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O Livro de Linhagens do Conde D Pedro

2.6 A IDEIA DE LINHAGEM

A proposição de um confronto entre os acima referidos conjuntos de textos surge em função das não poucas referências ao tema linhagem e mesmo a “livros de linhagem” feitas pelos cronistas de Avis. Não só em Fernão Lopes as encontramos: em Zurara também são frequentes e algumas podem ser encontradas na prosa doutrinária do rei D. Duarte. Peter Russel170, uma respeitável referência nos estudos historiográficos sobre Fernão Lopes e um pioneiro na investigação das fontes das quais este teria se utilizado para a produção de suas três primeiras crônicas, afirma não duvidar de que os livros de linhagem eram do conhecimento do cronista de Avis, embora não nos dê referências à fonte de que se serviu para basear tal afirmação. Tampouco, neste sentido, nos acrescenta João Gouveia Monteiro, autor do que talvez seja o melhor sumário acerca da trajetória do cronista, do ambiente cultural no qual se formou, bem como da procedência das fontes nas quais teria se baseado para compor sua obra171: Monteiro avaliza o estudo de Russel, dizendo apenas que, “apesar de velhinho”, continua a ser o “únicoestudo sério” sobre o assunto172.

170

RUSSEL, Peter E. As Fontes de Fernão Lopes. Coimbra: Editora Coimbra, 1941, p. 15.

171 MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes: Texto e Contexto. Coimbra: Livraria Minerva, 1988. 172 MONTEIRO, João Gouveia. Op. Cit., p. 102, nota 76.

Dentre as muitas referências à linhagem encontradas temos na Crônica de D. Pedro

I173 a relacionada à condição de vassalagem. Fernão Lopes afirma que

Naquel tempo nom se costumava seer vassalo, se nom filho, e neto ou bisneto de fidalgo de linhagem; e por husança aviam estonçe a contia que ora chamam maravidiis darse no berço, logo que o filho do fidalgo naçia, e a outro nenhum nom174.

Ainda nesta mesma crônica frisa-se a associação do termo a uma localidade: por ocasião das guerras de D. Fernando contra Castela, Henrique de Trastâmara vai à Galiza e, cercando o poderoso Fernando de Castro, em Lugo, que tinha voz por Pedro, o Cruel, com quem disputava o trono, tenta negociar com o fidalgo desta linhagem galega com a promessa de que a

[...] Villa de Castro de Exarez, domde seu linhagem se chamava de Castro, e ele comde depois que lha el Rei Dom Pedro dera, e que em este tempo nom se fezesse guerra dhuma parte aa outra175.

A particularidade da descrição acima põe em evidência, na expressão domde seu

linhagem se chamava de Castro, a vinculação do termo à um local. Os Castro, juntamente

com linhagens como a dos Lara e de Biscaya (Haro), são linhagens que figurariam, mais tarde, entre os chamados “grandes de Espanha” 176; linhagens de longa tradição e cuja presença em território ibérico remontaria ao tempo da antiga nobreza condal, que, então, rivalizavam com os reis no centro do jogo político. Os Castro sempre foram aliados fundamentais com os quais os poderes régios quase sempre se alinhavam. Trata-se, portanto, de uma referência na qual Lopes mostra não ignorar a memória de seu enraizamento a um local específico. O título XI do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, foi onde, muito provavelmente, o cronista colheu esta informação sobre a linhagem. O fragmento de texto dispõe a informação de forma um tanto distinta. Fala-nos, significativamente, da existência de um “primeiro” [...] que sabemos houve nome o conde dom Goterre” 177

. Entronca-os com uma geração seguinte, fazendo-os colaterais do mais notório dos nobres ibéricos, Rui Diaz de

173 LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, Oitavos Rei destes Regnos, Introdução de Damião Peres, Porto: Livraria Civilização Editora, 1965.

174

Ibidem, p. 8.

175LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, Oitavos Rei destes Regnos, Introdução de Damião Peres, Porto: Livraria Civilização Editora, 1965, p. 188-189.

176 FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1921, p. 104.

177 BARCELOS, Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, tit. XI, fol. 64, In: MATTOSO, José. (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores, v. II/1, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p. 163.

Bivar, o Cid: fala-nos de um D. Álvaro Fernandes,primo do Cid, que “teve Castro Xarez d’el rei em terra, e havia i ũu solar daqueles donde decendia//que fora do conde dom Goterre, chamou-se porem de Castro, porque era conde e fidalgo assaz.” 178.

