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RELAÇÕES COM OS LIVROS DE LINHAGEM ANTERIORES

O Livro de Linhagens do Conde D Pedro

2.2 RELAÇÕES COM OS LIVROS DE LINHAGEM ANTERIORES

O texto do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, segundo a crítica, utiliza-se de registros genealógicos de obras anteriores – o Livro Velho e o Livro do Deão, que integram

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MATTOSO, José, Os Livros de Linhagens Portugueses e a Literatura Genealógica Europeia da Idade Média, In: MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 50.

também a seção Scriptores dos Portugaliae Monumenta Historica, mas não se constitui em um simples acréscimo a estes. O espírito que motivou cada um dos textos que o antecederam são de índole diversa, embora o vigor do gênero se explique por um contexto mais amplo de afirmação dos ideais identitários de um grupo. Não há, pois, uma dependência do Livro de

Linhagens do Conde D. Pedro em relação aos mais antigos. A este propósito, Álvaro Julio da

Costa Pimpão nos diz que:

Os monumentos da idade média que chegaram até nós acerca da origem das famílias nobres podem na verdade considerar-se como constituindo um livro único, o primitivo registo da nobreza sucessivamente acrescentado e alterado, mas podem também considerar-se como obras diversas de origem comum, tendo os autores mais modernos aproveitado em maior ou menor escala os trabalhos dos seus antecessores87.

Os livros de linhagens portugueses mais antigos são produzidos entre os anos 1270- 1350 em função do surgimento de um súbito interesse pelo tema advindo de um vigoroso processo de senhorialização sobre o conjunto da sociedade – o qual, em suas linhas gerais, descrevemos no capítulo anterior.

Dentro do conjunto dos livros de linhagem portugueses, o mais antigo e que inaugura o período áureo da literatura genealógica portuguesa é o Livro Velho de Linhagens, composto de nove páginas compactas dos Portugaliae Monumenta Historica. Conserva em seu prólogo um texto precioso, no sentido da transparência quanto às intenções do autor. A. Botelho da Costa Veiga foi o investigador que melhor estudou sua cronologia e a ele atribuiu a data de 127088. Pizarro apresenta pequena diferença em relação à esta datação: os anos entre 1282/6- 9089. O Livro Velho de Linhagens foi escrito por um monge de Santo Tirso a serviço de Gil Martim Riba de Vizela, representante da família Maia por linha feminina, e poderoso fidalgo cuja trajetória é marcada pela exposição às intempéries políticas da corte de D. Dinis. No seu texto se exalta a antiguidade da família Sousa, à qual se liga, celebrando-a por sua aura mítica prolongada pelas posteriores obras genealógicas. Nele encontramos um grupo de 691 nobres distribuídos por 175 famílias, e é apontado como o mais fidedigno dentre os três livros de linhagem portugueses. Afirmação para a qual, ainda segundo J. A de Souto Mayor Pizarro,

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PIMPÃO, A. J. da Costa. História da Literatura Portuguesa, I, Coimbra: Atlântida, 1947, p. 255.

88 MATTOSO, José. Os Livros de Linhagens Portugueses e a Literatura Genealógica Europeia da Idade Média, In: MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 47.

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PIZARRO, A. J. Sotto Mayor. Linhagens Medievais Portuguesas: Genealogias e Estratégias, 1279-1325. Vol. I, Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, 1999, p. 136.

seriam necessários estudos comparativos mais rigorosos e sistemáticos, feitos com o apoio de outra documentação diplomática90.

O segundo deles é o Livro de Linhagens do Deão. Sua redação atribui-se a limites que estão, segundo o autor supracitado, entre 1337 a 1343 – hipótese que se apoia na presença de determinados relatos nele contidos, bem como na ausência de alguns outros que, se estima, estariam presentes caso os fatos que retratava fossem contemporâneos à sua escrita. Segundo Mattoso91, sua data se pode fixar antes de 1343, por volta de 1337-40.

