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A ideia do labirinto em Borges, em Perec e na matemática

Uma das definições dadas pelos próprios oulipianos ao seu trabalho é a seguinte: ŖOulipianos: ratos que constroem o labirinto de que se propõem a sairŗ (OULIPO, 1973, p.32).201 Para Borges, Ŗo Labirinto e o Livro são, pois, uma sñ e mesma coisa. Mas são também outra coisa: o Universoŗ (MONEGAL, 1980, p.100). Esta é, assim, outra via de aproximação entre Perec e Borges, que em suas obras constroem labirintos e trabalham bastante com essa figura.

Muitos artigos e trabalhos importantes sobre labirintos na matemática foram escritos Pierre Rosenstiehl, matemático, especialista em teoria de grafos, diretor da École des Hautes études en sciences sociales, e que se tornou membro do OULIPO em 1992. Em artigos como ŖLabyrinthologie mathématiqueŗ (1971), ŖLes mots de labyrintheŗ (1980), ŖLe dodécadédale ou lřéloge de lřheuristiqueŗ (1982), Rosenstiehl discute os labirintos matematicamente, através da teoria de grafos. Além disso, aplica essa ideia a conceitos sociais e interdisciplinares. Pouco presente nos encontros, sua principal contribuição ao OULIPO, em conjunto com Jacques Jouet, foi o fornecimento do grafo de um circuito otimizado da rede de metrô parisiense, que pode ser encontrado na Biblioteca Oulipiana no 97.

200Ŗ[...] le monde a fini pour moi le jour où mon Nautilus sřest plongé pour la première fois sous les eaux. Ce jour-là, jřai acheté mes derniers volumes, mes dernières brochures, mes derniers journaux, et depuis lors je veux

croire que lřhumanité nřa plus ni pensé ni écritŗ.

Em ŖLabyrinthologie mathématiqueŗ, o matemático implementa um algoritmo para construir um grafo que visite ou cruze determinado ponto uma ou mais vezes. Essa situação é análoga à ideia de um táxi que visite todos os portões de Paris ou à de levar um carteiro de volta à central de distribuição. De acordo com Rosenstiehl, é necessário observar dois aspectos para encontrar a solução de um labirinto: o primeiro é descobrir a rota dentre as rotas possíveis do labirinto e retraçar o caminho encontrado; o segundo é definir os parâmetros de um autômato que possa construir esse caminho. Seu propósito é trabalhar o problema como se fosse uma árvore, utilizando a imagem do Ŗfio de Ariadneŗ para encontrar o caminho tomado pelo grafo. Já nos artigos ŖLes mots de labyrintheŗ e ŖLe dodécadédale ou lřéloge de lřheuristiqueŗ Ŕ apresentados no seminário de Roland Barthes sobre Labirintos como metáfora para a pesquisa interdisciplinar, no Collège de France –, Rosenstiehl propõe uma transposição do labirinto matemático para o campo das ciências sociais.

Um labirinto pode ser modalizado em várias dimensões, sendo os mais comuns aqueles em duas dimensões. Ele é uma superfície conexa que pode ser simples (FIG. 7A) ou ter anéis ou ilhas (FIG. 7B):

FIGURA 7: Superfícies A e B

As duas figuras não são topologicamente equivalentes e por isso conduzem a dois tipos de labirintos diferentes: os ditos perfeitos, onde um caminho único passa por todas as células; e os ditos imperfeitos, onde há ilhas inacessíveis que isolam algum caminho. Assim, podemos representar um labirinto como um grafo conforme a FIG.8:

FIGURA 8: Grafos A e B

A FIG. 8A apresenta um labirinto perfeito, onde a entrada está nas coordenadas (0,4) e a saída está em (5,4). O grafo da FIG. 8B, por outro lado, produz vários ramos, porém somente um deles leva à saída do labirinto.

