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GUERRA FRIA NA CONSTRUÇÃO DO MANUAL ESCOLAR

1.1. A importância da História e da Educação Histórica na formação do indivíduo

O velho chavão de que a História deve permitir compreender o presente através do estudo do passado e vice-versa (Bloch, s.d.), liga-nos de imediato àquilo a que se chama a função social da História (Le Goff, 1974) e que continua também a permanecer como um dos aspectos mais presentes nas finalidades do ensino da História nos PE. Esta ideia da História dominada pelo presente provém de B. Croce que ligou a História às necessidades e às situações do presente (Gardiner, 1995, 275-276). Convém, no entanto, não esquecer que à relação entre passado e presente, tem de se acrescentar o horizonte do futuro. Segundo Schemilt (2000, cit. em Gago, 2007, 123), o passado, o presente e o futuro têm o seguinte sentido:

“Perspectiva-se o presente quando se propõe uma visão longitudinal, através do olhar retrospectivo visando a compreensão do que terá acontecido para o que está a acontecer.”

Curioso é verificarmos através do estudo de Pais (1999) intitulado “Consciência Histórica e Identidade”, que a generalidade dos jovens europeus inquiridos considera que a História pode proporcionar sobretudo o conhecimento do passado e a compreensão do presente, mais do que a orientação para o futuro. A compreensão do presente é mais valorizada do que o conhecimento do passado sobretudo pelos jovens dos países europeus pós-socialistas, pois a História pode para eles representar uma compreensão de si mesmos no momento presente (Pais, 1999).

A ciência histórica só encontra a sua grande importância enquanto conhecimento científico quando este adquire formas de mobilização. É, sem dúvida, o campo da Educação Histórica que permite garantir a análise dessa aplicabilidade do conhecimento histórico através da investigação do acto educativo em que se inscreve. Assim, interessa-nos particularmente analisar o papel da História sobretudo enquanto disciplina de um currículo e enquanto conhecimento mobilizável através do acto educativo. Também no domínio da Educação Histórica o desafio permanente é o de relacionar o passado, o presente e o futuro, isto porque pretende desenvolver nos alunos a

necessidade de “pensar o passado para fazerem sentido também dos eventos da sua realidade” (Gago, 2007, 98).

Comecemos por clarificar a nossa noção de função da História e de finalidade da História, diferenciando-as. Enquanto a primeira está ligada às ideias que a epistemologia da História desenvolve em torno da importância do conhecimento histórico; a segunda está envolvida com as intencionalidades que a sociedade e o poder político colocam no ensino da História, previstas nos documentos oficiais do seu sistema educativo, nomeadamente no Programa Escolar.

Que papel assume, então, a História e o seu ensino na formação do indivíduo? A História associada à forma como é ensinada, começa por assumir uma função e finalidade marcadamente social. A disciplina de História é chamada a desempenhar um papel na formação da identidade e na intensidade da intervenção cívica, facto que constatamos com grande clareza nos PE de cada país que analisamos. Tendo presente que a intervenção social se alimenta do conhecimento da identidade nacional e cultural, não é difícil compreender a importância do conhecimento das origens, dos processos de evolução, de transformação e de continuidade. Por isso, constata-se na análise dos PE que esta disciplina que estuda todos os aspectos da vida humana, estando relacionada com ideias de mudança, de evolução e de causa e efeito, nos ajuda a compreender que a nossa sociedade é o resultado de séculos de mudanças e de continuidades. Existe mesmo uma demanda social em relação à História, a qual é canalizada pelos próprios meios de comunicação social, que fomentam uma multiplicidade de perspectivas históricas, e também pela própria Escola, em que o ensino da História adquire uma “vocação terapêutica”, segundo M. Ferro (cit. em Lautier, 1997, 35), em favor da identidade e da legitimidade por determinadas opções. Trata-se, segundo Gago (2007, 92) do “passado pedagógico”, na medida em que “a História é entendida como o passado recontado com a mensagem ou lição para o presente.” Moniot (1993, 20) realça igualmente a função social do ensino da História da seguinte maneira:

“L’enseignement de l’ histoire est encore une institution par son credit dans les esprits, par le sentiment exprimé et par l’ affirmation renouvelée de son role social.”

