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As citações de Borges em A vida modo de usar

2.1 A vida modo de usar ou máquina de contar histórias

2.1.4 As citações de Borges em A vida modo de usar

Em A vida modo de usar, segundo Claude Burgelin, Perec copia de inúmeras fontes:

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Neste item será discutido somente o contrainte citações. A relação entre Perec e Borges será aprofundada no Capítulo 4.

Em A vida modo de usar, Perec copia copiosamente: outros escritores, dicionário, escritos da vida cotidiana (notas, catálogos, etc.). Mesmo o mundo dos objetos parece copiado através de uma sequência de anotações. Ou não há nada de cópia, que, a priori, vem titilar nosso apetite romanesco. [...] Copiar Ŕ explicitamente Ŕ as palavras dos outros é citar. Copiar sem aspas é uma conduta suspeita, reprovada pela instituição escolar, às vezes passível de multas (BURGELIN, 1988, p.210).98

Assim como Borges fez ao longo de toda sua obra, copiando metaforicamente outras tantas produções, Perec se vale do conselho da última linha de Bouvard e Pécuchet (FLAUBERT, 2007): o Ŗprazer que há no ato material de recopiarŗ. Além de citações explícitas de outros escritores, apresenta cópias escondidas e transforma alguns de seus personagens de A vida modo de usar em copiadores ou falsários, como Bartlebooth - que pinta suas aquarelas, as reconstrói como quebra-cabeças e as destrói Ŕ, LeBran-Chastel (Capítulo XCVI) Ŕ um copiador ladrão Ŕ, e Cinoc (Capítulo LX) Ŕ que copia todas as palavras perdidas do dicionário.

Aplicando o contrainte 1c9 e utilizando as tabelas do ANEXO D, podemos encontrar as citações explícitas e por vezes modificadas de Jorge Luis Borges:99

Capítulo 2, p.24, de A Vida modo de usar (PEREC, 1989b), e p.369-371, de

História Universal da Infâmia (BORGES,1998f)

- p. 24 e 369: ŖNos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade na qual residiam seus reis e que tinha por nome Lebtit ou Ceuta, ou Jaén. Existia um forte castelo nessa cidade, cuja porta de dois batentes não era para se entrar nem sair, mas para se manter fechada. Cada vez que um rei falecia e outro rei herdava seu trono altíssimo, este adicionava com suas próprias mãos uma fechadura nova à porta, até que foram vinte e quatro

fechaduras, uma para cada reiŗ.

- p.24 e 370: ŖDentro estavam desenhados os árabes em metal e madeira, sobre seus rápidos camelos e potros, com turbantes que ondeavam sobre as espáduas e os alfanjes suspensos por talabartes e a direita lança destraŗ. - p. 24 e 371: ŖA sétima era tão comprida que o arqueiro mais destro, atirando uma flecha a partir do umbral, não conseguia cravá-la na parede ao fundoŗ.

No Capítulo II, encontramos Fernand de Beaumont, arqueólogo que destinou sua vida à procura de Leibit, onde teria existido um castelo e uma lenda acerca da ŖSala das

98ŖDans la Vie mode dřemploi, Perec copie copieusement: les autres écrivains, le dictionnaire, les écrits de la vie quotidienne (notices, catalogues, etc.). Même le monde des objets semble Řcopiéř à travers cette suite de relevés.

Or il nřy a dans le recopiage rien qui, a priori, vienne titiller notre appétit romanesque. [...] Copier Ŕ

explicitement Ŕ les mots des autres, cřest citer. Copier sans guillemets est une conduite suspecte, réprouvée para

lřInstitution scolaire, parfois passible des tribunauxŗ.

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É importante chamar a atenção, neste momento, para um problema de tradução: Perec utilizou a tradução francesa da obra de Borges, e nós utilizamos aqui as traduções para o português tanto de A vida modo de usar quanto das Obras completas de Borges, o que pode levar a algumas diferenças textuais.

Estátuasŗ. Neste conto, Borges faz referência à noite 272 das Mil e uma Noites e Perec a utiliza como intertexto, copiando, recriando e aumentando as possibilidades ficcionais do romance acerca de Beaumont.

Capítulo 6, substituído por Verne, por causa do contrainte Falso (Faux).

No capítulo ŖQuartos de empregada, 1ŗ, Perec aplica o contrainte falso e, ao invés de utilizar a citação de Borges, faz uso da citação de Júlio Verne. Como Perec e Borges, Verne tentou também o esgotamento e a totalização de todo o conhecimento de sua época, em todos os campos do saber.

Capítulo 12, citação ausente, mas alusão, pelo nome Hourcade, ao conto

ŖPierre Ménard, autor do Quixoteŗ (BORGES, 1998n).

Mesmo com a citação ausente, Perec faz alusão ao ŖPierre Ménard, autor do Quixoteŗ. Ménard escreveu um prefácio para o catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade, uma de suas obras visíveis. E é justamente a Senhora Hourcarde de Perec que se encarrega de fornecer a Bartlebooth as caixas para colocar suas aquarelas, ou seja, a obra visível de Bartlebooth.

