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A Igreja Católica e o controle do discurso

No documento História da Astrologia (páginas 135-138)

■ crescente popularização da astrologia, que, desse modo, escafu ■ I controle do Estado e da Igreja, os diversos prognósticos do ln tempos, que primeiro agitaram as massas para depois se revej- lirm infundados, os desafios protestantes e, principalmente, is llltidanças científicas de paradigma também não deixaram de caujr ■ fr ito no que se refere à postura da Igreja Católica perante a ast> n ig ia. É verdade que a ciência dos astros determinista-prognóst;a Stra tida há muito como inconciliável com a doutrina eclesiástica,

B o ré m , até o século XVI, os astrólogos profissionais continuaram a fer

■Itilcrados e inúmeros representantes do clero estavam diretamerte

■involvidos em atividades astrológicas. Papas como Paulo II, que em

Klcii discurso de coroação pronunciou-se a favor da verdade das pt>-

H rcias astrológicas, ou o papa Sixtus IV, que mandava astrólogos ccn-

■Irutados calcularem as datas favoráveis às suas decisões políticas, ■frpresentam uma postura moderada e pragmática em relação à CQr-

B b n ração dos astrólogos. Não poucos papas aplicaram abertamente a ■ ftklrologia em seu trabalho e apoiaram, na medida do possível, a astro-

Mlugia erudita. O papa Leão X, por exemplo, permitiu que o famoso

■>»lrólogo Augustinus Nifo portasse o brasão da casa dos Médici e

K t r i o u na universidade papal fundada por ele — - a Sapientia — ur^a

■ trttedra de astrologia, no ano de 1520. Paulo III já foi mencionadlo

B jto is nomeou Lucas Gauricus bispo, depois que este lhe profetizaira ■ H honra papal.

No entanto, a atmosfera modificou-se já sob Paulo III, pois ‘se

I Ipcrcebia que as rédeas deveriam ser encurtadas para não passear

■ wdiante aquilo que Michel Foucault chama de controle do discursso.

■ d) ponto de mudança mais importante da Contra-Reforma foi o H C o n cílio de Trento, que se reuniu com alguns intervalos entre 15445

■ • 1563 e regulamentou novamente os princípios da doutrina católicca, ■ Ibrni como a organização da instituição. As resoluções do Tridentinurim

K ||m i maneceriam válidas para a Igreja Católica em suas proposiçõQes

Index proibiu, com resolução de 4 de dezembro de 1 563, todos tjl livros que estivessem relacionados à adivinhação, à magia ou feihçii ria, bem como obras da astrologia de orientação determinista:

Todos os livros e escritos da geomancia, hidromancia, aeromancia, |>lrtM maneia, oniromancia, quiromancia, necromancia ou que contenlimM sortilégios, instruções sobre poções mágicas, augúrios, auspícios, evili cações, artes mágicas, serão inteiramente condenados. Os bispui devem ainda, além disso, cuidar atentamente para que livros, tratadoij índices da astrologia judicial, que ousem afirmar, como de aconlefll mento garantido, êxitos que ocorrerão no futuro ou eventos fortuitos ii|| atos que dependam da vontade humana, não sejam lidos ou mant uln( sob posse. São permitidos, ao contrário, determinações ou observaçorn

naturais, escritos em prol da navegação, da agricultura ou da arte m e d i

cinal. (citado segundo Braunsperger, 1928, 54)

Essa era uma formulação bastante suave, pois utilizava não só ,i distinção baseada em Tomás de Aquino entre astrologia judicial (pmi bida) e astrologia “natural” (permitida), mas considerava, ela mesinn, essa distinção como dificilmente realizável, pois para fins medicinais, por exemplo, a variante determinista também era aceita, já que n horóscopo natal podia fornecer ao médico informações importante', sobre o desenvolvimento da doença. Mesmo a astrologia judicial e proibida aqui apenas na medida em que apresenta suas proposições

como certas e não como possíveis — uma proibição extremamente

difícil de ser controlada.

