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2.1 A vida modo de usar ou máquina de contar histórias

2.1.3 La polygraphie du cavalier

O problema do deslocamento do cavalo no jogo do xadrez (ou seu algoritmo) é um problema clássico na lógica e na computação. Colocado o cavalo numa posição qualquer do tabuleiro, devemos fazer com que o cavalo se desloque e visite todas as outras casas, lembrando que seu deslocamento é sempre em forma de L.

Algumas soluções já haviam sido dadas anteriormente para este problema. Perec, entretanto, criou um tabuleiro de 100 casas e mostrou como deslocar-se por essas casas seguindo o movimento de um cavalo:

Teria sido cansativo descrever um prédio andar por andar e apartamento por apartamento. Mas a sucessão de capítulos não poderia, portanto, ser ao acaso. Eu decidi aplicar um princípio derivado de um velho problema bem conhecido pelos amadores de xadrez: a poligrafia do cavalo: trata-se de fazer com que um cavalo percorra as 64 casas de um tabuleiro sem jamais parar mais de uma vez na mesma casa. Existem milhares de soluções, das quais algumas como as de Euler, formam um quadrado mágico. No caso particular da A vida modo de usar, era necessário encontrar uma solução para um tabuleiro de 10 x 10. Eu a atingi de uma maneira milagrosa. A divisão do livro em seis partes provém do mesmo princípio: cada vez que o cavalo

passa por uma das quatro bordas do quadrado, começa uma nova parte. Reparamos, entretanto, que o livro não tem 100 capítulos, mas 99. A menininha da página 295 e da página 394 é a única responsável (PEREC, 1979, p.51).94

A FIG.3 a seguir mostra prédio da A vida modo de usar e o deslocamento (ou relação) entre os apartamentos:

FIGURA 3: O prédio e os deslocamentos do cavalo

Partindo do Capítulo I (Escaliers), Perec aplica um algoritmo que visitará, pelo menos uma vez, cada casa do tabuleiro de 10 x 10 (excluindo a casa do canto abaixo esquerdo, já que temos 99 capítulos). Observamos também que o tamanho do apartamento

94 ŖIl aurait été fastidieux de décrire l'immeuble étage par étage et appartement par appartement. Mais la succession des chapitres ne pouvait pour autant être laissée au seul hasard. J'ai donc décidé d'appliquer un principe dérivé d'un vieux problème bien connu des amateurs d'échecs: la polygraphie du cavalier: il s'agit de faire parcourir à un cheval les 64 cases de l'échiquier sans jamais s'arrêter plus d'une fois sur la même case. Il existe des milliers de solutions dont certaines, telles celle d'Euler, forment de surcroît des carrés magiques. Dans le cas particulier de La Vie mode d'emploi, il fallait trouver une solution pour un échiquier de 10 X 10. J'y suis parvenu par tâtonnements, d'une manière plutôt miraculeuse. La division du livre en six parties provient du même principe: chaque fois que le cheval est passé par les quatre bords du carré, commence une nouvelle partie. On remarquera cependant que le livre n'a pas 100 chapitres, mais 99. La petite fille de la page 295 et de la page 394 en est seule responsableŗ.

está relacionado com o número de Ŗvisitas do cavaloŗ a este apartamento e à importância do personagem no livro. Por exemplo, Bartlebooth dá nome aos Capítulos 99, 70, 26 e 80, e em cada um desses capítulos, Perec aplica os bicarrés utilizando todos os contraintes já explicados.

