• Nenhum resultado encontrado

O universo nobiliárquico no Livro de Linhagens

5.3 A IDEIA DO SAGRADO

Outro aspecto relevante no texto do Conde D. Pedro, e que exibe características que o fazem, a nosso ver, uma forma de atualização das sagas, é o espaço reservado à relação dos homens com o sagrado e com o sobrenatural de uma forma geral. Isto porque nele há, tal como em algumas daquelas, a adesão a um hibridismo que os faz oscilar entre elementos do universo cristão e pagão590. No Livro de Linhagens a expressão maior deste hibridismo é a lenda da Dama-pé-de-Cabra591. E é necessário atentar para estes aspectos, uma vez que se distinguem da forma tal como os observamos apresentarem-se nos textos com os quais fazem contraponto- os primeiros textos de Avis.

Mas não é sem referências ao Deus cristão que se abre o Prólogo do Livro de

Linhagens. A sua primeira frase é, a propósito:

Em nome de Deus que é fonte e padre d’amor, e porque este amor nom sobre nem ũua cousa de mal, porem servi-lo de coraçom é carreira real, e nem ũ melhor serviço nom pode o homem fazer que ama-lo de todo seu sem, e seu próximo como si mesmo, porque este precepto que Deus deu a Moisés na vedra lei [...] 592.

588

BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Tit. X, fol. 22, In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 149. ([itálicos nossos]).

589 Cf. ZUNTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 24.

590 Cf. TURNER, Victor. Approach to the Iceland Saga, In: On the Edge of the Bush, Arizona: University of Arizona Press, 1985, p. 80-81.

591 BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Tít. IX, fol. 36-37 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 138-141.

Há uma menção ao “serviço de Deus”, associada a uma citação de Aristóteles que diz “[...]que se os homẽes houvessem antre si amizade verdadeira nom haveriam mester reis nem justiças, ca amizade os faria viver seguramente em no serviço de Deus” 593. Tal amizade, segundo o Conde, seria necessária aos fidalgos”[...] por serem de ũu coraçom, de haverem de seguir os seus emmigos que som em estroimento da fe de Jesu Christo” 594

. Diz-se que “[...] mais nobre cousa é e mais santa amar o homem a seu parente alongado per dívedo, se bõo é, que amar ao mais chegado, se faleçudo é.” 595

; que o homem que apenas se dá conta da linhagem

[...] d’irmãos e primos coirmãos e segundos e terceiros. E dos quartos acima nom fazem conta. Estes taes erram a Deus e a si, ca o que tem parente no quinto ou sexto grão ou dali acima, se é de gram poder deve-o servir porque vem de seu sangue. E se é seu igual, deve-o d’ajudar. E se é mais pequeno que si deve de lhe fazer bem, e todos devem ser de ũu coraçom596.

No Título I, que trata “dos filhos que Adam houve e de sa geeraçom” 597 faz-se referência ao divino. No caso, ao Deus que libera o povo de Israel do cativeiro no Egito 598; a um tempo que se atribui distar dois mil, quatrocentos e oito anos, entre a criação do mundo e a morte de José. Fala-se do temor e destemor a Deus e de um tempo de vícios e pecados599; de alguns descendentes de Abraão; de que estes e seus reis adoraram ídolos e não serviram a Deus600; fala-se de homens que reinaram pecando contra Deus 601; ou de algum que, sendo rei, foi seu amigo, tal como Josias602; também, de outros que viveram e reinaram amando-o, servindo-o, contrariando-o ou temendo-o603, cometendo avarezas e maldades. Fala-se no

Nosso Senhor Deus, que incumbiu a Ciro, um persa, de reconstruir o Templo de Jerusalém604. Considerando-se a presença da expressão Deus num texto no qual incidem tantas outras próprias ao universo feudal - “parentesco” 605, “vassalo” 606, “fossado” 607, “linhagem”