Assim, não admira que, mesmo após 1564, quando o “índice dos livros proibidos" fora publicado, surgiram ainda livros didáticos i tábuas que, na verdade, deveriam estar submetidos à proibição, mas que eram em sua maioria em latim, não compreendido pelos leigos, Os autores eram muitas vezes altas autoridades eclesiásticas cii|<>•. escritos haviam recebido até mesmo a aprovação da Igreja, como nu

caso da obra mais famosa dessa época, Speculum astrologiae, (Ir

Junctinus, em dois volumes, publicado de 1580 a 1581, em Lyon, com autorização de impressão concedida pela Igreja.

268 Kocku von Stuckrad

I

O papa Sixtus V tentou, portanto, agravar a proibição, m s u a

bula Constitutio coeli et terra, do ano de 1 586, consta que term s id o

«obretudo os astrólogos que, apoiados sobre uma ciência dc a s tro s errada e insustentável, teriam pretendido desvendar aos homls p a s - »ndo, presente e futuro, bem com o todos os assuntos possívs, a t r i­ buindo aos astros mesmo aquilo que depende da livre vonide. As disciplinas divinatórias seriam

estabelecidas pela astúcia de homens inescrupulosos e pelos mbustes

f dos demônios, por cuja atividade, conselho e ajuda toda adivir\ação se

alastra, ou porque eles são chamados expressamente para a ivestiga-

1 . ção do futuro, ou porque eles mesmos, pela própria baixeza e x >r ódio

1 à espécie humana, se imiscuem e se impõem secreta e desap^cebida-

mente com vãs revelações do futuro (segundo Braunsperger, 1 '28, 55).

I Por isso, o papa exige que as resoluções do Tridentinuri sejam

uplicadas de forma mais rigorosa do que haviam sido até então. Sim ul­

taneamente, Sixtus V exclui da proibição a astrologia judicial, desde

que esteja a serviço da agricultura, da navegação ou da medicina. Porém, nem sequer nessa variante conciliadora a doutrina pôde ser imposta uniformemente. E verdade que os parlamentos regionais franceses em Orléans (1560), Blois (1579) e Bordeaux (1583) proibi­ ram todos os calendários astrológicos, punindo os respectivas auto­ res, mas em universidades importantes da Itália — por exermplo, em Bolonha e Nápoles — os professores ainda estavam até mesrmo obri­ gados a redigir anualmente um calendário com prognósticos astroló­ gicos. O astrólogo Magini publicou sem dificuldades, no ano dje 1604, sua Tabulae primi mobilis, uma tábua destinada ao cálculo d^e horós­ copos e direções (ou seja, desdobramentos temporais); enm 1609,

seguiu-se a sua influente Privium mobile, composta de doz^e livros,

publicada em Bolonha com a autorização de impressão cdo papa

Paulo V, apesar de tratar de toda a astronomia e astrologia dda época

e de o autor, no nono livro, expressar benevolência perante ; a astro- j logia judicial.

Mais uma vez, mostra-se que a ciência astrológica ocupava um lugar tão sólido no pensamento dos soberanos que — de maneira semelhante aos editos dos imperadores romanos contra a astrologia — não era toda uma disciplina que estava condenada, mas a utiliza­ ção abusiva da ciência dos astros para a dissolução da estrutura esta tal ou para a suspensão da liberdade humana. Isso tam bém vale para

a bula Constitutio inscrutabilis, promulgada pelo papa Urbano VIII em

l2 de abril de 1631: a causa foi uma profecia do mesmo ano que pro

vocara inquietação na população no tocante ao futuro do Estado ecle

siástico. Urbano VIII, que, aliás, não se deixou impedir de apoiar o

astrólogo Campanella, condenou nessa bula, mais uma vez, unica mente a instrumentalização abusiva da astrologia, como a entendia a Igreja, sem questionar a sua legitimidade como um todo. É óbvio que essa ação papal era em si mesma uma instrumentalização da astrolo gia, destinada à legitimação do direito ao poder e ao controle da opi nião pública. Nunca houve uma astrologia neutra.