É interessante verificar em estudos como o de Nicole Lautier (1997) que a importância atribuída à História pelos alunos, em respostas espontâneas, coincide com

aquelas da epistemologia da História. Mencionam principalmente a função social da História, a busca de uma identidade e o interesse do conhecimento. Mas também consideram a História como um meio para a compreensão do Mundo; como um elemento de cultura, permitindo uma melhor integração do indivíduo no seu grupo; e, finalmente, como um contributo para a construção de valores através do exercício da reflexão, desenvolvendo o sentido de tolerância. Já em relação ao utilitarismo da História, que emerge da sua função cívica como elemento que contribui para a preparação do indivíduo para o seu papel a exercer enquanto futuro cidadão, função esta destacada pela epistemologia da História e pelas finalidades do ensino da História nos currículos nacionais, não é tão aceite pelos alunos, concluindo N. Lautier (1997, 54) que “les élèves acceptent mal le passage du social au civique”.

Por sua vez, o estudo europeu Youth and History (2000, cit. em Gago, 2007, 100) constata que, por um lado, os alunos vêem como principais objectivos da disciplina o “conhecimento sobre os factos principais da História” e “tradições, características, valores e tarefas da nossa nação e sociedade” e, por outro lado, os professores salientam a “explicação de situações do mundo actual e a procura de tendências de mudança” e a “interiorização dos valores básicos da democracia”. Ou seja, verifica-se que há uma discrepância nos objectivos do ensino da História entre alunos e professores, facto que pode significar que há um desencontro da significância histórica entre professores e alunos. Gago (2007, 100) vai mesmo mais longe afirmando que “provavelmente os objectivos dos professores não estão a ser conseguidos na medida em que podem dar muito relevo ao conhecimento substantivo da História esperando que, através da memorização deste, os alunos sozinhos atinjam os objectivos mais elaborados traçados pelos professores.”

Sendo a natureza da História o estudo da vida dos seres humanos em sociedade, ela está intimamente imbricada com as atitudes e os valores. Moniot (1993, 31) diz o seguinte a este propósito:

“On n’ enseigne pas publiquement l’ histoire sans motif; on ne raconte pas les choses simplement parce qu’ elles se sont passés; des leçons de politique, de morale ou de société s’en dégagent bien de quelque façon.”

A História contribui mesmo para a construção de um pensamento social, não podendo nunca limitar-se a um conhecimento puramente informativo (Lautier, 1997). Lilletun (2000, 109) diz-nos o seguinte a este propósito:

“We must ensure that history teaching becomes a tool for civilised behaviour and values. We must make recommendations that are so balanced that we cannot be accused of favouritism towards one political course.”

Ora, a questão dos valores e das atitudes são dois dos aspectos fundamentais a ter em consideração no ensino da História. Sem dúvida que a História contribui para aquilo que Mattoso (1999, 21) refere da seguinte forma:

“Assim, a História contribui mais do que muitos outros saberes para se adquirir a noção da infinita complexidade das formas de sociabilidade pelas quais o Homem se foi adaptando ao mundo, da relatividade das soluções encontradas através dos tempos pelas diversas culturas na sua relação com a Natureza.”

O Conselho da Europa define como bases de referência no ensino da História, a democracia liberal e os valores “curiosity, openness, tolerance, empathy and social responsability” (Lilletun, 2000, 109). Assim e, apesar da linha de separação entre aquilo que uns chamam de boa utilização da História e outros de má utilização ser muito fina, a definição de um conjunto de valores a ter em consideração no ensino da História torna- se de extrema importância na Escola actual, de forma a apostarmos numa Escola de espírito democrático, onde a disciplina de História deve ter um papel muito activo na promoção destes valores. Rüsen (1993, cit. em Gago, 2007) considera mesmo que a narração histórica tem um papel fundamental na orientação da vida prática no tempo e que esta adquire a sua maior importância quando orientada para relacionar a actualidade com os valores.

