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Uma classificação especial – John Wilkins

4.2 Classificações

4.2.1 Uma classificação especial – John Wilkins

John Wilkins, filho de Walter Wilkins, nasceu em Daventry, Northamptonshire (Londres, 1614). No início de ŖO idioma analìtico de John Wilkinsŗ, Borges apresenta uma pequena biografia (Ŗverdadeiraŗ) dele. No idioma universal proposto por Wilkins, cada palavra se define a si mesma, e seu projeto era que esse idioma organizasse e abrangesse todos os pensamentos humanos, conforme descrito por Umberto Eco em A busca da língua perfeita (2002). Borges, utilizando seus recursos ficcionais e críticos, apresenta nesse texto uma classificação tão ambígua e problemática quanto as propostas por John Wilkins, atribuindo-a a um certo Franz Kuhn, sinólogo contemporâneo. Assim Borges apresenta sua famosa e muito discutida classificação chinesa:

a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et caetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas (BORGES, 1999b, p.95).

190ŖIl avait envie, expliquait-il, de classer ces étiquettes, mais cřétait très difficile: évidemment, il y avait lřordre chronologique, mais il le trouvait trop pauvre, plus pauvre encore que lřordre alphabétique. Il avait essayé par

continente, puis par pays, mais cela ne le satisfaisait pas. Ce quřil aurait voulu cřest que chaque étiquette soit

reliée à la suivante, mais chaque fois pour une raison différente [...].Ce nřest pas seulement difficile, ajoutait

Winckler, cřest surtout inutile: en laissant les étiquettes en vrac et en en choisissant deux au hasard, on peut être sûr quřelles auront toujours au moins trois points communsŗ.

Essa não é a primeira referência de Borges a Wilkins: na conferência El idioma de los argentinos (1927), Borges se refere ao Ŗbispo anglicano Wilkins, o mais inteligente utopista em transes de idiomasŗ (BORGES, 1998y, p.18).191 Seu encontro com Wilkins se dá através da Enciclopédia Britânica, marco fundamental em sua obra, já que sua leitura é sempre responsável por uma cota de surpresa, dado Ŗque está regida pela ordem alfabética que, essencialmente, é uma desordemŗ (ALIFANO, 1986, p.81).192

Um texto importante de Wilkins é Magia matemática, onde o autor é reconhecido como precursor do voo em uma máquina. Em Textos recobrados, Borges escreve: Ŗrefere-se a um certo monge inglês do século XI que voou desde a torre mais eminente de uma igreja catedral espanhola assistido por asas mecânicasŗ (BORGES, 1997, p.334).193 Essa referência, não por acaso, pode ser encontrada na sessão sobre Aeronáutica da Enciclopédia Britânica (CAMURATI, 2005, p.28).

No mesmo livro de Wilkins há referências à criptografia, também retomadas por Borges: ŖMercúrio, o secreto e rápido mensageiro, é um manual de criptografiaŗ (BORGES, 1997, p.334).194 Mas o que mais atrai a atenção de Borges é a classificação de Wilkins que aparece no texto ŖAn Essay towards a Real Character, and a Philosophical Languageŗ, de 1668, no qual ele propõe uma catalogação do universo, repartindo-o em quarenta categorias, indicadas por nomes monossilábicos de letras. Essas categorias estão subdivididas em gêneros (indicados por uma consoante) e esses gêneros em espécies, indicadas por vogais, e são retomadas em ŖO idioma analìtico de John Wilkinsŗ.

Para Umberto Eco, a lista chinesa que Borges inclui nesse texto é o exemplo máximo de lista incongruente. Eco indica as diferenças entre as enumerações caóticas da antiguidade e as atuais, indicando que Homero, por exemplo, recorria às listas por lhe faltarem palavras, e que a língua e o topos do indizível dominaram durante séculos as listas poéticas:

Examinando o excesso coerente das enumerações caóticas, constatamos que, de acordo com as listas da Antiguidade, qualquer coisa de diferente foi produzida. Homero recorria à lista porque lhe faltavam as palavras, a língua e a fala, e o topos do indizível dominou durante séculos a poética da lista. Em contrapartida, as listas de Joyce e de Borges mostram a evidência de que o autor não enumera mais porque não saberia como dizer de outra forma, mas sim porque ele quer dizer pelo excesso, pelo hybris e voracidade da

191Ŗ[…] obispo anglicano Wilkins, el más inteligente utopista en trances de idioma […]ŗ. 192Ŗ[…] que está regida por el orden alfabético que, esencialmente, es un desordenŗ.