593 Ibidem, Prólogo, fol. 1 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 56. [itálicos nossos]. 594

Ibidem, Prólogo, fol. 1 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 56. 595 Ibidem, Prólogo, fol. 1 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 56. 596 Ibidem, Prólogo, fol. 1 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 56-57. 597 Ibidem, Tít. I, fol. 2 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 59 598

Ibidem, Tít. I, fol. 3 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 62. 599

BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Tít. I, fol. 4, In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 64. 600 Ibidem, Tít. I, fol. 4 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 66

601

Ibidem, Tít. I, fol. 5, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 66. 602 Ibidem, Tít. I, fol. 5 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. cit., p. 66. 603 Ibidem, Tít. I, fols. 4-6, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 64- 68. 604 Ibidem, Tít. I, fol. 6 v.°, In: MATTOSO, Jos (Ed.). Op. Cit., p. 69 605

Ibidem, Tít. I, fol. 6 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 69: “de como Jeconias e seus irmãos e parentesco foi levado cativo à Babilônia”.

608, “privados” 609

- temos a presença do ente ligado ao domínio do divino que o texto define por por sua atribuição de zelar na Terra para o bom andamento deste tipo de relações. Há ainda que se ressaltar que por toda a extensão do texto não se faz qualquer referência a um indivíduo sem que se mencionem relações de parentesco que mantem com outrem. É por tal ordem de coisas no mundo que o Deus zela.

No Titulo II, que se estende por cerca de onze fólios, trata-se dos reis pagãos da Antiguidade greco-romana e bretã tardia, não há uma menção sequer ao termo Deus. O mesmo acontece em relação ao Titulo III, que fala dos reis da Pérsia, Roma e Godos, e onde o texto se refere à esfera do sagrado através de menções ao Cristo, a perseguição aos cristãos e sobre infiéis, que são termos afins na órbita de significações do campo das coisas ligadas ao divino.. Reforça-se os designativos de parentesco, e relações entre entes que povoam o universo feudal. Não nos esqueçamos de que Deus no Prólogo do texto é padre e senhor610.

O mesmo se estende ao Titulo IV, que trata dos reis de Castela. No Titulo V sobre os reis de Navarra, se fala de [...] Sancho Avarca[...] que [...] temeo muito Deus” 611.

Nos títulos que se seguem, de uma forma geral, estão ausentes as referências ao Deus, mas não passagens em que se observam imprecações ou rogos, que invocam ocasiões em que se apela ao ente supremo ou ao sobrenatural. Surgem esparsas, como quando, por exemplo, o texto nos fala do Deus, que deixa o destino arrebatar ao rei Afonso um tão bom vassalo como o Conde D. Forjaz Bermudez612, que, num significativo episódio, acabara por ficar cego em decorrência de um combate com homens de uma vila; ou quando D. Teresa, que pede que praza a Deus que o filho, Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, que a pusera a ferros depois do combate no qual vence a ela e ao padrasto, o Conde da Trava, quebre as pernas quando ela vier a lhe infligir o mesmo numa possível revanche.

À frente fala-se nas obras pias de Afonso Henriques e que acabou seus [...] grandes

607 Ibidem, fol. 4, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 63; tipo de expedição militar cuja finalidade é assalto e o saque aos campos e a seus frutos. Cf. VITERBO, Fr. Santa Rosa, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal Antigamente se Usaram e que Hoje Regularmente se Ignoram. Vol. II. Porto: Livraria Civilização, 1984, p. 282-283.

608 BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, fol. 4 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 65.

609

Ibidem, fol. 6, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 68; “levou Joachim cativo pera Babilônia e sa madre e seus privados e sas molheres”.

610 Ibidem, Prólogo, fol. 1, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 55.

611 BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Tít. V, fol. 25 v.°, In: MATTOSO, José Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 112.

feitos [...] a gram serviço de Deus” 613. Ressalta-se suas ações em cumprimento de suas obrigações para com o sagrado, tais como a construção da Igreja de São Vicente de Fora, o provimento de três mil marcos de ouro para que o “Espital de Sam Joham de Jerusalém” comprasse herdades para cuidar dos enfermos, e mercês a ordens monásticas.