Esta questão da dificuldade de definição dos valores em História foi lançada em primeiro lugar por Weber, alertando que as escolhas do historiador, quer dos assuntos a investigar, quer das fontes a seleccionar, e das questões que levanta na sua análise, são o produto dos seus interesses e valores e, portanto, logo sujeitos a alguma subjectividade (Lautier, 1997). Os valores estão presentes na produção do conhecimento histórico, sejam os valores dos seres humanos do tempo em análise, ou dos valores do nosso tempo na figura do historiador (Lautier, 1997). Mas naturalmente, o historiador procura uma autonomia em relação às instituições e às ideologias, embora a ideologia tenha sempre um lugar marcado no seu encontro com a História, sem que isto inviabilize a

cientificidade da História, obrigando a um trabalho nos “limites do possível” e nas palavras de M. Certeau (1974, cit. em Lautier, 1997, 37):

“[…] dans la place que definit une conexion du possible et de l’ impossible.”

Na multiplicidade de funções que a História exerce também se encontra o seu contributo na formação da identidade do indivíduo através da memória colectiva e individual, pela sua necessidade de legitimação social ou política. Moniot (1993, 38-39) afirma mesmo que “l’ histoire nourrit la mémoire collective” e que “la fonction de la mémoire n’ est pás de célébrer l’ office du passé, mais aider à imaginer l’ avenir.” Também é muito a legitimação política que mais pesa sobre os valores segundo H. Moniot (1993, cit. em Lautier, 1997, 33):

“Enjeux de légitimation-dénonciation, oú l’ histoire est soeur des idéologies: elle est un repertoire de preuves pour un sens déjà trouvé, elle est réductrice d’ angoisse en organisant des certitudes […]. Enjeux d’ identité, qui épousent les groupes et cernent les domaines des miens et des autres.”

Compreendemos, assim, que o ensino da História possibilita a transmissão cultural de qualquer sociedade pelo conhecimento de uma memória colectiva do passado que nos ajuda a compreender melhor o presente e até mesmo a perspectivar o futuro. A História assume um papel fundamental para a compreensão do Mundo em que vivemos. O conhecimento do passado permite-nos o “alargamento da experiência vivida” (Alves, 2002) e alcançar a percepção de que a vida não tem um sentido unívoco, mas pelo contrário, que existem diferentes valores, ideias, crenças, doutrinas… De facto, a História ajuda-nos a descobrir a relatividade das coisas, a minimizar a importância dos nossos problemas e a desenvolver um espírito crítico pela análise e compreensão de informações e de situações históricas devidamente enquadradas numa localização no tempo e no espaço. Através desta disciplina, os jovens conhecem diferentes sociedades e culturas num contexto espacial e temporal, o que os ajuda a perceber de que forma os espaços e o tempo se relacionam entre si. Nela abordam-se as questões que o ser humano coloca sobre o meio social, humano e cultural, desenvolvendo a compreensão de mapas e de linhas do tempo e o domínio de capacidades de comunicação, de investigação e de resolução de problemas. Segundo Lowenthal (2000, cit. em Gago, 2007, 103) a necessidade do conhecimento histórico

centra-se no “ser competente a pensar historicamente” e que, por isso, este é fundamental para lidarmos com os assuntos do dia-a-dia. Von Borries (2000, cit. em Gago, 2007, 102) acrescenta que a educação histórica deve ter por objectivo “equipar os alunos a estudar e pensar historicamente de forma responsável e racional.”

Por tudo isto, compreendemos que a História promove o desenvolvimento de competências individuais pelo seu contributo no crescimento intelectual do indivíduo, na formação da sua autonomia pessoal e na promoção da sua participação cívica na comunidade. Magalhães (2002, 76) reitera esta nossa afirmação da seguinte forma:

“[…] construção de respostas alternativas, que passem de uma tradicional, e sempre reiterada, contribuição da história para a definição da identidade nacional e da criação de hábitos de cidadania e de intervenção social, para funções mais complexas que, não desprezando essa contribuição, situem, e problematizem, também, o possível contributo da disciplina para o desenvolvimento de competências cognitivas dos alunos.”

