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4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.3 O LUGAR

Os dados coletados mostraram que o espaço que família e carreira ocupam na rotina das entrevistadas é parte das reflexões acerca do que para elas significa o feminino.

O espaço tradicional, “do lar”, é representado como sendo da mulher por excelência. A posição alinhada com essa visão mais tradicional foi mencionada pelas mulheres que verbalizaram durante a entrevista assumir um papel mais voltado para o lar ou cuja narrativa de feminino está mais alinhado à passividade, à submissão ou à dedicação focal nos filhos e marido. É possível perceber em algumas narrativas que a dimensão doméstica da vida detém a maior parte da sua atenção ou do seu investimento emocional.

A posição assumida por essas entrevistadas guarda alguma semelhança com as categorias “o lugar da mulher é no lar” e “mulher dona de casa” encontradas por Courtney e Lockeretz (1971) e por Acevedo, Nohara e Arruda (2006), no sentido de se dedicarem ao lar, às atividades domésticas ou assumirem posições mais tradicionais dentro da dinâmica familiar.

A diferença reside no julgamento atribuído a essa posição: na pesquisa de Acevedo, Nohara e Arruda (2006), por exemplo, as representações publicitárias da “mulher dona de casa” faziam parte das imagens consideradas depreciativas da mulher. As participantes mais alinhadas com esse conceito, por outro lado, defendem que a mulher pode assumir uma postura mais tradicional em relação ao lar e à família e encontrar nisso satisfação pessoal.

Assim, embora a imagem de forma geral seja a mesma, a experiência da dedicação ao ambiente doméstico das mulheres desse grupo está mais próxima das imagens publicitárias de “rainha do lar”: “mãe zelosa, preocupada com o bem-estar de todos, que sente prazer ao realizar sua tarefa” (OLIVEIRA-CRUZ, 2017, p.185)

A Participante 2, por exemplo, relata que seu investimento profissional no empreendedorismo foi planejado como forma de garantir tempo e liberdade para estar com os filhos. Isso mostra que essa opção foi refletida e é voluntária, além dominar sua esfera profissional.

“toda mulher merece sim, por ser mulher, trabalhar meio período para poder ficar meio período com os filhos” (Participante 2)

A mesma participante apresenta uma visão bastante tradicional da posição que a mulher deve assumir no âmbito familiar, bastante similar à imagem publicitária de “rainha do lar” apresentada por Oliveira-Cruz (2017).

“E o feminino é diferente. O feminino é a mulher que é submissa ao homem, não submissa de “você é o senhor, aí você manda”, mas é a mulher que vai lá e faz uma comida para o homem para agradar ele, é a mulher que sim, fica com o filho para o homem ir trabalhar, enquanto ela faz meia jornada o marido faz jornada inteira, é a mulher que cuida de casa com carinho, então são coisas totalmente diferentes que a gente tem que tomar cuidado. (Participante 2)

A Participante 6 expressa esse alinhamento quando conta que fez um movimento de retorno para esse feminino no seio familiar depois de experimentar uma posição mais moderna ou empoderada.

“Na minha casa por muito tempo eu vestia as calças, né? Dizendo o linguajar popular. É que controlei tudo: finanças, planejamentos, tudo isso. E dentro do arquétipo familiar eu vejo que isso gerou uma desordem. (...) Dentro da casa, eu acho que existe um arquétipo familiar onde esse lado “força”, ele precisa ser lapidado porque senão desestrutura o casamento. (...) Conforme eu fui tendo maturidade, fui desenvolvendo habilidades emocionais, fui entendendo, né? (...). Porque na estrutura familiar “pai, mãe, filho” e “homem, mulher”, eu acho que aí a fragilidade e o lado mais sensível tem que aparecer. (...) Porém no lar como mãe, como pilar, como esposa isso precisa aparecer porque o homem tem um papel dele dentro desse lar” (Participante 6)

Assim, podem ser observadas duas diferenças principais entre o resultado das pesquisas de Courtney e Lockeretz (1971) e de Acevedo, Nohara e Arruda (2006). A primeira disparidade é que nas pesquisas a imagem da “mulher do lar” representava uma fragilidade feminina ou uma imagem depreciativa, enquanto a dedicação ao lar foi pontuada pelas participantes com orgulho e prazer. Além disso, as participantes mantiveram sua atuação profissional como empresárias, sugerindo uma mudança no perfil da “mulher do lar”: essa mulher pode assumir uma postura mais tradicional voluntariamente sem que isso signifique abdicar integralmente de outros espaços sociais.