193 ŖRefiere que cierto monje inglés del siglo XI voló desde la torre más eminente de una iglesia catedral española, asistido de alas mecánicasŗ.

letra, por um feliz saber (raramente obsessivo) do plural e do ilimitado. A lista se torna uma forma de remisturar o mundo, a fim de colocar em prática o convite de Tesauro de acumular propriedades para surgir novos produtos entre coisas distantes, e, em todo caso, por colocar em dúvida o que dita o senso comum. A lista caótica se torna, assim, um dos modos dessa decomposição das formas que atingirão, cada uma a sua maneira, o futurismo, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo ou o novo realismo (ECO, 2009, p.327).195

Em seu texto, Borges faz ainda referência aos projetos de Descartes e Leibniz sobre uma linguagem derivada de um sistema decimal ou binário, projetos que, como apresentamos matematicamente no Capítulo anterior, utilizam sistemas igualmente poderosos. Em paralelo, tanto o projeto de Wilkins quanto o projeto de Borges da biblioteca chinesa são, matematicamente, igualmente fracos: seu intuito é parodiar as classificações de Wilkins, e com isso criticar qualquer sistema classificatório. Assim Foucault o lê:

Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento Ŕ do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia Ŕ abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. No deslumbramento desta taxonomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto (FOUCAULT, 1987, p.7).

Já que o texto, através de sua classificação e enumeração, não obedece nenhum tipo de lógica intrínseca, como a de uma enciclopédia, por exemplo, Foucault se pergunta a respeito de sua própria impossibilidade de pensar classificando e continua:

Assim é a enciclopédia chinesa citada por Borges e a taxonomia que ela propõe conduz a um pensamento sem espaço, a palavras e categorias sem tempo nem lugar, mas que, em essência, repousam sobre um espaço solene, todo sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações; haveria

195ŖEn examinant aussi bien les excès cohérents que les énumérations chaotiques, on constate que, par rapport

aux listes de lřAntiquité, quelque chose de différent sřest produit. Homère recourait à la liste parce quřil lui

manquait les mots, la langue et la bouche, et le topos de lřindicible a dominé pendant des siècles la poétique de la

liste. En revanche, les listes de Joyce et de Borges montrent à lřévidence que lřauteur nřénumère plus parce quřil ne saurait pas comment dire autrement, mais bien parce quřil veut dire par excédent, par hybris et gourmandise de la parole, par un gai savoir (rarement obsessionnel) du pluriel et de lřillimité. La liste devient une façon de remélanger le monde, comme pour mettre en pratique lřinvitation de Tesauro à accumuler des propriétés pour

faire jaillir des rapports nouveaux entre choses éloignées, et en tout cas pour mettre en doute ceux que dicte le

sens commun. La liste chaotique devient ainsi lřun des modes de cette décomposition des formes quřaccompliront, chacun à sa manière, le futurisme, le cubisme, le dadaïsme, le surréalisme ou le nouveau réalismeŗ.

assim na outra extremidade da terra que habitamos, uma cultura voltada inteiramente à ordenação da extensão, mas que não distribuiria a proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear, falar, pensar (FOUCAULT, 1987, p.11).

Para Borges, não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. Em ŖA ameaça do lobisomemŗ (SANTIAGO, 1988), ao abordar a introdução do livro As palavras e as coisas, de Foucault, Silviano Santiago Ŗdestaca que a enciclopédia chinesa, com sua classificação divergente da ordem convencional, duplica antigas leituras europeias das culturas colonizadas e acabam sendo responsáveis por uma das mais canônicas leituras do escritor argentino porque reencenam e reafirmam o teor exótico e estranho para a condição latino-americanaŗ (NASCIMENTO, 2007, p.57).

Umberto Eco, retomando também a inquietante classificação chinesa, faz referência a um problema clássico da lógica matemática para explicar o problema de colocar a própria classificação dentro da classificação Ŕ atitude de Borges ao incluir em sua lista o item h) incluídos na presente classificação –, o qual apresentamos anteriormente, qual seja, o problema da autorreferência. Borges, aqui, apresenta um paradoxo matemático com o intuito de criticar um sistema classificatório ou um sistema de enumeração, conforme indica Eco:

Mas há algo pior. Isso que coloca a lista verdadeiramente inquietante, é que ela inclui entre os elementos que ela classifica, os mesmos elementos que são pertencentes à classificação. Aqui, o leitor ingênuo, mais que tudo, perde a cabeça. Mas o leitor expert em lógica de conjuntos confirma a vertigem que sentiu Frege face à objeção do jovem Russell. Apresenta-se um paradoxo. Borges não fez outra coisa que colocá-lo em cena (ECO, 2009, p.395).196