Claude Berge, matemático e membro do OULIPO, utilizou também os grafos na literatura. Em seu romance policial Qui a tué le duc de Densmore (2000), a partir de oito narrações dos últimos personagens que viram o duque antes de sua morte Ŕ com a ajuda de um detetive da Scotland Yard, da teoria de grafos e da resolução do Teorema de Hajós Ŕ, o assassino é descoberto. Em La princesse aztèque (1983), transporta a ideia de um paradoxo geométrico conhecido como DeLand (GARDNER, 1966) para um soneto (OULIPO, 2000).

A solução e a criação de labirintos na matemática e na computação podem ser vistas como um contrainte, já que para sua construção é necessário seguir certas regras e restrições: esse labirinto deve conter uma entrada e uma saída e, conforme o desejo de seu construtor, pode apresentar vários caminhos e truques que dificultem sua solução. Na literatura, no entanto, a ideia do labirinto tanto pode ser metafórica Ŕ forma utilizada por Borges Ŕ quanto uma variante estrutural Ŕ forma utilizada por Perec.

A ideia do Livro Total em Borges Ŕ como um catálogo de catálogos infinitos, uma biblioteca de construção hexagonal, um livro de areia com infinitas páginas, um labirinto ou um mapa em tamanho real Ŕ pode ser relacionada à ideia de labirinto, que seria nesses casos, por exemplo, a possibilidade de se encontrar e se perder pelas páginas do livro, pelos hexágonos da biblioteca ou pelo mapa da cidade. O Livro Total conteria todo o conhecimento dessa biblioteca, fornecendo um caminho para a procura e busca de qualquer informação; porém, como num labirinto, esse livro total teria critérios de ordem ocultos. Como num grafo, vários são os ramos aos quais você pode chegar, de acordo com o caminho tomado e com o tempo de caminhada; algumas vezes, porém, o caminho não conduz à saída do labirinto.

Assim Borges constrói seu labirinto de Creta:

Labirinto

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto (BORGES, 1999m, p.488).

ŖO Labirintoŗ segue, assim, como um algoritmo, uma recorrência. A cada nova iteração,202 novas informações são a ele incorporadas. A estrutura também pode ser entendida como um grafo em forma de árvore: aqui, diferentemente dos outros labirintos que criou utilizando ficcionalmente os paradoxos, Borges segue a linha oulipiana, adotando uma forma labiríntica para a própria estrutura do texto. Contrastando com a estrutura linear de ŖO Labirintoŗ, temos ŖOs dois reis e os dois labirintosŗ:

Contam os homens dignos de fé (porém Alá sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu os seus arquitetos e magos e lhes mandou construir um labirinto tão complexo e sutil que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar nele, e os que nele entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são atitudes próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, chegou à corte um rei dos Árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até ao fim da tarde. Implorou então o socorro divino e encontrou a saída. Os seus lábios não pronunciaram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que tinha na Arábia um labirinto melhor e que, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou à Arábia, juntou os seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa fortuna que derrubou os seus castelos, dizimou os seus homens e fez cativo o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: ŖOh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia quiseste-me perder num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros

que te impeçam os passosŗ.

Depois, desatou-lhe as cordas e abandonou-o no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre (BORGES, 1998w, p.676).

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Termo usado na Ciência da Computação e na Matemática para se trabalhar com novos ciclos de procedimentos.

Se construíssemos um grafo para representar o deserto, esse terrível labirinto sem escadas, portas e galerias criado por Borges, a infinidade de caminhos, entradas e saídas nos levaria a um fracasso. Como representar todas as possibilidades de percursos de um deserto? Como a reta é formada por infinitos pontos, um plano Ŕ que poderia ser a imagem desse deserto Ŕ conteria infinitas retas e, por isso, infinitos caminhos. A solução para esse labirinto, pensando em algoritmos,203 seria seguir em alguma direção e, como Alice, caminhar o suficiente, se possível (o que no caso, não o foi).