Independente das diferenças observadas entre as pesquisas mencionadas e a narrativa das participantes, é possível perceber que a publicidade guarda uma relação íntima com os significados de gênero circulantes na sociedade. Nesse sentido, Oliveira-Cruz (2017) aponta que:

É possível afirmar que a publicidade tem uma função importante no processo de naturalização das relações de poder e dominação que envolve as questões de gênero por meio do uso de representações que cristalizam os papeis sociais de homens e mulheres. (...) Desse modo, ao reiterar as representações sociais sobre comportamentos e posições sociais ocupadas por homens e mulheres, a publicidade favorece uma aprendizagem de gênero, tornando os papeis socialmente aceitos. (OLIVEIRA-CRUZ, 2017, p. 183-184)

Essa mesma noção de que a publicidade contribui para a manutenção ou reconstrução dos significados do gênero é defendida por Sabat (2001). A publicidade, para o autor, pode funcionar uma pedagogia cultural acerca das concepções de gênero.

De acordo com Oliveira-Cruz (2017) e Sabat (2001), as mulheres que se enquadram no grupo mais tradicional o fazem por serem fruto de uma construção social do que significa o feminino e de qual é o lugar que a mulher deve ocupar na sociedade. Os questionamentos feministas acerca dessa posição, no entanto, precisam ser endereçados sem que se esqueça que há mulheres que ocupam esse espaço voluntariamente.

Daniel Miller (2005) menciona essa devoção voluntaria ao lar, ao marido e aos filhos em sua etnografia relatada no livro Teoria das Compras. Segundo o autor, no contexto social pós-feminista pode ser observado uma desconstrução do tradicionalismo doméstico junto com a construção de um ideal forte da mulher individualista. Diminuem o número de famílias estruturadas ao redor do casamento enquanto aumenta o índice de divórcios e de lares individuais. O autor relata precisamente que esses domicílios de uma única pessoa são dominados pelas mulheres que tem ambição profissional e buscam, motivadas pelos feminismo, uma carreira para si. Ocorre, no entanto, mesmo ao perseguirem suas carreiras durante um tempo, essas mulheres voltam a priorizar suas vidas amorosas e sua maternidade, sendo esse o foco principal de suas vidas adultas. (MILLER, 2005) Inclusive o autor descreve os filhos como “sujeitos de devoção” para os quais as mulheres dedicam sua energia quase suspendendo parte de sua vida pessoal:

O surpreendente paradoxo é que foram precisamente aquelas mulheres que se tornaram mais assertivas sobre a centralidade da carreira e do autodesenvolvimento autônomo para as mulheres, que pareciam estar mais obcecadas pelo repúdio completo desses mesmos ideais quando renasciam como mães e se tornavam

inteiramente dedicado às necessidades e caprichos de seus bebês5 (MILLER, 2005, p. 125, tradução nossa)

Esse trabalho está bastante alinhado com as entrevistadas mencionadas que mesmo investindo tempo em suas carreiras, dão prioridade para suas famílias e ocupam um lugar mais tradicional no lar. Os ideais feministas são rejeitados voluntariamente e há um retorno para um lugar mais tradicional ocupado pela mulher.

“Eu sempre lutei pelo empoderamento feminino, mas o empoderamento feminino estava brigando com a minha maternidade” (Participante 2)

Essa realidade mostra que a publicidade precisa considerar não somente as novas imagens emergentes do feminino, mas dialogar também com as imagens tradicionais que permanecem sendo válidas para uma parte do público. Novamente, simplesmente forçar uma mudança no padrão de imagem sobre o espaço da mulher pode deixar de fora muitas experiências e subjetividades. Todo estereótipo exclui.

Embora a visão mais tradicional tenha sido a realidade social representada pela mídia por muito tempo, cada vez mais o investimento em vida pessoal e carreira tem se apresentado como um caminho possível. Esse outro lugar social torna-se uma alternativa factível e acessível.

