• Nenhum resultado encontrado

GUERRA FRIA NA CONSTRUÇÃO DO MANUAL ESCOLAR

1.4. A visão epistemológica da História na didáctica da disciplina

1.4.1. O método historiográfico e o aluno como pequeno historiador

A conciliação da preparação histórica do professor e a do seu papel de pedagogo é algo com que qualquer professor de História se vê confrontado. A este propósito, Proença (1990, 35) diz-nos o seguinte:

“Se pretende, nas suas aulas, proceder a uma iniciação ao pensamento histórico, quer dizer, que tem de levar os alunos a habituarem-se à forma de pensar que caracteriza a História. Neste caso, ver-se-á, de imediato, confrontado com o problema da noção de fonte histórica e das suas formas de tratamento.”

É precisamente a questão do método historiográfico que vamos aqui abordar e a sua influência no ensino da História, procurando verificar se o ME também sofre reflexos deste dilema que o professor de História vive. Por outras palavras, será que o ME constituirá ele próprio uma fonte de iniciação ao pensamento histórico?

Um momento de heurística

Vamos começar por entrar na oficina do historiador e recordar como este constrói o seu conhecimento. Em primeiro lugar, o historiador pesquisa e selecciona as suas fontes históricas. Encontramo-nos na fase da heurística, momento da constituição do

corpus de documentos históricos. É o historiador que procede à selecção dos

acontecimentos e dos processos históricos e que os eleva à condição de factos históricos. Ou seja, o historiador começa por eleger um “facto” à condição de “facto histórico”. A. Schaff (1977) considera que há que distinguir o acontecimento que se deu no passado (“um facto”) e o facto histórico, pois este último devido à sua importância para o processo histórico tornou-se objecto da ciência histórica. Desta forma, nem todos os acontecimentos do passado são factos históricos. Além disto, também é preciso distinguir entre as diversas manifestações da vida social, aquela que pode vir a ser chamada de “facto histórico”. Assim, tem de haver uma selecção entre as diversas manifestações da vida, ou seja, aquelas que dizem respeito à vida dos indivíduos e das sociedades, devido às suas relações de causa e efeito e da sua acção ao nível da

totalidade. O critério desta escolha é com base na importância do acontecimento no seu contexto e, a partir daí, faz-se a selecção através de um sujeito, elemento que introduz a influência do factor subjectivo no processo do conhecimento. Compreendemos, pois, que a selecção do acontecimento implica imediatamente uma construção do acontecimento, logo este passa a ser um facto histórico, sobretudo pela influência que teve. Verificamos, assim, que se defende a complexidade dos factos históricos e que estes são uma asserção relativa a um determinado conhecimento. O historiador só lida directamente com uma asserção, dado que o acontecimento já desapareceu (Schaff, 1977). Segundo a concepção idealista subjectivista do facto histórico, este não é o próprio acontecimento, mas um símbolo que permite evocar a imagem do acontecimento. Logo é errado denominar os factos históricos como verdadeiros ou falsos, pois estamos a falar de símbolos. Mas, por sua vez, o autor de “História e Verdade” afirma que o facto histórico é um acontecimento objectivo do passado e que o carácter directo ou indirecto, mediato ou imediato do conhecimento histórico, e o seu grau de exactidão, são problemas que não intervêm na definição do facto histórico (Schaff, 1977).

Na nossa opinião, a marca de um facto acontecido é sempre significativa para o conhecimento da realidade histórica. Nenhum facto acontecido é passível de desvalorização, pois contribui sempre para uma melhor e maior inteligibilidade da realidade histórica que se encontra em processo de construção pelo especialista que é o historiador, sendo, no entanto, submetido ao processo de crítica às fontes históricas. Por outras palavras, é o historiador que procede à selecção do acontecimento e dos processos históricos, elevando-os à condição de factos históricos e é através da narração que este vai dar sentido à experiência do tempo. Por isso, White (1998, cit. em Gago, 2007) diz que a narração é um acto poético no processo de construção do conhecimento histórico, pois procura “produzir um pano de fundo de experiência temporal tecido de acordo com a necessidade de orientar o próprio “eu” no curso do tempo” (Gago, 2007, 86). Já Veyne (1987) tinha também apresentado a História como um romance verdadeiro, do qual o historiador é o seu autor. Romance e História, ambos têm objectividade, só que no primeiro procura-se a verosimilhança e no segundo a objectividade histórica (Veyne, 1987).

É preciso também não esquecer que o facto histórico é um produto de relações provenientes de contextos. Os factos históricos não estão isolados, mas procedem de

uma trama contextual, que reflectem as relações objectivas que têm, cuja importância vai ser detectada pelo historiador. É o historiador que eleva à condição histórica as fontes, pelas relações que estabelece entre elas, construindo, assim, o dito facto histórico (Veyne, 1987). O acontecimento está ligado ao tempo e desenvolve-se num sistema, havendo interacções, o que leva a que o acontecimento esteja conjugado com o todo e dinamizando esse todo.

Assim, como a elevação de um facto à condição de facto histórico é o resultado de um produto de relações provenientes de contextos, também a selecção de determinados conteúdos programáticos para serem ensinados na Escola, são o reflexo da forma como cada país atribui importância a esses conteúdos. Ou seja, o facto histórico nasce do seu contexto e pode vir ou não a ser seleccionado como conteúdo programático, pois este último é eleito em função do contexto político-social e cultural de cada país.