Capítulo 15, citação ausente.

Apesar de não aparecer uma citação direta de Borges, o capìtulo ŖQuartos de empregada, 5 Smautfŗ apresenta um dos personagens mais importantes do livro e sua obsessão pela matemática: a extração de raízes quadradas e o desenvolvimento de fatoriais. Além disso, aqui percebemos o clinamen de Perec.

Capítulo 56, p.274-275, de A Vida modo de usar, e Ficções - p.274 e 487- ŖTlön Uqbar Orbis Tertiusŗ (BORGES, 1998m)

ŖA princesa de Fauciny Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata.

Do vasto interior de um caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imóveis: prataria de Utrecht e de Paris com dura fauna

heráldica, um samovarŗ.

- p.275 - No Bulletin de l’Institut de Linguistique de Louvain há um sumário - em ŖTlön Uqbar Orbis Tertiusŗ

Boris Baruq Nolt é um anacyclique alfabético e silábico de Tlön Uqbar Orbis.

ŖEm março de 1941, descobriu-se uma carta manuscrita de Gunnar Erfjord num livro de Hinton que fora de Herbert Asheŗ (p.486).

Ŗ ... Madame Henri Bachelier…ŗ (p.490).

ŖUma monographie sobre a Characteristica universalis de Leibnizŗ. (p.491).

- em ŖO jardim de veredas que se bifurcamŗ (BORGES, 1998p)

Ŗo professor Stephen Albert…ŗ (p.532).

Ŗo jardim de meu ancestral Tsřui Pên…ŗ (p.533).

- em ŖA morte e a bússolaŗ (BORGES, 1998r)

ŖO Tetragrámaton Ŕ o Nome de, JHVH Ŕ consta de quatro termos…ŗ

(p.565).

Todos os contos presentes em Ficções aos quais Perec faz menção apresentam problemas linguìsticos e estruturais. Em relação à ŖTlön Uqbar Orbis Tertiusŗ (BORGES, 1998m), encontramos algumas referências, plagiadas por antecipação, ao trabalho oulipiano, como o famoso poema de uma letra só100 e problemas matemáticos. Borges também faz um exame da língua de Tlön, que retira os substantivos, além de mencionar o termo ŖBoris Baruq Noltŗ, um pequeno lipograma em e bem trabalhado por Perec. Em seguida, Perec apresenta a Senhora Bachelier, responsável pela confecção do falacioso catálogo encontrado novamente em ŖPierre Ménard, autor do Quixoteŗ (BORGES, 1998n), que apresenta uma cópia Ŗmelhoradaŗ do Quixote de Cervantes. Em ŖO jardim de veredas que se bifurcamŗ (BORGES, 1998p), Borges propõe várias possibilidades de tempos, de escrituras, da história e do universo: uma aproximação com a combinatória do OULIPO. Percebemos a diferença da utilização dos recursos matemáticos em Perec e Borges: a combinatória de Borges é um recurso ficcional, uma ferramenta para aumentar as possibilidades ficcionais de leitura; já em Perec, ela é uma ferramenta estrutural. Essas são as diferenças que ressaltam os personagens Stephen Albert e Tsřui Pen. Já no fim da citação do Capìtulo LXVI, encontramos ŖA morte e a bússolaŗ (BORGES, 1998r) com o seu Tetragrama, exemplo fundamental da estrutura combinatória e ficcional da Cabala.

Capítulo 67, p.335 e 524 ŖO jardim de veredas que se bifurcamŗ (BORGES, 1998p)

- ŖNa página 242 da História da Guerra Européia, de Liddell Hart [...]ŗ Perec faz menção à História da Guerra Europeia dizendo que faltam as suas vinte e duas primeiras páginas. Em Borges, é exatamente na página 22 que começa o conto, e aqui faltam as duas primeiras páginas. Em relação à Perec, percebemos sempre a utilização de números e restrições, e o número vinte e dois tem a propriedade do palíndromo. Além disso,

100ŖA la limite/ Poème-lettre composé uniquement de la ponctuation/ Un poème avec une seule lettre, t/ Un poème avec un seul mot, fenouilŗ (OULIPO, 2009).

Perec desaparece com as vinte e duas primeiras páginas, ou seja, com todo o conto de Borges: a totalidade da falta e da citação.

Capítulo 70, p.341 e 463, de História da Eternidade (BORGES, 1998i) - nota, ŖA aproximação a Almotasimŗ (BORGES, 1998l)

ŖDo místico persa Farid AL-Din Abu Talib Muhammad ben Ibrahim Attarŗ

- p.345 e 436, ŖO tempo circularŗ (BORGES, 1998j)

Ŗnos períodos cujo imóvel relógio é uma pirâmide, desgastada muito

lentamente pela asa de um pássaro, que roça nela a cada mil e um anos...ŗ Os dois contos presentes na História da Eternidade apresentam os conceitos de mise en abyme, seja em relação à teoria do Eterno Retorno de Nietzsche e dos gregos, seja em relação ao jogo de espelhos. Já em Perec, no capìtulo ŖBartlebooth, 2ŗ, encontramos algumas explicações relativas à solução, dificuldade e devoção na arte de puzzles; um trabalho metódico composto por vários ciclos de tentativa e erro, como nas explicações de Borges.