O livro Penser/Classer (PEREC, 1985) traz um texto com o mesmo nome, no qual Perec começa se perguntando se ele pensa antes de classificar ou se ele classifica antes de pensar e como ele pensa quando quer classificar, perguntas que nos remetem aos comentários de Foucault. Perec continua provocando e desordenando o próprio sistema de ordenação através de sinônimos: tudo isso seria uma utopia de desejo taxonômico, a de colocar um lugar para cada coisa e uma coisa em cada lugar. Para Perec, o problema das classificações é que elas caducam, apesar do desejo de classificar: a abundância de coisas e de

196ŖMais il y a pire. Ce qui rend la liste vraiment inquiétante, cřest quřelle inclut, parmi les éléments quřelle classifie, même ceux qui sont compris dans la classification. Ici, le lecteur naïf, tout au plus, perd la tête. Mais le

lecteur expert en logique des ensembles éprouve le vertige quřavait en son temps ressenti Frege face à lřobjection du jeune Russell. [...] Il en découle un paradoxe. Borges nřa rien fait dřautre que le mettre en scèneŗ.

informações de cada elemento permite, somente, uma classificação provisória, incompleta e absurda. Assim Perec apresenta sua própria lista, em referência à de Borges:

A) Animais que fazemos pares, B) animais que a caça é proibida do 1o de abril à 15 setembro, C) baleias encalhadas, D) animais que na entrada do território nacional são submetidos à quarentena, E) animais em copropriedade, F) animais empalhados, G) et caetera, H) animais sensíveis, J) animais beneficiários de heranças importantes, K) animais que podem ser transportados em cabines, L) cachorros perdidos sem coleira, M) asnos, N) jumentos presumidamente cheios (PEREC, 1985, p.165).197

Nesta classificação, o item G é interessante de ser analisado, por estar presente também na classificação borgiana e por um comentário do próprio Perec em relação a ele: ŖEsse Řetc.ř não tem nada de surpreendente propriamente dito; é somente o seu lugar na lista que o torna curiosoŗ (PEREC, 1985, p.165).198 Conforme Eco, o item Ŗpresentes nessa classificaçãoŗ de Borges torna o conjunto autorreferente, levando-nos ao paradoxo de Russell. O et caetera, por seu turno, mostra a impossibilidade de classificar: na classificação, por mais exaustiva que esta seja e por mais que tente ordenar todos os elementos, há sempre um et caetera, que, por definição, fica responsável pelo Ŗe o restoŗ. Ou seja, por meio dele inclui-se tudo na classificação.

Perec continua, em ŖBorges et les Chinoisŗ:

A abundância de intermediários e o gosto bem conhecido de Borges pelas erudições ambíguas permitem questionar se esse hétéroclisme, um pouco demais perfeitamente estupefante, não é inicialmente um efeito da arte. De simples punções nos textos administrativos, tudo que há de mais oficial é suficiente para produzir uma enumeração quase, também, rondeflanesque (PEREC, 1985, p.164).199

Aqui Perec se pergunta se a classificação de Borges, conhecendo suas referências, suas leituras, sua erudição e suas trapaças, não seria, tão somente, arte. Sua nova classificação apresentaria punções de textos administrativos e oficiais que produziriam, também,

197 ŖA) Animaux sur lesquels on fait des pairs, B) animaux dont la chasse est interdite du 1er

avril au 15

septembre, C) baleines échouées, D) animaux dont lřentrée sur le territoire national est soumise à quarantaine, E)

animaux en copropriéte, F) animaux empaillés, G) et caetera, H) animaux susceptibles, J) animaux bénéficiaires

dřhéritages importants, K) animaux pouvant être transportés en cabine, L) chiens perdus sans collier, M) ânes, N) juments présumées pleinesŗ.

198ŖCet Řetcř nřa rien de surprenant en soi; cřest seulement sa place dans la liste qui le rend curieux ŗ.

199ŖLřabondance des intermédiaires et le goût bien connu de Borges pour les éruditions ambigües permettent de

se demander si cet hétéroclisme un peu trop parfaitement sidérant nřest pas dřabord un effet de lřart. De simples

ponctions dans des textes administratifs tout ce quřil y a de plus officiels suffisent à produire une énumération

enumerações circulares. Uma solução possível para o problema da classificação, por exemplo, de uma biblioteca, seria a dada pelo Capitão Nemo, personagem de Júlio Verne e citado por Perec: Ŗo mundo terminou para mim no dia que meu Nautilus se enterrou pela primeira vez sob as águas. Neste dia, comprei meus últimos volumes, meus últimos livros, meus últimos jornais, e desde então eu quero acreditar que a humanidade não mais pensou ou escreveuŗ (VERNE apud PEREC, 1985, p.33).200

Já que não tem mais livros e que todo o conhecimento para ele está completo e presente num só lugar, numa biblioteca que não é a de Babel e comporta apenas 12.000 volumes, o Capitão não tem problemas Ŕ nem com o espaço da biblioteca, nem com a forma de sua ordenação.