Esse embate de posições pode ser percebido também na publicidade: as imagens da mulher como sendo “do lar” ou dependente dos homens tem convivido cada vez mais com anúncios que retratam as mulheres no meio profissional e independentes. (OLIVEIRA-CRUZ, 2017; NASCIMENTO; DANTAS, 2015) Essa mudança progressiva na representação midiática da mulher reflete uma mudança, que não está consolidada ou concluída, na relação que elas estabelecem com os papéis sociais que querem, devem ou podem ocupar.

5 The striking paradox is that it was precisely those women who had become most assertive about the

centrality of career and autonomous self-development for women, who appeared to be most obsessed by the complete repudiation of these same ideals when reborn as mothers and who become entirely devoted to the needs and whims of their infants” (MILLER, 2005, p. 125)

Esse movimento de mudança pode ser percebido pela diversidade das narrativas encontradas. Nesse sentido, enquanto algumas entrevistadas se identificaram mais com o papel tradicional de “mulher do lar”, submissa e que serve a família, outras criticaram essa posição ou exaltaram sua independência e autonomia.

“Então hoje a gente ainda tem muito isso da mulher que ela se culpa se não teve tempo de arrumar a cama de manhã ao sair, ela se culpa se chegou e encontrou o marido, filho ou seja lá quem divide o espaço com ela de mal humor porque naquele dia ela não conseguiu deixar a comida pronta. (...) a gente ainda vê mulheres que têm uma mentalidade mais machista, retrógrada, mais fechada do que alguns homens na verdade né? (...) acho que fazem questão de permanecer nesse papel.” (Participante 4)

“É muito desgastante porque eu trabalho muito e às vezes eu tenho que chegar em casa... por que eu né? Que tem (sic) que fazer a comida? Eu trabalho tanto quanto ele. (...), mas eu sei que essa tarefa é dada a mim sabe? Então é minha responsabilidade fazer essas coisas. (Participante 3)

Há ainda aquelas que estão na transição, ou seja, ao mesmo tempo assumem esse lugar, o criticam. As entrevistadas nessa posição mostraram-se descontentes com a própria noção de que a mulher precisa ocupar um lugar central nas atividades domésticas, mesmo que elas próprias reforcem essas noções.

A Participante 7, por exemplo, declara sua percepção de que a demanda doméstica atribuída a mulher é injusta e desproporcional.

“Se a gente não fizer, nós mulheres, a gente é preguiçosa, sabe? (...) A desculpa do homem é falar assim: “eu estou trabalhando”, mas e ai? A mulher também tá (sic) trabalhando e a mulher que tem que pegar e botar a mão na louça pra lavar, botar a mão na máquina de lavar roupa pra tirar pra estender a roupa. (...) Acho que se você comparar com a tarefas de casa a mulher é uma explorada (...). Minha irmã casou com um homem machista ao extremo, sabe? E ele assim quer que ela faça as coisas, sabe? (...) Ela faz quase tudo sabe e ele tipo... eu fico chocada, sabe? Que ela aceita isso.” (Participante 7)

A mesma participante, no entanto, quando está refletindo sobre as imagens femininas pelas quais se sente representada, reforça o estereótipo da mulher dona de casa, responsável pelas atribuições domésticas.

“Mas é isso... acho que essas mulheres (famosas do Instagram), elas não me representam no sentido de que a maioria não é aquela que bota a mão mesmo na massa de trabalhar, de botar a mão na massa dentro de casa, de ajudar

em casa, e de arrumar a casa, de botar a roupa pra lavar, fazer comida, de lavar a louça, porque isso daí, eu não sei se elas fazem não.” (Participante 7)

As imagens da publicidade que se alinham com essa concepção da mulher cujo lugar central não é o seio doméstico são cada vez mais comuns. Nas propagandas analisadas no estudo de Bayone e Burrowes (2019), por exemplo, foi possível perceber que as atitudes de independência e liberdade foram constantes.

A mulher tem sido cada vez mais representada em ambientes profissionais ou ocupando espaços de autoridade. Isso mostra que esse grupo que não se identifica com a mulher “do lar” também ganhou espaço na publicidade e é considerada pelos agentes de marketing. Ainda assim, cabe apontar que o discurso mais comum não é aquele que questiona a atribuição exclusiva das atividades domésticas à mulher, mas aquele que representa a mulher extrapolando os limites do lar. (OLIVEIRA-CRUZ, 2017)

Independente da forma como cada participante se identifique acerca do tema, o equilibro entre as duas posições mediado pelas demandas da sociedade apresenta-se como fonte de

conflito, sofrimento e frustração. Aquelas que priorizaram o espaço familiar, sentem que suas

carreiras demandam um tempo que gostariam de dedicar aos filhos; aquelas que priorizaram a carreira, relatam as perdas na convivência familiar.