Umberto Eco sintetiza a ideia do labirinto em três categorias: clássico, maneirista e rizomático (ECO, 1991). No clássico, através da construção do labirinto por Dédalo, é necessário descobrir e percorrer um só caminho para chegar ao centro, onde se encontra o perigo: o Minotauro. Através de um fio condutor que é concedido por Ariadne é possível encontrar novamente a saída. Diferentemente, o labirinto maneirístico apresenta uma série de escolhas e percursos que podem não levar a lugar algum: apenas um dos percursos leva à saída. Apesar de tentativa e erro estarem presentes e não haver um centro, existe uma única possibilidade de escape, de saída, do encontro da busca. Já o labirinto rizomático é estruturado em forma de rede; assim, não existem centro ou periferia. Não existe também a ideia de dentro e de fora. Um ponto estabelece relação com outros pontos e não existem linhas fixas, pois elas podem ser partidas e reconstruídas, de forma que um caminho pode se perfazer e ser virtual.

Na obra de Perec, a ideia de labirinto aparece estruturada em seus contraintes e também explicitamente nos livros Jeux intéressants, Nouveaux jeux intéressants e A vida modo de usar. Nos primeiros dois livros, encontramos palavras cruzadas e outros problemas que podem ser entendidos e resolvidos como grafos e labirintos. Em A vida modo de usar, o tabuleiro de xadrez de 100 casas Ŕ que representa um prédio e no qual os capítulos e seus romances se apresentam através do movimento do cavalo do xadrez Ŕ pode ser visto também como um labirinto. Nesse labirinto existe um Ŗfio de Ariadneŗ que liga todos os capítulos, mas que também, através de alguns dos contraintes utilizados, trapaceia, esconde e ludibria o leitor para a solução do puzzle de Bartlebooth, assim como em relação à descoberta do caminho para entrar e sair dos romances.

Borges, em ŖO jardim de veredas que se bifurcamŗ, fala do infinito, do inumerável, da simultaneidade, da dimensão cíclica dos tempos, do tempo e da eternidade,

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Alguns algoritmos para se encontrar um caminho no labirinto propõem que se siga, por exemplo, sempre à direita, ou que se margeie alguma parede. Algumas vezes, essa atitude pode ocasionar ciclos, dependendo da construção do labirinto.

construindo o que também pode ser visto como um labirinto. Dentro do conto de espionagem convencional que nos conduz a um final surpresa, ele inclui um outro conto de tipo lógico- metafísico, que é um romance chinês interminável. Através das várias descrições das concepções do tempo, Borges constrói uma rede, um grafo de possíveis e muitos caminhos que se bifurcam, uma imagem em árvore. Há uma ideia de tempo pontual como um presente subjetivo absoluto; uma ideia de tempo determinado pela vontade, onde uma ação implica um futuro determinado e se apresenta irrevogável como o passado; e a ideia central e labiríntica do conto: um tempo plural, ramificado, no qual cada presente se bifurca sucessivamente em dois futuros a fim de formar uma rede crescente de tempos divergentes, paralelos e convergentes. Todas as possibilidades podem ser realizadas através de todas as combinações possíveis: um grafo com todas as ramificações, onde um ramo determina, por exemplo, um assassinato, e outro ramo determina que assassino e vítima sejam amigos e irmãos. Borges acredita que, no tempo ambíguo da arte, uma história não é determinada somente pela decisão de um caminho, não sendo necessária a eliminação de todas as outras possibilidades (CALVINO, 1993).

Em ŖA casa de Asteriñnŗ (1998s) e ŖAbenjacán, o Bokari, morto em seu labirintoŗ (1998v), Borges segue outra linha para a construção de seus labirintos-biblioteca: conforme Eneida Maria de Souza, essa linha dilui-se no grande texto da tradição, escrita por vários autores e Ŗformada da matéria espelhada dos sonhos e das narrativas que se perdem no esquecimento e apagam, por conseguinte, a imagem unívoca do sujeito, da pessoa e do nome próprio, causada pelo espectro da semelhança, sombra que se projeta em outra sombraŗ (SOUZA, 1999, p.50).