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RELAÇÕES COM A LITERATURA DO NORTE EUROPEU

O Livro de Linhagens do Conde D Pedro

2.3 RELAÇÕES COM A LITERATURA DO NORTE EUROPEU

104Cf. AZEVEDO, Gonzaga de. História de Portugal, v. IV. Lisboa: Bíblion, 1943, p. 293-311

105 CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 45-111.

106 CINTRA, Luís Filipe Lindley, Crônica Geral de Espanha de 1344, v. 1, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. CLXXXI.

A leitura de uma bibliografia especializada possibilita-nos seguir a trilha de relações que os críticos dos livros de linhagem portugueses afirmam manterem com a literatura e as sociedades do norte europeu. Quando tomamos contato com os estudos que visam o conjunto de fontes nas quais se funda a literatura genealógica ibérica, vemos afirmarem proceder de regiões de cultura céltica ou germânica. Aproveitam-se para ressaltar o gosto que a literatura genealógica mais antiga, irlandesa, por exemplo, tem por enumerar membros de um clã. Tais textos também seriam originados nas cortes dos reis anglo-saxões, visigóticos, lombardos, merovíngios e, mais tarde, carolíngios. Reputam como raras ou inexistentes tais influências em regiões onde persistiram tradições romanas, e que, portanto, não dependem dos exemplos que o texto bíblico podia fornecer à Europa107. Como adiante iremos apontar, tais opções levaram a que os críticos desta literatura resvalassem para uma dada vertente de interpretação sobre as origens da sociedade hispânica.

Leopold Genicot, por outro lado, e de forma significativa e surpreendente, afirma que as genealogias compuseram “um gênero menor na Idade Média” 108. Tratam-se de textos pouco numerosos, curtos, estereotipados, portadores de um estilo “seco” e “monótono”. Ao que, de ordinário, se atribui o pouco interesse que despertaram na historiografia contemporânea. Até os idos dos anos setenta do século XX, exerciam pouca atração para a disciplina histórica, que as olhava como matéria cheia de tentações e armadilhas, fazendo com que o desdém e a desconfiança sobre eles recaíssem, pois que há tempos se sabia serem matéria textual objeto de altos índices de manipulação109.

Segundo Victor Turner110, é bastante provável que o apego à vida de caráter local, à ideia de contrato, de honra e vergonha, a instituições como a família, o parentesco, o clã e laços de sangue de que tratam as sagas, correspondam em grande medida a realidades vividas pelos grupos que protagonizaram o processo de colonização da Islândia entre os séculos VIII e X, descrito pelo conjunto de textos que compõem as sagas. Foi no seio de tais sociedades que se originaram primitivamente a partir de relatos orais.

André Jolles, afirma que estas mesmas características são as que estão no cerne da vida social, que a partir de determinados gestos verbais, constrói uma dada ordem do mundo e cuja cuja presença se pode detectar nas formas literárias simples descritas e classificadas

107 MATTOSO, José. Os Livros de Linhagens Portugueses e a Literatura Genealógica Europeia da Idade Média. In: A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 39.

108 GENICOT, Leopold. Les Génealogies – Typologie des Sources du Moyen Âge.15, Turnhout, 1975, apud. MATTOSO, José, Os Livros de Linhagens Portugueses e a Literatura Genealógica Europeia da Idade Média. In: A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 38.

109

Ibidem, p. 44. 110

TURNER, Victor, Approach to the Iceland Saga, In: TURNER, Edith (Ed.). On the Edge of the Bush, Anthorpology as Experience, Tucson: University of Arizona Press, 1985, p. 71-93.

como sagas111. Somado ao que aponta Paul Zumthor, em relação ao peso e ao papel

desempenhado pela que designa como a [...] memória das antigas sagas [...].112, elemento predominante, segundo este autor, na composição de narrativas presentes nas práticas

escriturais dos textos que se compilaram no decorrer do processo de introdução da escritura cristã no Ocidente medieval113, somos conduzidos a afirmar que as sagas são o testemunho do significado que tiveram tais instituições e crenças para as sociedade do Ocidente num espaço de tempo de longa duração; e o que nos parece, ainda, bastante compatível com o que Marx indica nas suas Formações Econômicas Pré-Capitalistas, a respeito das questões da escala em que se organiza a vida social nas sociedades germânicas que se disseminaram pelo Ocidente a partir das grandes migrações. Trata-se da tendência ao predomínio do caráter de autossuficiência a que se viu submetido o Ocidente alto medieval em decorrência do movimento de atrofia urbana e profunda ruralização da sociedade decorrento do gradual declínio da escravidão e da sociedade romana. No seu centro está o interesse de uma vida no qual predomina o caráter local, a valorização da família, do parentesco, da linhagem, do clã, das ideias de honra e vergonha, de vitória em combate de conquista. Trata-se da eleição por uma sociedade de práticas, valores e instituições como símbolos e espaços preferenciais de constituição de solidariedades114, e, portanto, de construção de coesão social.

