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4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.4 O ESTRANHAMENTO COM O DISCURSO DOS AGENTES DE MARKETING

Seja no âmbito dos padrões estereotipados de beleza e comportamento, seja no engessamento da mulher na esfera doméstica, o que se verificou é que as narrativas de estranhamento com a publicidade foram frequentes nas entrevistas realizadas. Algumas estratégias já foram relatadas como uma tentativa de endereçar esse distanciamento cada vez mais comum com o público feminino.

Em relação à imagem, o que se percebe é que as marcas estão buscando representar um leque maior de corpos e belezas em suas campanhas. A preocupação com o debate se materializa por um afastamento da beleza inatingível através da escolha de modelos com maior diversidade: mulheres gordas, mulheres com peito e bunda naturais, mulheres sem o excesso de tratamentos e academia; mulheres negras, mulheres asiáticas. (OLIVEIRA-CRUZ, 2017) Essa ampliação das possibilidades de beleza dialoga com a necessidade de reconhecimento que as entrevistadas narraram e que as mulheres de maneira mais ampla têm manifestado.

“A publicidade, ela tem que despertar algum interesse no produto e para isso eu tenho que me identificar; a mulher (Participante 9) precisa se identificar com aquilo que está sendo apresentado, senão eu não compro” (Participante 9)

“Eu prefiro consumir algo que me inspire né? A ser a do jeito que eu sou a me vestir do jeito que sou.” (Participante 1)

Ainda assim, essa mudança não ocorre sempre de forma proativa, pacífica ou orgânica. A Victoria’s Secret, uma marca mundialmente famosa de lingeries, foi fortemente questionada pelo padrão estético exposto em seu desfile anual. Mesmo buscando diversificar a etnia das suas modelos e incluindo uma modelo transgênero em sua passarela, a marca permaneceu exibindo mulheres magras e altas cujo padrão estético é inalcançável para a maioria do seu público. (FERREIRA, 2019)

FIGURA 9 – Modelos da Victoria’s Secret no desfile de 2017

Fonte: https://www.fashionismo.com.br/2017/11/victorias-secret-fashion-show-2017/

A insistência da marca no padrão de beleza que a consagrou afetou sua representatividade junto ao público consumidor e, em 2018, o desfile alcançou uma audiência considerada baixa. Além disso, a marca foi alvo de críticas pelas clientes acerca do tamanho apertado de suas lingeries e suas ações responderam com uma desvalorização de 41% no mesmo ano. A empresa, ao invés de buscar fortalecer seu diálogo com as consumidoras e acolher novos padrões, decidiu extinguir seu desfile anual a partir de 2019. (FERREIRA, 2019) Em contrapartida, outra marca de lingerie mostrou-se muita mais inclusiva: a Savage x Fenty. A marca tem como premissa a inclusão de diversos tipos de corpos e belezas e está alcançando bons resultados financeiros com essa estratégia. (FERREIRA, 2019)

FIGURA 10 – Modelos da Savage x Fenty no desfile de 2018

Fonte: https://www.hypeness.com.br/2019/11/incapaz-de-abracar-diversidade-victorias-secret-confirma-fim-de- desfile-anual/

Pelo contraste acima é possível perceber que nem todas as marcas conseguem ou estão dispostas a receber bem os debates acerca da imagem feminina na publicidade. Ainda assim, outras tantas emergem nesse contexto e dão voz a uma diversidade que alcança mais mulheres e suas belezas. Vale apontar que a lógica comercial da propaganda permanece intacta, já que, conforme mencionado, os resultados financeiros da Savage x Fenty, advindo da venda da produtos, se mantém.

Uma observação pertinente, no entanto, é que mesmo as marcas que apostam na diversidade feminina em suas campanhas, rompendo com os padrões idealizados de mulher, mantem intactos algumas imagens tradicionais de beleza expressa nas roupas, na maquiagem, nas unhas e no cabelo. (BAYONE; BURROWES, 2019; OLIVEIRA-CRUZ, 2017) Vale lembrar que esses foram os símbolos mais mencionados pelas entrevistadas como expressões, ou negações, do feminino.

Mesmo em meio a diversos debates e avanços publicitários, ainda há um longo caminho a percorrer já que os símbolos do padrão estético que resistem também são aspiracionais, também são demandantes e também geram sofrimento.

“Posso falar? Eu faço unha, eu faço o cabelo, essas coisas, porque eu vou ser julgada. Porque, por mim, eu acho que a gente deveria fazer o que a gente quisesse. Eu não gosto de fazer a unha.” (Participante 10)

Negar esses símbolos ou invertê-los de forma simplificada também não se mostra uma tática que atinge positivamente todas as mulheres. Esse recurso da inversão foi mencionado por Oliveira-Cruz (2017) em relação ao papel social desempenhado pelas mulheres na mídia, mas o paralelo para a inversão da imagem também faz sentido. A masculinização da mulher, por exemplo, como forma de rejeição das imagens tradicionais, tanto no mundo real quanto na publicidade, foi mencionada por duas entrevistadas. Em ambos os casos, a menção foi feita num sentido de crítica.