O texto é significativo pela forma como dá sequencia aos fatos dispondo-os sintaticamente na frase. Vale repetir: “teve Castro Xarez d’el rei em terra”, mas lá existia um “primeiro” e um “solar daqueles donde decendia” 179

. Esta é uma variante de informação que fará diferença entre a obra do Conde D. Pedro e os mencionados escritos de Avis, pela forma como outros termos gravitam em torno do vocábulo linhagem e correlatos, tendendo a configurar um campo semântico característico.

Na Crônica de D. Fernando180, contamos onze menções ao termo linhagem. Na

Crônica de D. Pedro I181, são três menções. Já na Crônica de D. João I182, são quatorze. O terceiro capítulo do Livro I da Crônica do Conde D. Pedro de Meneses, de Gomes Eanes de Zurara, cronista do rei D. Afonso V, legítimo sucessor de D. Duarte, não se refere especificamente ao termo, mas a um correlato. Trata-se de um capítulo que se intitula “Capitullo terceiro no quall o autor desta obra declara as avoemgas de que deçemde o comde dom Pedro e as virtudes e bos costumes que nelle ouve” 183

. Contudo num capítulo adiante, o de número VIII, fala-se em “lynhagem”, termo próximo ao qual se avizinha o termo “virtudes” 184

.

No Livro dos Conselhos del-Rey D. Duarte, encontramos, na famosa carta de Bruges, enviada a D. Duarte, o futuro rei, pelo seu irmão, o infante D. Pedro, uma menção associada a um elemento que aponta para uma outra órbita na qual o termo gravita: o Infante D. Pedro, dentre os conselhos que ofereceu ao irmão, o rei D. Duarte, figura um como remédio para os vários males que a ele afligiam e ao reino. Um deles é o de não tomar

[...] sob uosa ordenança [...] gente senon aaquela que uos era compridoira e que abastadamente podieis governar e os que [....] fossem homens fidalgos e de bom linhaJem/ e da outra somenos nan fosse posta em este grao nenhũ, saluo por algũ estremado serujço que fizesse, e asy se teria

178 Ibidem, p. 163. 179

Ibidem, p. 163.

180 LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Fernando, Nono Rei Destes Regnos, Introd. por Salvador Dias Arnault, Porto: Livraria Civilização Editora, 1966, p. 10; 26; 33; 154; 171; 176; 211; 215; 271; 273; 391. 181 LOPES, Fernão. Crônica do Senhor Rei Dom Pedro, Oitavo Rei Destes Regnos. Introd. por Damião Peres, Porto: Livraria Civilização Editora, 1965, pp. 8 (2); 189.

182 LOPES, Fernão. Crônica DelRei Dom João I, da Boa Memória. Partes I e II, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973/1968, Parte I, p. 11; 55; 56; 297; 298; 299; 308; 309 (2); 328; 369; Parte II, pp. 19; 283 e 359.

183

ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do Conde D. Pedro de Meneses. ed. Maria Teresa Brocardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1997, p.182.

cada hũ por contente de serujr o que lhe pertençe185

.

No Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda a Sela186, se faz menção ao termo, associado à expressão “prática das virtudes”, e às “boas manhas do corpo” 187. Aconselhando os “senhores e outra gente manceba” a quem tais “manhas” convém, diz que devem considerar que

Seus corpos som assy como suas herdades, as quaaes, se nom forem bem aproveitadas e lavradas, daróm de sua natureza spinhos e cardos e outras ervas de pouco valor [...] e se [...] leixados em ouciosidade, nom se despoendo a boas sciencias ou boas manhas corporaes ou mesteres, segundo a cada hũus perteecem, soom tornados assy sem proveito que mereciam de ser dados de sesmaria a outros, que como servos os fizessem servir e fazer algũa cousa proveitosa segundo seus stados e desposiçom [...] E pera tirar tal erro, os moços de boa lynhagem e criados em tal casa que se possa fazer, devem ser enssynados logo de começo a ler e a escrever e a falar latym, contynuando boos livros per latym e linguagem de boo encamynhamento per vyda virtuosa188.

O quadro esboçado pelos exemplos acima parece-nos suficiente para os consideramos como um testemunho seguro acerca da permanência da preocupação com o tema como questão integrante do discurso cortesão dominante. As diferenças que atingem a nobreza em função dos problemas de identidade que a confrontaçãocom eladisputam espaço político e social impõe diferenciações e hierarquizações.

O que desta forma está no centro de nosso interesse é a dimensão histórica subjacente às diferentes proposituras que representam ambos os grupos de textos que tomamos como fontes. Eles apontam para um embate que se manifesta através da presença de formas

literárias189 distintas de que a nobreza se utilizou no curso de sua trajetória histórica para

apreensão do mundo em que vivia. Eles correspondem a formas de representação de seus ideais de mundo, em diferentes períodos da História medieval portuguesa. O que se expressa pelo uso na linguagem por gestos verbais 190 que instituem tais formas e dão uma dimensão

185 Carta que o Jfante dom Pedro emujou a el rey de Brujas. Escrita em 1426. In: PORTUGAL, Duarte de. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Lisboa: Imprensa Universitária Editorial Estampa, 1982, p. 37.