O sucesso do exercício da cidadania reside na construção da consciência cívica do ser humano, papel que a disciplina de História assume como um dos seus grandes contributos na formação do indivíduo. Por isso, torna-se fundamental desenvolver um ensino da História que promova a sensibilização dos jovens para a necessidade do seu papel interventor e responsável na sociedade em que vivem. Botão (1999, 74) diz-nos o seguinte sobre este aspecto da importância do conhecimento histórico para a formação integral do indivíduo:

“Parece-me que a concretização deste tipo de aprendizagens, ou melhor, a assimilação deste tipo de competências, facultará a cada aluno a capacidade de intervenção assertiva na comunidade, onde este exerce a sua cidadania e, concomitantemente, poderá viabilizar uma efectiva cooperação entre a escola e a comunidade local.”

O próprio sistema educativo traça esse grande objectivo (Delors, 1997, 53), sobretudo para o ensino básico, nível de ensino que nos interessa particularmente neste estudo:

“É à escola básica que cabe assumir a responsabilidade desta tarefa: o objectivo é a instrução cívica concebida como uma “alfabetização política” elementar.”

O conhecimento histórico pode ser utilizado para sensibilizar os jovens para a solidariedade cívica, nomeadamente para temáticas ligadas à preservação do Património local, nacional e mundial e para a solidariedade civilizacional (Alves, 2002). O

conhecimento do passado é inevitável para uma intervenção cívica consciente. Desta forma, a História é preponderante na construção de uma consciência de identidade pessoal e social, tornando-se num importante contributo para a mudança de atitudes anti-democráticas, para a formação cívica e para a intervenção crítica na sociedade de forma livre, responsável e solidária. A História tem uma indubitável importância para a formação de valores e atitudes, tais como a tolerância e o respeito pela diversidade dos indivíduos e das comunidades quanto às suas opções e a sensibilização para atitudes de preservação do património cultural e histórico conducente à construção de uma consciência histórica. Por tudo isto, Lilletun (2000, 109; 106) afirma que deve ser enfatizado no ensino da História sobretudo a seguinte atitude:

“The ability to understand others’ views, awareness of prejudice and the critical interpretation of information.”

“[…] respect for different points of view must be a constant aspect of history teaching.”

Também P. Nora (1984, cit. em Lautier, 1997, 35) considera que, quer a História científica, quer a História escolar, no seu empreendimento de análise dos “lugares de memória”, concorrem para a construção da memória, da identidade cultural, para a procura da legitimação de valores e para a construção e ensino do saber histórico. Podemos mesmo apontar, em resumo, as várias utilidades da História nas palavras de Moniot (1993, 29-30):

“La fréquentation du passé est un substitut d’ experience – comme le sont aussi le roman, et beaucoup de lectures, de conversations et d’ informations organisées. […] Cette façon de donner un cadre au présent est réductrice d’ angoisse et d’ incertitude. […] L’ histoire alimente en representations les identities. Elle dit les origins, les genealogies, les pères fondateurs, elle justifie les appurtenances. […] L’ histoire sert à legitimer les bonnes causes et les orders établis, à denouncer les mauvais camps. […] L’ histoire consacre. […] Le passé peut être appelé au service d’ une connaissance realiste, quand on sent, quand on sait que les dossiers du présent ont une profondeur de temps, des genèses qu’ il serait bon de saisir et d’ analyser […]. La fréquentation du passe peut aussi donner du plaisir […] Plus largement, ele est un vaste champ de manoeuvres pour nous sentiments […]. La connaissance du passé peut servir à paraître et réussir.”

Terminamos com a síntese de Moniot (1993) sobre as funções do ensino da História: elaboração de uma memória social; contributo para a formação cívica e política através do desenvolvimento do espírito crítico e da consciência política; apelo para valores sociais de forma a instituir no jovem uma consciência colectiva; realce para a valorização de aspectos de natureza cultural.