Apresentamos os três recursos matemáticos mais importantes para a construção dos Ŗromancesŗ95 Ŕ Bicarré latin orthogonal d’ordre 10, la polygraphie du cavalier e la pseudo-quenine d’ordre 10. Entretanto, A vida modo de usar apresenta ainda muitos outros contraintes. O post-scriptum de Perec ao livro é justificado pelo contrainte 0cd (faux, manque), como em suas palavras: ŖEsse livro apresenta citações, por vezes ligeiramente modificadas de: René Belleto, Hans Bellmer, Jorge Luis Borges, [...]ŗ (PEREC, 1989b, p. 636). Essas modificações e faltas, atributos do contrainte (faux, manque), podem ser analisadas com o problema de classificação que Perec trabalhou ao longo de sua obra.96

Torna-se necessário, ao abordar todos os contraintes utilizados por Perec, explicar num primeiro momento os contraintes falta e falso (manque et faux). Na verdade, teríamos que chamá-lo de metacontrainte, anti-contrainte ou clinamen (MAGNÉ, 1999).

O termo metacontrainte pode ser entendido como um contrainte de outro contrainte, assim como o termo metamatemática é utilizado para falar sobre a matemática partindo de outro nível hierárquico. Temos aqui um problema formal: não podemos introduzir num sistema um argumento, dentro do próprio sistema, que se refira a ele mesmo. É a mesma situação de, no caso de encontrarmos um gênio da lâmpada que nos oferecesse três desejos, escolhêssemos dentre esses desejos ter mais três desejos. Esse não seria um pedido válido, seria um metapedido. Assim, o termo utilizado por Magné neste caso específico é melhor que os utilizados tanto por Perec (anti-contrainte) quanto pelo OULIPO (clinamen): não houve a introdução de um erro no sistema, e sim uma declaração não cabível.

De acordo com Jean-Luc Joly (2004, p. 857-873), podemos distinguir seis grandes famílias de contraintes na obra de Perec, que muitas vezes se misturam umas com as outras:

a) Contraintes Literais: podem ser Ŗgraphématiquesŗ em relação a letras e palavras, como anagramas, palíndromos de letras (ressasser) ou de palavras (mot à mot), anacíclicos (Roma/Amor), palavras lipogramáticas (La disparition) e monovocálicas (Perec), contrainte do prisioneiro; e podem ser Ŗphonématiquesŗ em relação às sílabas (palíndromos e anacíclicos silábicos

95

Perec utiliza a classificação Ŗromancesŗ em A vida modo de usar, expressão que inclusive aparece como subtítulo do livro.

96

No Capítulo 4 o problema da classificação será discutido a partir de Penser/Classer, de Perec (1985), e de ŖO idioma análitico de John Wilkinsŗ, de Borges (1999b).

como Perceval avale ce père), fonemas (homofonismos: J’en sais baste! J’tiens bac) e hipográficas (Coppélia enseigne à Noé l’art nautique).

b) Contraintes Estruturais:

b.1) linguísticos: palíndromo de frase ou de texto, tautograma (frase ou palavras que começam todas pela mesma letra); pangrama (frase onde todas as letras do alfabeto são utilizadas de preferência uma só vez). b.2) geométricos: permitem o aparecimento de outras palavras quando olhados

em diferentes linhas, como é o caso de Alphabets ou do Compendium de A vida modo de usar, que forma a palavra âme.

b.3) combinatórios: o bicarré latino, a poligrafia do cavaleiro, as quenines. b.4) de lugar: os incipit, as primeiras palavras de cada capítulo ou página que

servem para se tornar, também, contraintes estruturais geométricos. c) Contraintes de Citações: inclusão de partes e citações de obras de outros

autores ou de si próprio.

d) As Ŗengrenagensŗ: elementos recorrentes autobiográficos como, por exemplo, a utilização dos números 11 e 43 em lembrança a data de morte de sua mãe; simetrias bilaterais.

e) As traduções: toda tradução é um contrainte, já que se trata de, utilizando algumas estratégias, rearranjar, restituir e reescrever o texto. Perec faz isso quando traduz os textos de Harry Matthews.

f) Totalizações: tentativa de saturação, de escrever tudo. Tanto para Joly quanto para Magné, esse é um contrainte pensado por Perec e, por isso, ele também introduz os metacontraintes falta e falso, já que o esgotamento e a totalização são impossíveis.