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O LIVRO DE LINHAGENS DO CONDE D PEDRO COMO DOCUMENTO

O Livro de Linhagens do Conde D Pedro

2.1 O LIVRO DE LINHAGENS DO CONDE D PEDRO COMO DOCUMENTO

No presente capítulo, faremos algumas considerações acerca do Livro de Linhagens do

Conde D. Pedro enquanto fonte no âmbito da historiografia medieval portuguesa, e de sua

importância para nossas escolhas de abordagem. Nossa intenção é, também, dar ao leitor uma panorâmica em linhas gerais da ordem de complexidade envolvida em seus estudos com vistas ao estabelecimento do texto, bem como considerar questões que suscitam seus críticos quando o apontam como um documento, em última instância, tributário de tradições textuais norte europeias que teriam impresso o que há de mais significativo em seu caráter como texto representante da visão de mundo de um grupo social, a nobreza.

A edição do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro utilizada na presente pesquisa foi empreendida pelo editor atendendo as exigências de filólogos e historiadores por uma versão que lhes proporcionasse acesso a um documento que se estimasse mais utilizável66. Para Mattoso não existe uma edição mais correta, nem muito menos crítica, atributo do qual declina por não considerar ter reunido desta feita as condições necessárias para tal pretensão. Muito ainda haveria de se fazer, e sua intenção foi oferecer um texto que julgou em melhores condições de utilização. O que atribui ao fato de que Alexandre Herculano, em sua primeira compilação para edição impressa na seção Scriptores, dos Portugaliae Monumenta Historica, lançado nas primeiras décadas do século XIX , não teria se dado ao trabalho de comparar o

66 MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, In: MATTOSO, José. (Ed.) Portugaliae Monumenta Historica. v. II/1, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p. 8

manuscrito da Torre do Tombo e o fragmento da Biblioteca da Ajuda, com uma série de outros manuscritos existentes, julgando-os como os únicos de valor, quando em realidade nele haviam numerosos erros, lacunas e deturpações67.

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro é considerado a mais célebre fonte da história medieval portuguesa68. Honrando a reputação que lhe conferem, a edição empreendida em 1980 por ocasião do II Centenário da Academia de Ciências de Lisboa, foi produzida após consultado um considerável número de catálogos impressos e fichários de bibliotecas de Lisboa, nos quais se constatou a existência de aproximadamente sessenta manuscritos, e alguns resumos e adaptações, distribuídos entre bibliotecas de localidades europeias como Barcelona, Madrid, Hamburgo, Viena, Londres, Nápoles, Paris, Vaticano, Veneza, Vincennes.

Além dos encontrados em instituições de Lisboa, constatou-se a presença de outro exemplar em Washington, D.C., EUA69. Uma presença que, afinal, nos parece mais do que desencorajar possíveis negativas que atestem sua pujante circulação; o que se pode ilustrar com o “agravante” ibérico, apontado por Fr. Francisco Brandão, que na sua Monarquia Lusitana fala-nos de um texto “[...] tão vulgarizado por toda Espanha que a poucos curiosos falta nas livrarias” 70

.

Os originais do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro são datados de cerca de meados do século XIV. Em 1640, João Baptista Lavanha produziu uma edição impressa, da qual existe uma tradução castelhana de 164671. Morales e Zurita o anotaram e comentaram. Outros tentaram atualizá-lo com gerações posteriores ao século XV72. Sua excelência é reconhecida por Salazar y Castro, que o toma como uma das principais fontes para as listas que exibe no seu Glórias da Casa Farnese, do século XVII73 - obra sistematicamente citada por Anselmo Braamcamp Freire nos seus Brasões da Sala de Sintra74, e à qual dá preferência em casos de dúvida.

67

Ibidem, p. 9. 68 Ibidem, p. 7.

69 MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica. v. II, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p. 9-30.

70

BRANDÃO, Fr. Francisco, Monarquia Lusitana, V, liv. XVII, cap. B, fols, 182v-183.

71 LAVANHA, J. Batista de. Nobiliário de D. Pedro conde de Barcelos hijo del Rey D. Dionis de Portugal ordenado y ilustrado con notas y indices por Iuan Bautista Lavaña coronista mayor de reyno de Portugal. Em Roma. Por Estevam Paolinio, MDCXL, apud MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 28.

