do primeiro beijo do sol. (ibidem: 130)

Em vários momentos, nota-se o recurso a sinestesias, que traduzem o encantamento sensorial que a natureza provoca. Com efeito, estes autores procuram reter não só impressões visuais, mas também auditivas, tácteis e olfactivas. No seguinte exemplo, retirado de «Os ninhos» (Água de Verão: Contos e Narrativas), de Florêncio Terra, a observação da paisagem provoca, no narrador participante, uma combinação ou fusão de percepções sensoriais: «[…] na estrada que lá segue de Sto. Amaro dos Flamengos, passavam chiando os lentos carrões de lavoura. Sobre esse som áspero, que a distância ameigava, trinavam cantos de pássaros, em preparo de se empoleirarem nos laranjais floridos que à minha beira derramavam no ar puro o seu branco perfume de noivados» (1987: 32).

Destes três autores, Nunes da Rosa é quem revela uma maior economia narrativa e uma descrição mais condensada, aspectos que denotam uma maior aproximação à estética contística. Porém, tal como os outros, serve-se dos momentos descritivos para captar os traços locais, elogiando, ao mesmo tempo, o campo e as suas qualidades, como a simplicidade, a tranquilidade, a harmonia e a comunhão com a natureza. O predomínio da descrição sobre a narração implica, obviamente, uma secundarização da história face a uma expansão textual, que revela uma tentativa de aproveitamento das capacidades expressivas da língua.