Capítulo 73, p.357 de A vida modo de usar, e História Universal da Infâmia (BORGES, 1998f)

- p. 81 (71) e p. 83 (72), ŖO tintureiro mascarado Hakim de Mervŗ (BORGES, 1998g)

- p. 354, Ŗd) umas moedas em efígie desenterradas pelo engenheiro Andrusov, num desmonte da Estrada de Ferro Transcaspiana. Essas moedas foram depositadas no Gabinete Numismático de Teerã e contém dísticos persas que resumem ou corrigem certas passagens da Aniquilaçãoŗ

- p. 355 e 365 (A vida modo de usar)

ŖNo ano 146 da Hégira, Hakim desapareceu de sua pátria. Encontraram

destruídas as caldeiras e cubas de imersão, assim como um alfanje de Xiraz e

um espelho de bronzeŗ.

- p. 365 (A vida modo de usar), p.360, ŖO homem da esquina rosadaŗ (BORGES, 1998h)

ŖRosendo Juárez, o Batedor, era dos que falavam mais alto em Vila Santa

Rita. Rapaz afamado por ser bom na faca, era um dos homens de Dom

Nicolás Paredes, que era homem de Morel.ŗ

O primeiro quarto da boutique da Senhora Marcia (ŖMarcia, 5ŗ) está cheio de móveis e, entre eles, encontram-se fontes de informações acerca de Al Moqanna, o Profeta de Borges. É interessante notar que, neste quarto, recuperam-se as moedas sem imagens que são provas da existência do Profeta e encontra-se, também, o espelho de bronze, prova do desaparecimento do mesmo. Continuando no conto de Borges, ŖO tintureiro mascarado Hakim de Mervŗ, há ainda referências, no subitem ŖOs espelhos abomináveisŗ, a outro palíndromo: o 999, e a afirmação de que Ŗos espelhos e a paternidade são coisas abomináveis, porque a multiplicam e afirmamŗ (BORGES, 1998g, p.358). Em ŖMarcia, 5ŗ, encontramos uma semelhança com o personagem de Funes, já que este passou por um terrível acidente e,

logo depois, ŖLino Margay descobriu nessa ocasião que possuía uma memória espantosa: quando saiu da prisão, em junho de 1942, sabia tudo sobre o pedigree de três quartos do banditismo sul-americano. Não apenas conhecia em detalhe sua ficha criminal mas também sabia na ponta da língua seus gostos, defeitos, armas preferidas, especialidades, tarifas, esconderijos, a maneira de contatá-los etc.ŗ (PEREC, 1989b, p.366). Assim Perec, utilizando o contrainte, parte de uma citação ou de uma história de um outro escritor para enriquecer e possibilitar várias leituras de seus Ŗromancesŗ em A vida modo de usar. Em relação à citação de Rosendo Juarez, tanto Perec, no capítulo LXIII, quanto Borges em ŖO homem da esquina rosadaŗ, compõem fábulas regionais.

Capítulo 92, p.466 de A vida modo de usar, e p. 560, de ŖA morte e a bússolaŗ (BORGES, 1998r)

- ŖHavia no chão uma brusca estrela de sangue; nos cantos restos de cigarros da marca húngara; num armário, um livro em latim Ŕ O Philologus

Hebraeograecus

No capítulo ŖLouvet, 3ŗ se faz menção a uma festa que aconteceu no apartamento e pela qual, devido ao grande barulho, a polícia foi chamada. Também em relação aos outros capítulos Louvet (1 e 2), encontramos algumas referências à polícia, o que nos conduz à direção do conto policial de Borges que Perec utiliza em sua citação.

Capítulo 94, p. 472 de A vida modo de usar e História da Eternidade (BORGES, 1998i)

- p. 444, ŖOs tradutores das Mil e uma noitesŗ (BORGES, 1998k)

- ŖBurton, disfarçado em afegão, havia peregrinado às cidades santas da

Arábiaŗ (PEREC, 1993; WAUQUAIRE, 2006).

Perec faz menção à Mark Twain construindo uma biografia falsa, como muitas vezes fez Borges ao longo de sua obra. Aqui percebemos também um entrelaçamento entre as Mil e uma noites de Borges e a literatura americana de Twain.

O contrainte citação não é uma restrição totalmente ingênua na obra de Perec. As cópias que Perec faz de Borges são bem mais profundas, já que há sempre uma rede de referências literárias também em Borges. Todos os capítulos apresentam muitos contraintes e, seguindo os caminhos indicados por essa rede intertextual, Perec torna sua obra ainda mais rica e complexa.