“Aí a pouco uma outra mulher entrava na propaganda também. Toda masculinizada né? Naquele estilo que hoje é lindo para a sociedade brasileira, mas são gostos. Entrava a mulher toda masculinizada com bermuda masculina, chinelo no pé, camiseta tão... Aí ela tirava a camiseta estava só com um top por baixo, toda peluda.” (Participante 8)

Outro ponto a ser mencionado é que tanto no padrão tradicional de beleza, quanto na busca pela diversidade, a idade parece um ponto incontestável. A beleza permanece sendo vinculada à imagem da juventude, embora um estudo acerca do assunto mostrou que a representação feminina com modelos mais velhas poderia ser bem aceita e fomentar o consumo. Segundo as autoras, a representações de envelhecimento podem ir muito além do aspecto físico sendo vinculadas, por exemplo, à liberdade e à dignidade. (GOIA; LIMA; BARROS, 2018)

É compreensível, no bojo dessa discussão, que a desconstrução absoluta de todos os símbolos existentes na mídia seja uma tarefa difícil. Qualquer imagem que seja utilizada representará apenas uma parte do público ao deixar de fora alguma característica significativa das o restante. Ainda assim, a publicidade precisa encontrar formas de participar desse debate fomentando o diálogo com o público feminino, fugindo do objetivo aspiracional vazio e buscando caminhos nos quais a imagem e a identidade vendida não representem um, ou vários, modelos de opressão.

Em relação às discussões sobre o lugar, o estranhamento feminino passa pelo engessamento do espaço da mulher no âmbito doméstico. Em resposta, a publicidade buscou estratégias que passam pela inversão dos papéis sociais tradicionais masculino e feminino e pela representação cada vez mais frequente das mulheres na esfera pública. (OLIVEIRA- CRUZ, 2017; LANA; SOUZA, 2018)

A primeira estratégia consiste em inverter a imagem de homens e mulheres nas situações cotidianas: “mulheres passam a ser consumidoras de cerveja e conquistadoras de homens;

provedoras do lar e homens responsáveis pela limpeza; ou encarnam executivas como público prioritário de automóveis.” (OLIVEIRA-CRUZ, 2017, p. 189)

Nas entrevistas realizadas, não foi possível perceber uma menção clara a essa inversão. Apesar disso, na narrativa de algumas participantes foi observada a contestação da ordem hierárquica predominante sobre as atividades do lar. Para elas, a atribuição das atividades domésticas às mulheres já não condiz com a existência de uma carreira profissional. O questionamento feito, nesse sentido, não é sobre a possível inversão dos papéis, mas sobre a divisão das tarefas de forma mais igualitária.

“A desculpa do homem é falar assim: “eu estou trabalhando”, mas e aí? A mulher também tá trabalhando e a mulher que tem que pegar e botar a mão na louça pra lavar, botar a mão na máquina de lavar roupa pra tirar pra estender a roupa. (...) Acho que se você comparar com a tarefas de casa a mulher é uma explorada.” (Participante 7)

A inversão dos papéis nas propagandas é, muitas vezes, retratada de forma inesperada e com desfechos vinculados ao humor. (OLIVEIRA-CRUZ, 2017) Embora essa forma de representação possa fomentar a discussão sobre o assunto, o ponto relevante em pauta deveria ser a busca por igualdade na distribuição das tarefas domésticas. Quando a publicidade se vale da estratégia de inversão, ela está mantendo a mesma cena, mudando somente os atores: ainda há uma hierarquia no lar, uma responsabilização unilateral pelas atividades domésticas. Que mudanças estruturais realmente profundas podem advir disso?

A outra resposta publicitária para o estranhamento em relação ao feminino “do lar” é a representação das mulheres cada vez mais na esfera pública. Essas representações passam por imagens de autonomia, independência e autoridade. (BAYONE; BURROWES, 2019; OLIVEIRA-CRUZ, 2017) A mulher, então, pode ocupar qualquer lugar que quiser e passa a ser a única responsável pelo seu sucesso pessoal, (LANA; SOUZA, 2018) mas não deixa de ser também responsável pelas atribuições domésticas.

A construção dessa retórica esbarra em dois apontamentos: a autonomia distancia a mulher do movimento de união e coletividade com outras mulheres; e o atendimento a todas as demandas da esfera publica e privadas a obriga a ser a “super mulher”. É interessante considerar que as críticas à existência dos estereótipos tradicionais sejam traduzidas em busca por novos estereótipos. (BAYONE; BURROWES, 2019; OLIVEIRA-CRUZ, 2017)

Qualquer que seja a estratégia adotada pela publicidade para dialogar com a mulher sobre os espaços sociais, é interessante manter o foco na perspectiva de igualdade entre os gêneros, busca tão intensa dos debates atuais. As saídas alternativas de inversão, valorização da mulher independente ou da sua versão multitarefa podem reverter-se em novos engessamentos ainda mais opressores.

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