O Livro do Deão propõe tratar a descendência de 30 nobres que o texto situa no reinado de Afonso VI de Leão e Castela. Só desenvolve a análise de 23, referindo-se a 1663 nobres e a 423 famílias. É um texto que prima pelo rigor na identificação de membros do clero92. Os indivíduos que nele figuram vivem no fim do reinado de D. Dinis e início do de seu sucessor, seu filho, D. Afonso IV, período em que se deu o desfecho da chamada guerra civil de 1319-1324, marcado por disputas que, já a partir do reinado de D. Afonso III, pai do rei Lavrador, mostravam um poder régio avançando de forma vigorosa sobre as tradicionais prerrogativas de poder da nobreza93.

No que respeita a procedência da matéria narrativa de que se compõe o Livro de

Linhagens do Conde D. Pedro, as questões se fazem bastante complexas94. São narrativas de fundo mítico que derivam, muitas vezes, de versões cujos temas se encontram em outras partes do continente; romances e canções de gesta; narrativas históricas, lendas e anedotas. No que tange às relações com a chamada matéria genealógica, têm feição mais simples: o Livro

de Linhagens do Conde D. Pedro depende parcialmente do Livro Velho e do Livro do Deão –

o primeiro lhe teria deixado mais vestígios do que o segundo95. Diego Catalán Menendez Pidal, contudo, propõe inverter esta relação, afirmando o Livro do Deão como o modelo mais imediato da matéria genealógica do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, não o Livro

Velho96.

90 Ibidem. p. 137.

91 MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa – A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 47.

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PIZARRO, A. J. Sotto Mayor. Linhagens Medievais Portuguesas: Genealogias e Estratégias, 1279-1325. Vol. I, Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, 1999, p. 138.

93 MATTOSO, José, A Guerra Civil de 1319-1324. In: Separata de Estudos de História de Portugal, Séculos X-XV. Vol. I, Homenagem a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Editorial Estampa, 1982, p. 161-176.

94 Cf. MATTOSO, José. As Fontes do Nobiliário do Conde D. Pedro, In: A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 78-59.

95 MATTOSO, José, Os Livros de Linhagens Portugueses e a Literatura Genealógica Européia da Idade Média, In: Op. Cit., p. 60.

96 Cf. MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, In: MATTOSO, José. (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica. v. II/1, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p. 41-50; MENENDEZ

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro é o terceiro e indiscutivelmente considerado o mais importante e completo dos três livros de linhagens medievais portugueses97. Juntamente com os outros dois livros de linhagem, distingue-se singularmente no panorama europeu e até peninsular98. Seu estudo é marcado por uma longa trajetória, e algumas de suas partes estão ainda por explorar, um trabalho que Mattoso aponta como cheio de dificuldades, mas indica as diretrizes e os primeiros passos a serem dados em comentários sobre o estado da questão99. A trajetória de seu estudo é marcada por um debate que envolve mais de um século na história da cultura medieval portuguesa. É um texto que levanta múltiplos e intrincados problemas, como o de sua autoria e datação100. Costa Veiga101 deu grande contribuição com estudos que permitiram, por exemplo, esclarecer acerca de interpolações na transição do texto da Biblioteca da Ajuda para o da torre do Torre do Tombo, e elementos neste último que permitiram identificar outra refundição de que foi objeto, estabelecendo que nenhuma de suas versões contém o texto original. Este autor, em cujo trabalho de pesquisa Luís Filipe Lindley Cintra baseia-se, dialoga com argumentos provenientes do trabalho de Alexandre Herculano, e reforça, com o concurso de alguns outros elementos, que o texto foi objeto de duas significativas manipulações no decorrer do século em que foi redigido, o século XIV102.