Assim, o movimento de investir em uma atividade profissional de sucesso mostrou-se conflitante com as demandas pessoais de maternidade e cuidados com a casa. As tensões nesse tema se mostram de duas maneiras:

a) Ao se depararem com a necessidade de dividir o tempo entre o público e o privado e se sentirem perdendo experiências em algum ou nos dois espaços;

b) No incomodo, já apresentado, com a concepção social de que certas atribuições domésticas devem ser consideradas naturalmente femininas.

“Meu maior sofrimento assim, de eu precisar trabalhar, gostar de trabalhar, gostar de estar com meu filho, gostar de estar na minha casa, gostar de cuidar da minha casa e não poder. E não poder ser 100% para isso por causa do tempo. (...) eu acho que é a maior frustração da mulher, da mulher atual, é exatamente isso: tem que trabalhar período integral e não consegue curtir os filhos” (Participante 2)

“eu costumo dizer que o tempo (...) e eu pouco usufruí da infância da minha filha (...) Aliás, eu levei mais de 20 anos para conseguir tirar férias. Uau, foram assim 20 anos de dedicação total e plena. Foi muito sacrificante e traz efeitos até hoje, né? Porque a gente se pergunta... eu fui ao cinema com a minha filha quando criança uma vez, então eu olho hoje pra ela e o tempo passou e a gente não teve tempo para isso.” (Participante 4)

Uma das narrativas comuns sobre esse conflito dos lugares foi a demanda social de que a mulher os ocupe a todos e com excelência. Uma das imagens modernas da mulher na publicidade também é justamente essa: a super mulher, aquela que consegue desempenhar papéis múltiplos e diversas jornadas em sua rotina. (ACEVEDO; NOHARA; ARRUDA, 2006; OLIVEIRA-CRUZ, 2017)

Na pesquisa realizada, essa imagem foi entendida de forma positiva justamente porque a “super mulher” consegue conciliar uma vida profissional com os demais afazeres que já eram parte da sua atribuição doméstica: “Ela é uma super mulher. Ela dá conta de fazer tudo. Ela cuida da casa, dos filhos, do marido e é uma profissional” (ACEVEDO; NOHARA; ARRUDA, 2006, p. 103, tradução nossa) Essa construção também funciona como uma imagem aspiracional já que a mulher, “ao se esforçar”, consegue ser boa em todas as tarefas que se propuser. Nesse sentido, essa imagem da mulher independente e autônoma passa a constituir um novo estereótipo do feminino. (BAYONE; BURROWES, 2019)

Nesse ponto existe uma contradição a ser apontada: enquanto a suposta capacidade da mulher em realizar todas as tarefas tem uma conotação elogiosa, a materialização dessa “super mulher” é desgastante e impossível. Mais uma vez as idealizações trazem consigo pressões, obrigações e inadequações.

“eu brinco que eu queria pegar a mulher que queimou o sutiã em praça pública e queimar ela, porque ela ferrou a mulher. Ela deu uma jornada de tríplice trabalho, porque quando a gente tem filho é casa, marido, filho. Ela não colocou a mulher numa situação nova, ela só aumentou a carga da mulher, só.” (Participante 6)

“a gente está vivendo essa transição da mulher que tem que ser super trabalhadora mas que também tem as super mães que a gente vê no mercado, nas redes sociais, e as mulheres divas maravilhosas. E a gente fica nesse peso de ser a mulher perfeita.” (Participante 2)

Assim, a valorização da mulher multitarefa, responsável exclusiva pela construção de uma vida bem sucedida, embora seja reconhecida nas imagens publicitárias (ACEVEDO;

NOHARA; ARRUDA, 2006; LANA;SOUZA, 2018; OLIVEIRA-CRUZ, 2017), não está alinhada com o discurso das mulheres entrevistadas.

4.4 O ESTRANHAMENTO COM O DISCURSO DOS AGENTES DE

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