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4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.2 A IMAGEM

Os padrões de beleza e comportamento femininos existentes na mídia foram alguns dos tópicos abordados pelas entrevistadas. A disparidade entre suas próprias imagens e os padrões difundidos socialmente mostrou-se uma causa de conflito e sofrimento, sendo alvo de crítica e rejeição. A veiculação publicitária dos estereótipos de beleza e comportamento fomentam o “ser” confrontado pelo “ter que ser” midiático.

A utilização da imagem feminina na publicidade através da beleza padronizada e como objeto sexual, pôde ser verificada nas pesquisas apresentadas por e Courtney e Lockeretz

(1971), Kang (1997), Acevedo, Nohara e Arruda (2006) e Oliveira-Cruz (2017). Em todos esses trabalhos foi reconhecida a recorrente apresentação da mulher como objeto sexual pela mídia. Nos dois trabalhos mais recentes, a padronização da beleza feminina como jovem, bonita, magra e arrumada também foi descrita. (ACEVEDO; NOHARA; ARRUDA, 2006; OLIVEIRA-CRUZ, 2017)

“O que eu vejo da publicidade feminina é uma mensagem de mulher gostosa, poderosa. (...) mas as grandes marcas e a publicidade ainda não atingiu (sic) pessoas de vários tipos de corpos e os vários tipos de cores. Então o ideal continua sendo a mulher europeia: a branca, a magra né? Aquele biotipo padronizado né?”(Participante 1)

O estereótipo é uma forma simplificada de representação de algo que se adequa a um padrão. Por definição, portanto, é incapaz de dar voz à diversidade de corpos, belezas e comportamentos que permeiam o universo feminino. Nenhum estereótipo é capaz de representar o conceito abstrato “mulher” em toda a sua complexidade e multiplicidade sem deixar de fora características que sejam relevantes para parte das supostas representadas.

Cumpre apontar também que, mesmo nas peças publicitárias que se propõe a endereçar a questão da diversidade de corpos femininos, algumas características da beleza estereotipada permanecem vigentes como uso de maquiagem, pele tratada, unha feita e mulheres bem vestidas. (BAYONE; BURROWES, 2019) Esse fato indica que as imagens padronizadas, seja na cultura seja na publicidade, são resistentes a uma mudança absoluta.

“Posso falar? Eu faço unha, eu faço o cabelo, essas coisas, porque eu vou ser julgada. Porque, por mim, eu acho que a gente deveria fazer o que a gente quisesse. Eu não gosto de fazer a unha.” (Participante 10)

Será que faz sentido solicitar que as imagens da mídia se esforcem para quebrar todos os padrão de beleza? Caso seja, como garantir que, ao criar imagens novas desvinculadas dos padrões atuais, não sejam criados outros estereótipos tão aspiracionais e opressores quanto os atuais?

O uso de imagens estereotipadas justifica-se comercialmente na publicidade. a apresentação da mulher como objeto de desejo é associada aos produtos cujo público-alvo são os homens. Nessa posição, as mulheres representam apenas um prêmio para o consumo proposto. Já a manutenção do padrão de beleza figura como um modelo a ser seguido: uma

tática de comercialização dos produtos que possam contribuir com seu alcance. (OLIVEIRA- CRUZ, 2017).

O que se consome nos dois casos, em última análise, não é o produto, mas a identidade apresentada, as possibilidades de vida e o prestígio. (ROCHA; BARROS, 2006; SABAT, 2001) Por esse motivo, a tática comercial da imagem aspiracional foi e é tão utilizada. Esse fato é reconhecido pelas entrevistadas.

“Instagram ele super ele mexe com a nossa cabeça, mexe com a minha cabeça porque me incentiva de tal maneira que às vezes... por exemplo, uma coisa boba, a mulher vai lá comprar um creme (...) aí eu fiquei assim pensando ‘nossa, cara eu acho que eu quero esse creme'”. (Participante 7) “eu acho que a publicidade ela quer engajar um modelo e essa mulher que hoje a publicidade comercializa é um modelo de mulher pro (sic) patriarcado, para o universo masculino.” (Participante 1)

“No Instagram que eu sigo de perfis de mulheres assim é muita foto de biquíni, foto de bunda, foto de peito. É uma exposição de corpo muito alta. Meu marido (que trabalha com publicidade) fala que o que converte é biquíni, criança e cachorro” (Participante 6)

O diretor do Instituto Data Popular, Renato Meirelles (2013), também reconhece a utilização dessa lógica “aspiracional do passado” pelas agências de publicidade e lamenta que seu uso se seja mantido. “Não percebem que essa lógica não funciona mais.” (MEIRELLES, 2013)

De qualquer maneira, como já foi discutido, as imagens associadas a esse estereótipo já foram utilizadas por tanto tempo que permanecem no imaginário das entrevistadas e fazem parte da sua reflexão sobre o que seja o feminino. Assim, embora essa lógica possa não estar totalmente alinhada com os debates mais atuais acerca do feminino, ela ainda funciona. Logo, quando a publicidade opta por dar continuidade ao seu uso, entende que de alguma forma está dialogando com o público através de símbolos (re)conhecidos e com os quais haverá um certo grau de identificação. Nesse momento, o propósito comercial da publicidade se sobrepõe à possibilidade de que ela se situe como um agente de debates e de mudanças, ou, como propõe Sabat (2001), um agente educador.