Fala-se de um Deus que impede que as desgraças continuem a alastrar-se, como no breve relato sobre a matança havida entre os partidários do infante D. Afonso e do rei D. Dinis614. Deste rei se faz referência a que foi sepultado num mosteiro de monjas – o mosteiro de Odivelas – [...] que el mandou fazer” 615. Fala-se do infante Afonso como [...] nobre rei e muito teudo com Deus” 616

.

Todavia, o que reputamos como as narrativas que melhor sintetizam a relação que o texto propõe que tenham os fidalgos com o sagrado, e que dá a medida do que propagam sobre o que deve ser o comprometimento dos homens com a ordem divina, encontra-se na narrativa da Dama-pé-de-Cabra, já citada. E retomando-a para tratar do aspecto a que aqui se faz menção, cabe ressaltar a passagem relativa a quando ao D. Diego Lopez de Biscaya, seduzido pela figura da dama em questão [...] mui fermosa e mui bem vestida[...] que lhe dissera ser [...] ũua molher de muito alto linhagem [...], e ao que D. Diego lhe diz que se [...] pois era molher d’alto linhagem que se casaria com ela se ela quisesse, pois que era senhor daquela terra toda. E ela lhe disse que o faria se lhe prometesse que nunca se benzesse. E a dama, mulher descrita como [...] mui bem feita em todo o seu corpo, salvando que havia ũu pee forcado como pee de cabra [...] o aceitou e viveram por grande tempo juntos e tiveram dois filhos617. A exigência de que nunca se [...] santificasse [...], significa que nunca se benzesse ou de alguma forma invocasse a Deus. O pé forcado sugere que a dama é o diabo transfigurado. Por uma lógica de pressuposição, o texto coloca no centro das motivações a oposição entre sagrado e linhagem, e o desfecho em favor da prevalência dada ao critério linhagem para que se consumasse a união. A mensagem que a narrativa transmite é a de que tais alianças são aceitáveis quando se tem em vista aquilo que em mais alta conta se tem naquela sociedade: o nobre sangue proveniente de uma alta estirpe.

Outro episódio é o que confronta um anjo e Nuno Gonçalves de Alvalos. A este,

613

Ibidem, Tít. VII, fol. 31 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 127. 614 Ibidem, Tít. VII, fol. 33 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 131. 615 Ibidem, Tít. VII, fol. 33 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 131. 616 Ibidem, Tít. VII, fol. 33 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 131. 617

BARCELOS, Conde D. Pedro de. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Tít. IX, fol. 36-36 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Historica, II/1, Scriptores, Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa, 1980, p. 138-139.

apontado como [...] mui boo cristão [...] 618, e para que Deus tivesse por bem que sempre fosse vencedor nas batalhas, o anjo concede um desejo. Nuno louva a Deus pelas mercês que lhe fizera e pedia ao enviado dos céus a salvação para a sua alma. Ao que o anjo lhe diz que isto já lhe fora por Deus outorgado, desde que não insistisse em piores obras do que até ali fizera, mas “que pedisse al” 619

. Como se a salvação se tratasse de um bem menor. E Nuno, assim, lhe pede [...] que seu solar nunca fosse destroido”. E por isto, diz o texto, [...] cuidam os homẽes que o // solar de Lara nunca há de ser destroído” 620

. A mensagem dada pelo texto é a de que o rincão, a localidade – designativos em cujo campo semântico incorpora-se a noção de solar, espaço central da vida familiar – importa mais do que a salvação da alma, ali mostrada como que um bem já, de antemão, reservado às gentes de linhagem.

