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Ao longo desta tese utilizamos muitas teorias e citações de Italo Calvino para apoiar e relacionar autores e conceitos que procuramos desenvolver. Entretanto, neste momento, nos deteremos na apresentação de Calvino como membro do OULIPO e de alguns de seus trabalhos, escritos sob contraintes.

Os três principais livros explicitamente oulipianos de Calvino são As cidades invisíveis (CALVINO,1990b), O castelo dos destinos cruzados (CALVINO, 1994) e Se um viajante numa noite de inverno (CALVINO, 1999a). Em As cidades invisíveis, o contrainte está na construção dos capítulos e nas relações entre eles. Já nos outros dois livros, esses contraintes são melhor desenvolvidos. Como já indicamos anteriormente, é possível considerar Se um viajante numa noite de inverno como um hiper-romance que se constrói seguindo um modelo previamente determinado, como um algoritmo. Na Bibliotèque oulipienne no 20, Calvino apresenta um texto em que mostra como construirá seu livro Ŕ a estrutura geral da obra, as relações entre os personagens de cada capítulo e a posição do leitor e do autor.

Em O castelo dos destinos cruzados, escrita e leitura aparecem como dois movimentos intercambiáveis de um mesmo jogo narrativo, do qual a obra resulta como produção colaborativa entre autor e leitor. As possibilidades e os limites formais impostos pela estrutura narrativa escolhida para a obra Ŕ a combinatória e o baralho de tarô Ŕ são

explorados estética e criativamente, contribuindo para o desenvolvimento da temática literária como objeto da ficção: o autor utiliza a estrutura criada como elemento propiciador da discussão, como mote para o jogo reflexivo sobre leitura e escrita.

A narrativa desenvolve-se a partir de dois eixos distintos relativos aos papéis de autor e leitor. O primeiro é a narrativa iconográfica das cartas do tarô, no qual uma das personagens emudecidas que se encontra no castelo exerce a função de autor, utilizando as cartas do baralho para contar sua história. Neste processo o personagem do narrador, refletindo os demais personagens envolvidos no jogo no momento da apresentação da narrativa iconográfica, cumpre o papel do leitor. O segundo eixo é a narrativa literária propriamente dita, na qual o personagem do narrador/leitor vai atuar como autor de uma versão da história baseada em sua leitura das cartas do tarô, versão esta que por sua vez será lida pelos leitores empíricos do livro em questão.

Leitura e escrita aparecem, então, como as duas faces de um mesmo jogo: a obra é produto do diálogo entre autor e leitor, só existe em função da atuação desses dois sujeitos, cujos papéis estão em constante troca de posições. O personagem autor que conta sua história através das cartas é, no momento seguinte, o personagem leitor que procura, como o narrador, interpretar a história que se desenrola à sua frente e, mesmo no eixo da narrativa literária, o narrador atua ao mesmo tempo como leitor de uma história que passa a narrar (MOREIRA, 2007).

Ao dizermos que autor e leitor, nessa obra, participam do mesmo jogo em igualdade de condições, é importante esclarecermos o tipo de autor que se encontra na reflexão calviniana: o autor de Calvino não se caracteriza por noções de autoridade e propriedade de um sentido unívoco da obra. Estamos diante de um autor que atua coletiva e solidariamente com leitor e texto no engendramento da narrativa literária. Assim Perec escreve sobre os contraintes e a combinatória presentes em O castelo dos destinos cruzados:

Damo-nos conta […] de que a simbologia do tarô é por demais grande, digamos, para poder contar todas as histórias possíveis, ou parte. Um pouco como esse jogo de adivinhação chinês que se chama Yi-king que é feito de... tipos de dominós e que... Quando lemos esse livro, percebemos que a disposição que obtemos corresponde muito precisamente sempre ao que é, ao que nos concerne Ŕ simplesmente porque o número, a potencialidade engendrada pela permutação de um grande número... na medida onde há setenta e três cartas de tarô, obtemos um fatorial de 73. Quer dizer, eu não

sei… É um número que iria, que faria uma volta pela terra, por exemplo, um

número tão grande... Então, o que é muito belo, é que ele se serve... em se servindo ao mesmo tempo àquilo que chamamos a análise morfológica dos contos, como fez Propp nos contos russos, ele chega a contar todos os

grandes temas da humanidade, ou seja, Don Juan, Otelo, .... (PEREC, 2003c, p.710).40