Ainda, por essa ótica, o esforço de adesão das consumidoras a esses padrões é também uma busca por pertencimento já que através do consumo da imagem corporal, ou seja, da

adequação ao estereótipo, existe a possibilidade de aproximação ou afastamento em relação ao social. (BARBOSA; CAMPBELL, 2007; ROCHA; BARROS, 2006)

É claro que a função comercial da publicidade precisa ser considerada, mas o caminho para atender essa demanda precisa considerar os debates atuais sobre o feminino e as narrativas de opressão e sofrimento das mulheres. Considerar essas perspectivas, inclusive, pode se mostrar uma via comercial bastante vantajosa financeiramente para as marcas, ao expandirem seu público alvo, incorporando as mulheres que não se reconhecem na publicidade tradicional.

Ocorre que o reconhecimento e reforço desses modelos de beleza, imagem e comportamento feminino estereotipados, através do mundo publicitário, tem uma repercussão na saúde mental e emocional da mulher (ACEVEDO; NOHARA; ARRUDA, 2006) já que “a linguagem da propaganda não lhe dá a oportunidade de decidir se ela deseja seguir o modelo, mas apenas a de como se tornar uma perfeita visão de si mesma” (VESTERGAARD; SCHODER, 2004, p. 129 apud OLIVEIRA-CRUZ, 2017, p. 185).

O sofrimento feminino encontra alicerce no fato de que os padrões tradicionalmente expostos pela mídia, por serem distantes da realidade para a maioria das mulheres, propõe implicitamente um investimento no inalcançável, um esforço pessoal mandatório na conquista dessa imagem, tal qual a retórica da campanha publicitária da Marisa. A mulher nesse contexto é a responsabilizada individualmente pelo alcance ou não dessa beleza estereotipada. (LANA; SOUZA, 2018)

“Olha particularmente eu acho que vai deixar a mulher deprimida, deixa a mulher numa busca por algo impossível de se alcançar né? (Participante 1 – sobre as imagens idealizadas da mídia)

“Instagram conseguiu com certeza estragar a minha mente. Eu achava que todo mundo era feliz todo mundo era bem sucedido, e só eu que tava (sic) mal” (Participante 7)

Cabe fazer uma menção especial para o relato da Participante 3, acerca da consequência prática desses modelos observada em seu consultório de estética.

“As marcas, elas usam muito essa questão, né? Da pessoa ser bonita, da pessoa ter uma bunda bonita. (...) Porque eu trabalho com estética né? E eu bato muito na tecla de que mesmo fazendo procedimentos as pessoas têm que ser diferentes, ninguém tem que ficar igual a ninguém. E as minhas pacientes

chegam muito no consultório com essa questão da modelo do Instagram: “Olha, eu quero essa boca”.” (Participante 3)

A imagem aspiracional imposta pela mídia torna-se uma obrigação. O corpo, a beleza e o visual transformam-se em um produto a ser consumido e, como tal, uma forma de comunicar- se e vincular-se socialmente. Não aderir, por escolha ou impossibilidade, significa se retirar desse “sistema que classifica bens e identidades, coisas e pessoas, diferenças e semelhanças na vida social contemporânea”. (ROCHA; BARROS, 2006, p. 38) Não se adequar, não se esforçar, não conquistar essa imagem idealizada é também abrir mão de um lugar que se pode ocupar.

Em última análise é dessa inadequação que surge o sofrimento. Mas não se adequar ao padrão midiático não seria, em si, uma forma de comunicar valores, prioridades e posicionamento social? Não consumir a imagem não é um consumo em si, pela via da negação? Certamente que sim, mas relacionar-se com essas imagens compartilhadas culturalmente somente pela via da negação parece fomentar frustrações e não ser saudável. Como acolher todas as percepções subjetivas do feminino e conceder a elas espaço na mídia?

Diante desse conflito entre imagem pessoal e imagem midiática, a maioria das entrevistadas relatou não se identificar mais com as propagandas que fazem uso desses padrões. Foi possível perceber um distanciamento entre as mulheres e o discurso de marketing representado pela publicidade.

“é como se você tivesse sempre que ser como alguém, é como se você não pudesse pensar por si própria, é como se você tivesse que seguir aquele padrão, como se você tivesse que realmente ser aquilo que a maioria é” (Participante 10)

“Não me sinto representada pela publicidade feminina, não me sinto. E o que eu vejo na publicidade feminina são os apelos aos códigos machistas do feminino. (...) Para mim a publicidade feminina continua vendendo uma mulher para o universo masculino, não pro (sic) nosso universo ainda. Por isso que eu tenho muita dificuldade em consumi-la” (Participante 1)

A manutenção dos padrões de beleza tradicionais na mídia afasta as mulheres das marcas e causa um estranhamento entre elas e a publicidade. Dessa busca feminina por sentir- se representada surgem movimentos como o femvertising que dão um novo foco sobre representação da mulher.