Alguns autores, como Carolina de Michaëlis, não sem as devidas ressalvas quanto às intervenções sofridas pelo original, inclinavam-se a atribuir uma intervenção mais significativa do Conde D. Pedro na elaboração do seu Nobiliário. E diziam-nas coerentes com o apelo de seu autor primitivo: “que os vindouros completassem suas notícias”. Em relação aos textos dos quais partiu, a autora diz que houve omissões e acrescentamentos, piadas mal contadas ou mal-intencionadas, mas nada que permitisse duvidar de que o Nobiliário tivesse primitivamente saído de sua lavra103.

PIDAL, Diego Catalán. De Afonso X al Conde de Barcelos. Cuatro estúdios sobre el nacimiento de la historiografia romance em Castilla y Portugal. Madrid: Editorial Gredos,1962, p. 357-408.

97 MATTOSO, José. Os Livros de Linhagem Portugueses e a Literatura Genealógica Européia da Idade Média, In: Op. Cit., p. 48.

98 Ibidem, p. 44. 99

MATTOSO, José. As Fontes do Nobiliário do Conde D. Pedro, In: MATTOSO. José. Op. Cit., p. 57-100. 100 Cf. CINTRA, Luís Filipe Lindley, Crônica Geral de Espanha de 1344, v. 1, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. CLXXII.

101 VEIGA, Costa. Os nossos Nobiliários Medievais (Alguns elementos para a cronologia da sua elaboração). Separata dos Anais das Bibliotecas e Arquivos, Lisboa, 1943, p. 25-27.

102 Cf. CINTRA, Luís Filipe Lindley, Crônica Geral de Espanha de 1344, v. 1, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. CLXXIV-CLXXV.

103 Cf. MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Geschichte der Portugiesischen Litteratur. In: GRÖEBER, G. Grundriss der Romanischen Philologie, II, Strassburg: Karl J. Trübner,,1893; apud CINTRA, Luís Filipe Lindley, Crônica Geral de Espanha de 1344, v. 1, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. CLXXVII, nota 148.

Autores como Gonzaga de Azevedo tentaram, segundo Cintra104, afastar definitivamente a hipótese das sucessivas refundições do texto primitivo, reivindicando para o Conde a primazia que lhe coube na compilação da obra que lhe é atribuída. O mérito de Gonzaga Azevedo foi chamar atenção para o plano e intenções diversas que animaram os diferentes autores na redação dos três nobiliários portugueses mais conhecidos, em oposição a Herculano, que os reduziu todos a um único registro público da nobreza.

Uma vez que não pretendemos traçar uma panorâmica completa do conjunto dos problemas que incidiram sobre o trabalho de crítica que pautou a edição de 1980, nossa intenção aqui é ressaltar a dimensão e complexidade que encerra a obra do Conde D. Pedro quanto ao trabalho de crítica que implica e justifica a notoriedade que alcançou no quadro das fontes existentes para a História Medieval portuguesa.

Nosso propósito é, ao mesmo tempo, a de realizar uma breve descrição de uma fração do conjunto destes problemas para se despertar a consciência da precariedade da base sobre a qual, muitas vezes, se constrói o trabalho do historiador – e que não o faz menos fascinante por isso. Trata-se de uma tentativa de fazer algo sobre o que bem aconselhou Michel de Certeau: não se omitir o lugar de onde se fala105 – no caso, das espinhosas e às vezes insolúveis questões que colocam o texto do Conde D. Pedro como um emocionante ponto de apoio movediço.

Assim, fazendo eco ao que acima citamos de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Cintra afirma, em relação ao texto do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, que: “Não se trata, como pensou Herculano, da redação de um único registro da nobreza que foi sofrendo sucessivas refundições, mas sim da redação de vários registros independentes, com espírito e intenção diversas.” 106. O que não quer dizer que o texto não incorpore elementos resultantes do trabalho dos antecessores, como aliás era o costume dos historiadores medievais. Pretende- se afirmar, tão somente, que se tratava de iniciativas independentes, de obras distintas e não de simples atualizações ou emendas introduzidas numa mesma obra.