Nossa perspectiva de abordagem se constrói com base em tais proposições. Desenvolve-se a partir da percepção de que é neste conjunto de culturas à norte, do chamado Ocidente medieval, que, a despeito de diferenças, os grupos dominantes da nobreza penínsular irão produzir um discurso acerca de traços comuns de civilização que se desenvolveram entre os séculos VI e IX, e que são fortemente marcadas por um caráter tribal, por uma vida de escala local, guerreira, nas quais se cultiva o interesse em dar a conhecer as famílias suas gerações ou um conjunto delas. No mundo Ocidental de além pirineus tais costumes e valores teriam como testemunho e encontrariam sua expressão mais cristalizada nestas formas simples

literárias115 que a “literatura” medieval ibérica tomará da tradição escrita para fazer-se

herdeira de tradições de sociedades, cujo exemplo mais acabado são as sagas. As instituições, os costumes e os valores destas são o tema dominante no Livro de Linhagens do Conde D.

Pedro. Esta obra do filho bastardo do rei D. Dinis constitui-se numa manifestação histórica na

111 JOLLES, André. Formas Simples - Legenda, Saga, Mito, Advinha, Ditado, Caso, Memorável, Conte, Chiste, São Paulo: Editora Cultrix, 1976, p. 60-82.

112 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz, A “Literatura” Medieval, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 30.

113 Ibidem, p.30. [itálicos nossos]. 114

Cf. MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 76. 115

JOLLES, André. Formas Simples, Legenda, Saga, Mito, Advinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. São Paulo: Editora Cultrix, 1976, passim.

qual tais formas se atualizam como uma produção cultural de resistência à expansão poderes régios, da emergência de novos atores sociais na esteira de novas dimensões de escala que adquirem a vida política e social na península ibérica em função de sua inserção no movimento de expansão da sociedade medieval europeia e que adquire sua feição mais dramática na crise de meados dos séculos XIV, tempo no qual o Conde D. Pedro produz esta sua compilação.

A hipótese da procedência de tais influências se confirma quando se observa o gosto que a literatura genealógica norte europeia mais antiga, irlandesa, tem por enumerar membros de um clã. Há numerosas manifestações de influências celtas detectadas no norte de Portugal e na Galiza, pelas quais os etnólogos galegos têm interesse em seu estudo até a contemporaneidade116. Pierre David117 aponta para características célticas, ainda pouco estudadas, do monarquismo galego dos séculos VI e VII e a influência de penitenciais irlandeses na Galiza durante a Reconquista. Fala igualmente da existência de colônias bretãs na Galiza, da presença de seus bispos e da existência de mosteiros próprios, não faltando, ao que parece, elementos que confirmam as hipóteses sobre a influência do gênero literário na península.

Ainda em reforço da hipótese da existência de relações entre o gênero literário genealógico proveniente do norte europeu e as regiões meridionais, tem-se que Navarra é o terreno de eleição da literatura genealógica. É onde aparece um dos mais antigos textos genealógicos europeus, o chamado Códice de Roda, durante o século X. Menéndez Pidal ressalta a existência de frequentes contatos de Navarra com as Ilhas Britânicas. É lá que, também, por volta do ano de 1200, um monge beneditino do mosteiro de Fitero redige o Liber

Regum ou Chronicon Villarense118, que se julga ser a principal fonte a partir da qual, através de uma sua versão, também navarra – o Libro de las Generaciones –, o Conde D. Pedro retirou os elementos para a produção do seu nobiliário119. Sem contar ainda, em relação a outras localidades da península, que Menendez y Pelayo diz em Orígenes de la Novela, que na Galiza e em Portugal “encontraron los cuentos bretones segunda pátria” 120

.

Outra janela de observação para as mesmas influências na obra do Conde D. Pedro

116 Cf. MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 54-55.

117

DAVID, Pierre. Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VIº au XIIº Siécle, Paris: Bulletim Hispanique, tome 50-2, 1948, p. 195-198.