Para Perec, O castelo dos destinos cruzados Ŗfoi para A vida modo de usar uma espécie de modeloŗ (PEREC, 2003b, p.260) 41

e o autor o cita, implicitamente, nos capítulos LV e LXXIII desse seu livro. Podemos perceber os jogos e contraintes presentes no livro de Calvino, de acordo com as palavras de Perec:

O Castelo dos destinos cruzados instaura qualquer coisa que poderíamos

chamar de rético, uma arte de rede: uma ordem narrativa fundada pelo labirinto: no entrecruzamento de lâminas imóveis, as narrativas discorrem em todos os sentidos, reto, inverso, de cima para baixo, de baixo para cima, em diagonal, ocasionando palíndromos de ideias, de palavras cruzadas de sentidos, de bifurcações de destinos, atribuindo à narrativa essa excitação da permutação literária que só encontraríamos na aridez literária ou numérica dos quadrados ditos mágicos. Com O Castelo dos destinos cruzados o SATOR AREPO faz, enfim, brilhantemente, sua entrada na literatura (PEREC, 2003b, p.240).42

Perec faz menção à utilização de um contrainte e de sua entrada na literatura através do livro de Calvino. Esse contrainte é um quadrado mágico que também foi trabalhado por Perec e Osman Lins. Ele apresenta a frase palindromática sator arepo tenet opera rotas, como na FIG. 1 a seguir:

40ŖOn se rend compte [...] que la symbolique du tarot est assez grande, disons, pour pouvoir raconter toutes les histoires possibles, ou à peu près. Un peu comme ce jeu de divination chinois qui sřappelle le Yi-king qui est fait

de… sortes de dominos et dont les… Quand on lit ce livre, on sřaperçoit que la disposition que lřon obtient

correspond toujours très précisément à ce qui est, à ce qui nous concerne Ŕ simplement parce que le nombre, la

potentialité engendrée par la permutation dřun très grand nombre… dans la mesure où il y a soixante-treize cartes de tarot, on obtient factorielle de 73. Cřest-à-dire, je ne sais pas… Cřest un nombre qui irait, que ferait le

tour de la terre, par exemple, un nombre aussi grand que… Donc, ce qui est très beau, cřest quřil se sert… en se

servant en même temps de ce quřon appelle lřanalyse morphologique des contes, comme lřa fait Propp pour les

contes russes, il arrive à raconter tout les grands thèmes de lřhumanité, cřest-à-dire Don Juan, Othello, le…ŗ 41Ŗ[...] avait été pour La Vie mode dřemploi une sorte de modèleŗ.

42ŖLe Château des destins croisés instaure quelque chose que lřon pourrait appeler une rétique, un art du réseau: un ordre narratif fondé sur lřenchevêtrement: dans lřentrecroisement des lames étalées, les récits courent dans

tous les sens, à lřendroit, à lřenvers, de haut en bas, de bas en haut, en diagonale, suscitant des palindromes dřidées, des mots croisés de sens, des bifurcations de destins, donnant au récit cette ivresse permutatoire quřon ne trouvait jusquřalors que dans la sécheresse littérale ou numérique des carrés pourtant dits magiques. Avec Le

FIGURA 1: Quadrado Mágico

Esse carré tem tamanho 5x5 e pode ser lido em todas as direções. Sua origem e seu significado não são muito bem conhecidos, mas sua utilização como um contrainte se dá pela simetria.43