2. As

“ R E V O L U Ç Õ E S ” C I E N T Í F I C A S E F I L O S Ó F I C A S

Foi também o mesmo papa Urbano VIII quem pôs Galileu Galilei, em

1632, diante da Inquisição, porque ele havia se engajado de muitas maneiras pela aceitação da nova doutrina de Copérnico da rotação da Terra em torno do Sol. Com isso, chegamos à questão das chamadas

revoluções científicas do fim do século XVI e início do século XVIl

Com o conceito de “revoluções”, os historiadores do século XX defini

ram — de fato, o termo surge inicialmente em 1943, em Alexandre Koyré — uma radical e completa reestruturação do conhecimento da natureza que superou os modelos medievais e renascentistas do cosnui, possibilitou pela primeira vez uma “ciência objetiva”, abrindo assim a porta para a “modernidade” — ou seja, para o nosso tempo. Na ciên cia histórica atual já não há mais tanta certeza a respeito do status singular dessa suposta revolução; Steven Shapin, por exemplo, come

V '

ça o seu livro sobre o tema co m a frase: “A assim chamada v o l u ç ã o

científica nunca existiu [...]” (Shapin, 1998, 9). De uma p ep ectiv a histórico-cultural e histórico-social, falar de uma ruptura r/olucio- iiííria em direção à modernidade é uma estilização mítica d; v e rd a ­ deiras origens que tanto nivela a multiplicidade e a incoeréieia dos processos quanto os encadeam entos e os precursores na cin cia da Idade Média e do início da Idade Moderna. Em virtude do<estudos

d e Lorraine Daston (por exemplo, Daston, 2001), para Steve S h ap in

c muitos outros, atualmente é até mesmo questionável se “buve no

século XVII sequer uma entidade cultural única, coerente, bam ad a

'ciência’ que pudesse ter conhecido uma mudança revoluconária”. Visto dessa forma, trata-se apenas de

um feixe de múltiplas práticas culturais que serviam ao projósito de entender, explicar e dominar o mundo natural, mas que depunham cada uma de particularidades próprias e se modificaram cada i^ a à sua própria maneira. Hoje somos muito mais céticos frente à tese de que haveria algo como um “método científico” — uma sentença coerente de processos universais, eficientes, para a aquisição de conhecimentos científicos — e ainda mais céticos diante de exposições históricas

segundo as quais esse método teria surgido no século X V I I e, a partir daí,

nos teria sido transmitido sem maiores problemas. (Shapin, 19)98, 1 Is.) Em vez de prosseguir contando o mito da revolução ciientífica,

hoje se tende a analisar os processos culturais para produção? de opi­

niões compartilhadas coletivamente sobre realidade, verdade, homem c natureza e, com isso, são avistados os contextos sociais qu<e contri­ buíram para a imposição de um modelo científico ou filosóffico. Isso também é decisivo para a astrologia, pois somente com uma I tal abor­ dagem é possível reconhecer que a crise à qual, sem dúvidaa, a ciên­ cia dos astros chegou nessa época não foi engendrada por umi-ia supos­ ta refutação científica de suas proposições básicas, mas por)r fatores sociais e medidas relacionadas ao controle do discurso com os)s quais a astrologia perdeu sua reputação pública — por exemplo, pela ç extinção

de cátedras de astrologia nas universidades — , bem com o pela crcs cente imposição de uma visão de mundo m ecanicista que rejeitou como retrógradas todas as explicações “ocultas”, ou seja, “encoht i tas”, dos contextos planetários. A transição aí não ocorreu em absolu to tão subitamente como sugere o conceito de revolução, trata se muito mais de um lento processo de separação entre a ciência do* astros causai (aceita), a astronomia, do ramo da astrologia interprcl.i tiva, baseada em contextos invisíveis, que passava a ser progressiv.i mente rejeitada.

Com essa relativização, não quero de modo algum negar que

houve, no século XVII, mudanças bastante decisivas no campo cientí

fico e filosófico. No entanto, essas mudanças atingem em primciu linha aquilo que a partir daí foi considerado pela maioria como objc tiva e cientificamente sustentável e os processos com cuja ajuda se tentava adquirir conhecimento científico. Nesse sentido, deu-se con tinuidade a propostas que já haviam sido formuladas na Idade Médiii, na Renascença e na Reforma, agora complementadas por observa ções pioneiras na física. Isso não foi uma revolução, mas sim o esta belecimento de um método como disciplina-mestre cultural.

No documento História da Astrologia (páginas 135-138)