118 Cf. MATTOSO, José. Op. Cit., p. 40-41.

119 Cf. MENENDEZ PIDAL, Diego Catalán. De Alfonso X al Conde de Barcelos, Madrid: Editorial Gredos, 1962, p. 355-408; MENENDEZ PIDAL, Diego Catalán y SOLEDAD ANDRÉS, Maria (Ed.) Cronica General de España de 1344, v. I, Madrid: Editorial Gredos, 1970; também MATTOSO, José. Op. Cit., p. 41.

tem-se na trajetória da discussão acerca do seu título II, que acima apenas indicamos a propósito de aspectos outros. Carolina de Michäelis, William Entwiste e Luis Cardim, personagens intelectuais de expressão na História da Cultura portuguesa e hispânica, interrogavam sobre a origem da matéria na qual se teria inspirado o Conde para descrever as primeiras gerações de reis, desde os patriarcas bíblicos que, no referido título, falava dos reis da antiguidade clássica e dos reis bretãos. O problema das fontes através das quais o Conde D. Pedro teria tomado conhecimento da literatura arturiana intrigava os autores. Parecia necessário “elucidar” tal elo. William Entwistle, por exemplo, julgou ser proveniente da

História Regum Britanniae de Godfredo de Monmouth, e da continuação de Lancelote em

prosa. Luís Cardim teria concluído que, além delas, o Conde absorvera do Polychronicon de

Hidgen o Bruto e, sobretudo, da Gesta dos Bretões de Wace121.

Tem-se ainda como testemunho de tais influências, a presença de elementos e temas comuns que se observam nos relatos de fundo lendário e mítico. Se tomarmos alguns trechos da matéria que compõe o mito de Diego Lopez e a Dama do Pé de Cabra e o das origens dos Marinho, há mesmo semelhanças nominais de pessoas com um mito muito espalhado na Idade Média – no caso, aquele que tem sua versão mais conhecida no conto de Mélusine que, em França, narra a origem dos Lusignan – conto estudado por Jacques LeGoff122 em 1971, o qual encontrou versões mais antigas em obras inglesas do fim do século XII e em outra de princípios do XIII. Mito que depois teve larga difusão na França, até chegar ao conhecido “Roman de Mélusine” no fim do século XIV123

.

Acrescenta-se ainda que ao dossiê reunido por Le Goff se soma um conto medieval islandês bastante semelhante124, que pelo tema confirma sua origem céltica. Refere-se ao pormenor anatômico do pé-de-cabra, o qual se atribui, também, a algumas versões da lenda de Salomão, que já mostrava ter sido influenciada, na versão da Biscaya, por elementos mediterrânicos, e – o que surpreende – apontados como transmitidos através de países eslavos e germânicos125. Isto nos dá uma dimensão das possibilidades espaciais às quais os críticos

121 MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 59.

122 LE GOFF, Jacques, Mélusine maternelle et défricheuse. Le dossier medieval. In: Annales, E. S. C. 26, 1971, p. 587-594, apud, MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa – A Família e o Poder. Lisboa: EditorialEstampa, 1987, p. 78-79.

123

Ibidem, p. 78-79.

124 Cf. TUBACK, F. C. Index exemplorum. A Handbook of Medieval Religious Tales. Helsinki: Suomalainen Tiedeakatemia, 1969, p. 79, nº 978; apud MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa – A Família e o Poder. Lisboa: EditorialEstampa,1987, p. 79.

125

Cf. PIDAL, Ramon Menéndez. En Torno a “Miragaia” de Garret.In: Biblos, n° 20, 1944, p. 63-66; apud MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa, A Família e o Poder. Lisboa: EditorialEstampa, 1987, p. 79.

recorrem para o estabelecimento de comunicações que irão “atestar” parte do legado do qual se postulam como herdeiros os grupos dominantes das elites senhoriais ibéricas.

Em reforço ao já dito, soma-se a presença de uma versão navarra do Liber Regum, o

Libro de las Generaciones, onde se observa a presença de elementos presentes nas crônicas

universais de Pelágio de Oviedo, do século XII, e de Lucas de Tuy, do século XIII126. Trazendo a marca fundamental da presença e influência de tradições da cultura cristã, sobre as quais o universo guerreiro e cruzado ibérico ao qual se ligam as elites feudais ibéricas forja o mais básico de sua identidade: o texto do Conde se inicia com todas as casas reais veterotestamentárias, babilônicas, persas e greco-romanas. Só após a afirmação de sua inequívoca identidade associada ao universo cristão, se acrescentam as tradições bretãs, navarras, castelhanas e biscainhas, às quais reservam cerca de um terço da obra, vindo a terminar com a descrição de famílias portuguesas. As cento e dez páginas restantes dos

Scriptores descrevem o que se supõe ser a maioria das famílias da aristocracia nobre

portuguesa.