Em relação a revelar ou não o contrainte utilizado, em O castelo dos destinos cruzados Calvino opta por sua revelação Ŕ diferentemente de outro membro do OULIPO, Harry Mathews. O Castelo é, na verdade, uma forma de usar o jogo de tarô, ou mais ainda, a forma de usar é dada ao mesmo tempo em que o livro é lido (PEREC, 2003c). Em Se um viajante numa noite de inverno, por outro lado, Calvino não revela alguns dos enigmas utilizados e que são importantes para o entendimento da obra Ŕ apesar de ter publicado na Bibliothèque oulipienne um texto chamado ŖComment jřai écrit un de mes livresŗ.44

Perec, numa afirmação que atribui a Italo Calvino, apresenta uma visão relativa à escrita sob contrainte na qual percebemos a preocupação do escritor italiano em relação à sua utilização:

Existem corredores à pé que chamamos de sprinters, que são muito bons quando correm cem metros em linha reta: existem outros que são melhores quando, na pista, colocam-se obstáculos, isso que chamamos de corredores de obstáculos Ŕ 110m com barreiras, 400m com barreiras, etc. E, de fato, o Oulipiano faz um pouco o seguinte... para satisfazer o que deseja, ele começa a colocar um certo número de obstáculos no seu caminho, que lhe conduzem ao que ele procura, e a esses obstáculos, chamaremos contraintes, digamos regras (CALVINO apud PEREC, 2003c, p.309).45

43

Esse é o mesmo quadrado utilizado pelo escritor brasileiro Osman Lins em seu livro Avalovara (LINS, 1985). O ponto de partida do livro é a interseção desse quadrado com uma espiral, fornecendo assim um contrainte para a construção da obra. Segundo o livro, a frase sator arepo tenet opera rotas significa: O lavrador mantém

cuidadosamente o arado nos sulcos. Há, também, pesquisas que relacionam a obra de Osman Lins à de Jorge

Luis Borges, como a publicada em Jorge Luis Borges y Osman Lins: poética de la lectura (CARIELLO, 2007). 44

É interessante apresentarmos aqui um detalhe da interpolação de atividades entre esses escritores oulipianos: em Penser/Classer (PEREC, 1985), para numerar os diferentes parágrafos do livro, Perec utiliza a ordem de aparição das letras do alfabeto na tradução francesa da sétima história de Se um viajante numa noite de inverno (CALVINO, 1999a).

45ŖIl y a des coureurs à pied que lřon appelle des sprinters, qui sont très, très bons quand ils courent en ligne droite sur cent mètres: il y en a dřautres qui sont meilleurs quand, sur la piste, ils mettent des obstacles, cřest ce

Para Calvino, alguns autores trabalham melhor diante de obstáculos do que se não os enfrentassem. Ele constrói, assim, sua visão e sua literatura, criando livros e discutindo essa criação sob contraintes, ao mesmo tempo em que produz obras sem os utilizar consciente ou explicitamente.

Em ŖProse et anticombinatoireŗ, texto publicado no Atlas de littérature potentielle, Calvino reflete sobre o limite da utilização da combinatória na literatura, sendo esta algumas vezes auxiliada pelos computadores. A utilização dos computadores, segundo Calvino, ajuda em situações nas quais as estruturas escolhidas pelo autor têm número restrito, mas as realizações possíveis são combinatoriamente exponenciais, apenas sendo passíveis de execução por um computador. Já quando o computador seleciona algumas realizações compatíveis com certos contraintes, essa ferramenta assume um caráter anticombinatório (OULIPO, 1981). Calvino discorre sobre um exemplo em que a utilização da combinatória fornece uma solução estúpida para seu enigma policial, e, devido à isso, conclui que o computador não irá substituir o ato criador e o artista, e sim libertá-lo dessa sua servidão.

Em texto intitulado ŖLřenchâssement des énigmes. Les Villes invisibles de Calvino dans La Vie mode d’emploi de Perecŗ, Montfrans (2007) apresenta as citações e a utilização de As cidades invisíveis em A vida modo de usar, em procedimento semelhante ao que aplicamos neste trabalho com o intuito de relacionar Perec e Borges sob a ótica do contrainte citações. Constatamos, portanto, a utilização de contraintes explícitos nas obras de Calvino, sua consciência desse tipo de escritura e a sua relação com Perec e com o livro A vida modo de usar.