72 MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 7.

73 SALAZAR Y CASTRO, Glórias de la Casa Farnese, apud FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra, I. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1921, p.104.

74 FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra, I. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1921, p.104.

Esta obra figura no cenário do gênero genealógico português, juntamente com outros dois livros de linhagens mais importantes: o Livro Velho de Linhagens e o Livro do Deão, com os quais ocupam cerca de dois terços do imenso volume Scriptores, que compõe uma das quatro seções dos Portugaliae Monumenta Historica75 – primeira coletânea de documentos medievais portugueses anteriores a Fernão Lopes, compilada por Alexandre Herculano e, depois, continuada por outros colaboradores entre datas que se estendem entre 1856 a 1917.

O texto que serviu de base para a edição de 1980 é o que existe numa versão duplamente refundida76 – entre 1360-65 e 1380-138377 – em cujo centro concentram-se as mais destacadas questões de crítica. Não deve ser confundido com a versão que se fez a partir dos manuscritos mais conhecidos: o chamado Fragmento da Ajuda, a que os Scriptores atribuíram o título de Livro III das Linhagens, caracterizado pela narrativa da Batalha do Salado; e o manuscrito completo da Torre do Tombo, que serviu de base à mesma seção, produzida por Alexandre Herculano.

Nossa hipótese é a de que há sincronias a serem observadas e descritas em pormenor adiante, que nos parecem conferir significação a um conjunto de elementos elucidativos quanto ao sentido do texto. Parece-nos da maior importância que se atente para a datação dos manuscritos utilizados como base para a edição de 198078 do Livro de Linhagens do Conde D.

Pedro. Foram encontrados sessenta manuscritos por José Mattoso, sete foram selecionados

como base para um estudo comparativo. Dentre estes, e estabelecidas as relações, Mattoso elege para sua edição os que mais se aproximam dos originais do século XIV: o manuscrito do Palácio da Ajuda- ao qual atribui a sigla A1 - o chamado Nobiliário da Ajuda, ou do

Colégio de Nobres; o manuscrito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com a sigla T1,

Casa Forte; e o manuscrito da Academia de Ciências, sigla C79.

Tem-se assim o primeiro datado por Herculano como de fins do século XIV ou inícios do XV; o segundo e o terceiro de fins do século XV e princípios do século XVI80. No texto

75 As demais denominam-se Leges et Consuetudines, Diplomata et Chartae e Inquisitiones.

76 Uma refundição é uma tentativa de reconstituição dos originais de um texto antigo através de fragmentos de várias procedências. No caso do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, tem-se acréscimos a um conjunto que se atribui como o original, cuja autoria se discute se ainda é do Conde D. Pedro ou de autores que o emendaram e modificaram num período posterior. Cf. MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica. v. II/1, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p. 41-51.

77

Para como se chegou a tais datas, Ibidem, p. 41-47. 78 Ibidem, p. 9-12.

79 Manuscritos que, adiante, serão representados no corpo do texto pelas siglas acima apontadas.

80 Para o processo de seleção dos manuscritos e escolhas para o estabelecimento da base para a referida edição, ver: MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José. (Ed.). Op. Cit., p. 9-50, onde o leitor encontrará uma descrição minuciosa das características e do estado em que se encontravam. Especificamente para a datação dos mais utilizados, ver p. 34-35.

que nos oferece, Mattoso tenta uma reconstituição da refundição de 1380-1383 a partir dos manuscritos acima indicados. Não segue nenhum deles à risca, mas dá preferência a A1 e, em

seguida, a T1, que lhe permitem aproximar-se, pelas variantes que apresentam, das formas

mais arcaicas que se atribuem como mais próximas aos originais81.

O texto do Conde de Barcelos é, pelo que se sabe, a base sobre a qual se assenta grande parte das genealogias portuguesas da época moderna. É a ele que Anselmo Braamcamp Freire sempre dá preferência e recorre para validar as informações constantes do seu Brasões da Sala de Sintra82; é um dos pilares sobre os quais Salazar y Castro edificou seu trabalho no século XVII, época de eleição das genealogias, e tempo no qual se concentram maior número de cópias83.