Entre os fólios 40 v° e 60 v°, não há nenhuma menção à palavra Deus. Ela ressurge num simples rogo em favor de que um ato conspiratório se cumpra em nome d’Ele621

. As referências ao campo do divino permanecem associadas a obras pias, aos benefícios com que a generosidade senhorial agracia os mosteiros para que cuidem da salvação das almas das gentes e de seus patronos.

Fala-se dos sacramentos como o batismo622, como expediente de conversão do infiel, e do elemento mouro que é sistematicamente construído como o inimigo contra quem cabe impiedosamente dar combate, lutar sem restrições. Assim, as menções ao sagrado se concentram de forma dominante na distinção de fé e estreitamente relacionadas à guerra contra o infiel. É este terreno do sagrado que é eleito pelo texto como lugar onde se concentra a ação e cuja performance investe os fidalgos daqueles atributos que os faz “boos”. Há um trecho da narrativa da Batalha do Salado, no qual o texto bem sintetiza a essência da relação dos homens com o sagrado, o sentido que em última instância dão a suas relações com esta esfera. Ele é invocado em benefício da fidalguia, em favor do que concerne ao benefício da linhagem, à descendência, tal como, a seguir, consigna o Titulo XXI:

Os Portugueses andavam per a lide ferindo e derribando, e diziam ũu contra outros: ‘Senhores, este é o nosso dia, em que havemos d’escrarecer, e este é do dia da vitória e da honra dos fidalgos. Este é o dia da salvaçom de nossas molheres e filhos e daqueles que de nós decenderem. E este é do dia em que havemos semelhar nossos avoos, que gaanharom a Espanha. Este é o dia da salvaçom das nossas almas; nom se perca hoje per nossa fraqueza.

618 Ibidem, Tít. X, fol. 40, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 149. 619 Ibidem, Tít. X, fol. 40, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 149. 620 Ibidem, Tít. X, fol. 40-40 v.°, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 149. 621

Ibidem, Tít. XXI, fol. 60, In: MATTOSO, José (Ed.). Op. Cit., p. 206. Trata-se da Lenda de Miragaya, narrativa de abertura do Titulo XXI.

Feiramo-los [aos mouros] de toda crueldade’ 623.

Aqui pensamos caber uma digressão em função de objeções que se possa contrapor ao que afirmamos acima acerca da funcionalidade do sagrado no Livro de Linhagens. Trata-se de que no Titulo XXI emerge um conjunto de termos que se destacam tanto por incomuns em relação ao que neste sentido predominam no texto como um todo, e pela frequência com que no referido título aparecem formando constelações distintas das até então observadas para o que tange às relações dos homens com o tema do sagrado. .

Trata-se de que, por consistir em uma parte do texto que se estima acrescentada tardiamente (c. 1380-83) 624 aos originais de meados do século XIV. Nela, às referências até então regulares, acrescentam-se outras que configuram novas constelações de termos que acabam por reconfigurar o lugar do sagrado. Algumas menções a Deus, à salvação, à

cristandade, associados a termos colocados no plural como cristãos, castelhanos e portugueses, reinos, naturais, trazem à cena entes que remetem a sujeitos coletivos. Algumas

destas expressões introduzem alterações de significação pela frequência com que aparecem, estabelecendo relações sintáticas distintas, perspectivando de uma forma qualitativamente e igualmente distinta as proposições relativas ao sagrado. Surgem associados ao combate ao infiel, ou mesmo combatendo entre si, termos como fidalgos portugueses ou fidalgos de

Portugal , fidalgos de Castela ou boos fidalgos vossos naturaes 625, vizinhanças sintáticas até então ausentes, tanto nos trechos de dominância do elemento narrativo, quanto no de dominância genealógica626.

Todavia, ressalte-se que mesmo a despeito de novas configurações dadas ao léxico em relação ao sagrado, a citação em destaque acima nos revela um sentido bastante marcado para a relação com o sagrado: ele deve ser cultivado em benefício do que diz respeito ao solar, à linhagem, à descendência.