Ainda assim, considerando que o consumo e a publicidade ocupam um espaço simbólico imprescindível nas relações sociais (FEATHERSTONE, 1991, 1995) enquanto de mediadores do diálogo entre cultura, indivíduos, estilos de vida e construções simbólicas (ARNOULD; THOMPSON, 2005) contribuindo com a estruturação de “valores e práticas que regulam relações sociais, que constroem identidades e definem mapas culturais” (ROCHA, 2005, p.124), retirar-se de maneira total de sistema é impossível.

Não consumir - seja o produto, seja a identidade aspiracional ou a negação de ambos – não é factível. Outras vias precisam se abrir para garantir a manutenção do diálogo entre consumidores insatisfeitos, publicidade e cultura; outras estratégias de negociação entre essas dimensões são convidadas a emergir desse debate.

Na tentativa de encontrar uma saída para esse distanciamento, as entrevistadas mencionaram buscar na publicidade imagens que representem verdadeiramente sua identidade, subjetividade e beleza e, assim, as inspire ao invés de exercerem uma cobrança opressora por adequação. As mulheres estão procurando se reconhecerem na publicidade através de uma

busca pelo real.

“Eu prefiro consumir algo que me inspire né? A ser do jeito que eu sou, a me vestir do jeito que sou.” (Participante 1)

“aí ela (uma conhecida) postou uma foto linda de short, com a perna cheia de celulites (...) Sabe quando você olha aquela foto? E aí eu acredito que a maioria das mulheres ia se preocupar em murchar a barriga, botar uma bermuda que escondesse... e ela tirou aquela foto tão naturalmente... então quando eu olho aquela mulher eu falo “Gente que mulher fantástica” (Participante 4)

“é essa a pessoa que não é perfeita, a pessoa que é aquela acho que eu estou vendo muito isso nas propagandas, é a mulher que não está maquiada, é a mulher que se atropela no trabalho, que é essa se atropela com os horários, que esquece filho na escola” (Participante 2)

Esse desejo feminino foi mencionado por Meirelles (2013):

A mulher quer uma comunicação que a inspire a melhorar um pouco mais de vida, mas não a deixar de ser quem ela é. E quando as empresas vendem um aspiracional que está longe de ser desejado e possível para essa mulher, ou ela se frustra ou simplesmente conclui que esse produto não é para ela e cria uma barreira em relação a ele (MEIRELLES, 2013)

Considerando o processo cíclico através do qual a cultura é absorvida pela publicidade, é por ela representada e à ela retorna através dos indivíduos, (MCCRAKEN, 2017; SABAT 2001) essa busca feminina pelo “real” pode operar como um mecanismo de inversão da lógica publicitária. Isso porque o consumo das imagens aspiracionais estereotipadas e hegemônicas que representam uma generalização do público feminino está sendo rejeitada. Em seu lugar precisa emergir uma multiplicidade de imagens que possa representar uma igual diversidade de mulheres. O individual talvez seja um guia para o aspiracional e generalizações não alcancem mais o objetivo comercial da publicidade.

A busca pelo real ou por reconhecimento também se traduz em uma busca por confiança. O consumo passa a ser vinculado à indicação, ao boca a boca, ao uso de referências como forma de encontrar a identificação que a publicidade de massa não entrega mais.

Essa busca feminina por uma identificação alternativa como forma de superar os conflitos gerados pelas imagens estereotipadas parece fazer com que se afastem da publicidade e recorram a outros mecanismos de acesso ao consumo tal como a indicação. Segundo Meirelles (2013) o boca a boca influencia os hábitos de consumo de 7 a cada 10 mulheres.

“Indicação. (...) Por mais que um anúncio seja relevante para mim eu vou buscar uma referência dele. Por exemplo, eu to (sic) estudando desenvolvimento espiritual. Ai apareceu algum anúncio (...) citando uma pessoa. Eu vou buscar nas referências que eu tenho de outras pessoas se elas mencionam essa pessoa desse anúncio. Se das pessoas que eu já tenho confiança, ninguém mencionar, esse anúncio não me pega. É um boca a boca pelo Instagram” (Participante 6)

Neto e Brandão (2020) realizaram um estudo recente sobre esse tema especificamente no ambiente eletrônico. Dentre as hipóteses testadas no estudo, os autores puderam confirmar que o boca a boca no ambiente online influencia positivamente o consumo conspícuo, ou seja, as pessoas parecem estar mais propensas a consumirem quando recebem sugestões e indicações de conhecidos ou seguidores. Os autores acreditam que esse consumo possa ser reforçado pelo senso de pertencimento a um determinado grupo social. (NETO; BRANDÃO, 2020)

Essa ideia de busca pelo real e boca a boca se assemelha à noção de pertencimento que as imagens aspiracionais tradicionais traziam consigo, mas de um modo mais aproximado da realidade individual e que talvez inspire menos sentimentos de frustração.

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