186 PORTUGAL, Duarte de. Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela, que fez ElRey dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta. ed. Joseph Piel. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. 187

Ibidem, p. 119.

188 PORTUGAL, Duarte de. Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela, que fez ElRey dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta. ed. Joseph Piel. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 120. [itálicos nossos].

189

Cf. JOLLES, André. Formas Simples. Legenda, Saga, Mito, Advinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 28

narrativa a construção de suas identidades.

Quando aqui falamos em construção de uma ordem do mundo, em instrumentos de inteligibilidade do mesmo, em cosmovisão, visão de mundo e correlatos, estamos querendo dizer que, em última instância, o que se ilustra por um significativo exemplo que Jolles nos fornece sobre este aspecto, sustentando que

Para compreender o universo, é necessário que o homem mergulhe, que o sonde, que reduza – de um modo ou de outro – a infinita quantidade de seus fenômenos, que intervenha nele para realizar uma seleção. O homem e o universo lembram-nos a história daquela jovem que recebeu a incumbência de separar corretamente, durante a noite, uma pilha enorme de grãos de toda a espécie. A sequência da história é conhecida: pássaros e insetos amigos vieram acudir à jovem, o trabalho começou e, ao mesmo tempo em que a pilha, onde era impossível distinguir alguma coisa, ia-se transformando numa porção de pilhas menores e identificáveis, os grãos de cada uma destas novas pilhas eram valorizados e postos em evidência. Os elementos imprecisos de uma grande confusão adquiriam então o caráter específico e tornaram-se eles mesmos, uma vez reunidos aos seus semelhantes. Quando o sol se levanta e o seu poder mágico se manifesta, o caos torna-se um cosmo. O homem intervém na confusão do universo; aprofunda, reduz, congrega; reúne os elementos conexos, separa, divide, decompõe e repõe o essencial em pequenas ilhas. As diferenças ampliam-se, o equívoco é eliminado ou então devolvido à univocidade. Pelo desenvolvimento da explicação e o cerceamento da classificação, chega-se, pois, às formas fundamentais191. O texto do Conde D. Pedro está, enquanto discurso, longe de portar a heterogeneidade que lhe atribuem seus estudiosos, e muito menos de ser a figuração do caos. Sua componente genealógica não o reduz à condição de artefato cartorial passível de atestar a verdade de laços de parentesco e garantia de sucessão de um legado simbólico, material e imaterial de um grupo social. Ele é um texto objeto de uma performance pública, objeto de culto. Mostra-nos sob a perspectiva de um olhar Outro, o recontro de um universo pagão embebido em elementos de forte referência ao universo cristão que, é aliás, o que leitmotiv que habilita esta nobreza a postular-se como legítima detentora das prerrogativas que reivindica. É sobre a égide do ideal de combate ao inimigo de fé que erige a legitimidade de tais pretensões. É por “andar a la guerra a filhar o reino de Portugal” que se postula como ocupante do topo de escala social e reivindica privilégios. O comportamento violento não é objeto de uma condenação nestes textos. Seu uso é um atributo e medida do poder de um fidalgo. Para o discurso de Avis, contudo, é algo eivado pelo destempero que é mister “dar corregimento” e “ordenamento”; deve ser reorientado para um determinado fim, o “serviço de Deus”, do rei e

191 Cf. JOLLES, André. Formas Simples. Legenda, Saga, Mito, Advinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 28-29.

do “reino”.

Pelos comportamentos e sentimentos que põem em cena ambos os grupos de texto, revelam-nos dois repertórios simbólicos distintos com os quais se investe o mundo de valor. Produzem um repertório simbólico com o qual classificam e hierarquizam protagonistas e suas ações. Tal ordenamento é portador de sentido. Os sentimentos e comportamentos decantados no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro serão invariavelmente aqueles que a Prosa de Avis reunirá sobre a “pilha” a que atribui ao rol dos “sentimentos desordenados”.

Assim, cada vez que a linguagem participa na construção do mundo, cada vez que intervém para vinculá-lo, alterá-lo ou remodelá-lo segundo uma ordem, estamos diante da constituição de formas de expressão literárias, que invariavelmente se caracaterizam por lançar mão de recursos poéticos de um determinado tempo, capazes de garantir eficácia da mensagem a ser transmitida.

Capítulo III