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro ocupa 160 páginas in folio dos Portugaliae

Monumenta Historica dentro do seu segundo volume, os Scriptores. Esta fonte nos chega em

duas refundições: uma primeira é datada de 1360-65 e a segunda, de 1380-1383. Na versão que utilizamos compõe-se de um prólogo e 76 títulos, nos quais são referidos 4738 nomes e 776 famílias nobres. Outros nobiliários foram publicados posteriormente, mas sem utilidade para o período anterior ao século XV. E a mais completa pesquisa genealógica sobre o período do reinado de D. Dinis (1279-1324) afirma não saber até que ponto as informações nestes últimos contidas são confiáveis84.

Trata-se do mais completo dentre os três livros de linhagem portugueses existentes e uma das mais importantes fontes do gênero em todo o Ocidente europeu. Alexandre Herculano transcreveu o chamado Fragmento da Ajuda e o manuscrito da Torre do Tombo, e, segundo os críticos, não teria feito qualquer tentativa de tornar mais claro o compacto texto, nem para corrigir o que se aponta como numerosos erros, lacunas e confusões que apresentava85. A edição de 1980, da Academia de Ciências de Lisboa, realizada por José Mattoso, veio atender ao apelo de filólogos e historiadores da Literatura portuguesa por uma edição em condições de melhor aproveitamento, dada a redescoberta do interesse literário por

81 Cf. Ibidem, p. 52. 82

FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra. 3 vols. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1921.

83 Cf. MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José. (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica. v. II/1, Lisboa: Academia de Ciências, 1980, p.12. Das sessenta cópias listadas pelo editor, trinta e oito são do século XVII. Os de D. Luis de Salazar Y Castro são os da coleção com seu nome, ms. C- 9 e R-59 da Real Academia de la Historia de Madrid.

84 Cf. PIZARRO, J. A Sotto Mayor. Linhagens Medievais Portuguesas: Genealogias e Estratégias, 1279- 1325. Vol. I, Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, 1999, p.139.

85 Cf. MATTOSO, José. Introdução ao Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 7.

narrativas tais como a da batalha do Salado, da Dama-pé-de-Cabra e as que versam sobre a formação do solar de Lara.

Deve-se aqui ainda fazer-se referência ao contexto no qual se produz a primeira edição de Herculano. Este autor o integra aos Portugaliae Monumenta Historica, produzido no contexto que o faz contemporâneo de seu homônimo germânico, os Monumenta Historica

Germaniae, produzido no contexto de surgimento da História como disciplina científica na

Europa do século XIX, da qual toma, igualmente, a também homônima designação de uma das seções em que se divide esta sua congênere alemã – os Scriptores.

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro é escrito em galego-português. Comparado

ao resto do que em geral se denomina como produção historiográfica portuguesa anterior ao fim do século XIV, o texto da seção Scriptores, somado à Crônica Geral de 1344, compõe quase a metade. Tais fatos vêm em reforço do que se afirma acerca da singularidade desta obra: não há, proveniente da Europa cristã, um documento genealógico tão completo e da estatura do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, 3º Conde de Barcelos. Ele demonstra uma pujança literária ainda acentuada pelo contraste com a decadência do gênero no restante do continente à época em que foi produzido. Ao que ainda se soma o fato de ter sido produzido numa região meridional europeia. Em tese, segundo Mattoso, mais ligada às tradições e à civilização romanas - 86 o que, por sua vez, cala sobre possíveis influências advindas de afinidades que se sabe ter a sociedade árabe com as genealogias. Era preciso acentuar sua iniciativa como infensa às influências da cultura adversa e proclamá-las oriundas do legado da Antiguidade clássica, cristã e cavalheiresca bárbara. Daí porque os críticos procurassem acentuar as ligações que fazem do Livro de Linhagens uma obra mais tributária de tradições oriundas do norte europeu, de raízes germânicas, célticas e, mais especificamente, visigóticas. Ao que se acrescentaria componente mediterrânica com o recurso às tradições greco-romanas e cristãs.