Hermenêutica do conhecimento histórico

Sabendo, então, que a selecção do facto histórico constitui um momento de construção da História, que passos seguintes desenvolve o historiador na construção desse conhecimento? Esses passos reflectem-se também no ensino da História? Então, vejamos: o historiador, tal como o cientista, é obrigado a simplificar e a multiplicar, a subordinar uma resposta a outra e a introduzir alguma ordem e unidade no caos dos acontecimentos e das causas. Segundo Carr (s.d.), toda a discussão histórica gira em redor da questão da prioritização das causas, pois na sua opinião, a investigação histórica anda em torno do estudo das causas, a resposta ao “porquê”. Actualmente e desde as últimas décadas, não se utiliza a terminologia “causa” em História, mas antes “explicação” ou “interpretação”. Assim, tal como há uma selecção de factos, também há de explicações ou interpretações que sejam historicamente significativas. Em simultâneo, o historiador deve trabalhar não só por meio da simplificação das explicações, como também da sua multiplicação. Na linguagem de Carr (s.d.), o historiador encontrará várias causas para o mesmo fenómeno. A História, tal como todas as ciências, avança através deste duplo e aparente contraditório processo, em que o historiador faz a investigação e verificação das causas, numa sequência coerente de

causa e efeito (Carr, s.d.). Um processo similar ao da selecção do facto histórico que passa pela sua relevância e pelo seu significado, também se passa na abordagem que o historiador faz das causas. As causas determinam a interpretação do historiador acerca do processo histórico e, por sua vez, esta determina a selecção e a ordenação das causas numa hierarquia (Carr, s.d.). Mas também aqui no estabelecimento da relação causal, a análise histórica exige uma consciência crítica, para atingir o “porquê” numa postura interrogativa (Bloch, s.d.).

Verificamos, igualmente, que o actual ensino da História tem como uma das competências a desenvolver nos alunos, o estabelecimento de relações de causa-efeito, certamente fruto desta postura epistemológica da História e que surte bastantes reflexos nas orientações curriculares e nos PE da disciplina de História dos países europeus. Também estas questões terminológicas de “causa” e “explicação” não são estranhas ao ensino da História, constatando-se nos ME da década de 1980 uma aplicação do termo “causa” no processo de explicação histórica. Já nos ME da década de 1990 há um abandono desta terminologia e sua consequente substituição pelo termo “explicação”.

Ora, concordamos com um autor de referência como A. Schaff (1977) acerca do processo de construção do conhecimento histórico, quando este afirma que a História não é uma simples descrição, pois nela encontra-se presente o papel do historiador que introduz o factor subjectivo no conhecimento, assim como o próprio facto histórico que não é reduzido apenas à sua selecção e descrição, mas à sua explicação e avaliação pelo historiador. A causalidade encontra-se imbricada com a interpretação. É a ideia de oposição de história a crónica, pois a primeira explica os fenómenos que estuda, interessa-se por saber o porquê, em respostas ou explicações que serão, então, apresentadas de forma diferente por diversos historiadores, enquanto a segunda limita- se a uma narração. Por outras palavras, o mesmo acontecimento factual pode ser explicado e avaliado de forma diversa ou até contraditória, pois os historiadores podem estabelecer ligações diferentes entre os vários elementos, ou até mesmo utilizar diferentes conceitos (Schaff, 1977). Isto explica a diversidade de interpretações históricas sobre o mesmo facto histórico.

Então, estes aspectos são ou não fomentados no ensino da História através do ME? Verificamos que maioritariamente os ME da Europa Ocidental e da Europa Nórdica dos anos de 1980 obedecem a este tipo de características, centrando o discurso do texto de autor num modelo mais explicativo e interpretativo do que narrativo e

descritivo, contrariamente aos ME da Europa de Leste dos anos de 1980 que adoptam mais um modelo de ensino do factual, com um texto de autor sobretudo de características narrativas e descritivas, sem qualquer intenção de desenvolvimento de um espírito crítico. Progressivamente, a Europa de Leste foi evoluindo, ao longo da década de 1990, para um tipo de ME que aponta para um modelo de ensino do conhecimento histórico que se preocupa com a interpretação e, consequentemente, com o desenvolvimento crítico do aluno. Sem dúvida que é notória uma preocupação em muitos países sobretudo da Europa Ocidental, principalmente a França e a Inglaterra, com o desenvolvimento da multiperspectiva em História, no sentido de trabalhar a consciência e o respeito por diferentes pontos de vista sobre a mesma realidade histórica.

A História utiliza a generalização na explicação dos fenómenos históricos, mobilizando, para isso, o método dedutivo. Este método também está presente na metodologia do ensino da História e visível no tipo de experiências de aprendizagem propostas nos ME, sobretudo da Europa Ocidental e da Europa Nórdica, que colocam o aluno a desenvolver deduções lógicas. Um dos princípios didácticos de uma aula de História é o seguinte nas palavras de Fabregat e Fabregat (1991, 33-37):

“[…] deve pôr-se o aluno a pensar e levá-lo a deduções lógicas. […] Assim, pois, de um acontecimento geral […] deduzimos uma série de acontecimentos concretos e particulares […]. Partimos [no método indutivo] dos mesmos conhecimentos do método dedutivo. Daremos uns dados para o aluno a partir deles induzir um conjunto histórico. Ele possui uns conceitos do tema; este não se aborda a partir da ignorância total, mas a partir de uma base que sustentará a explicação e a que faremos referência sempre que necessitemos. […] Portanto, procuramos que o aluno parta de uma série de acontecimentos particulares para chegar a um mais global.”

De facto, estes princípios didácticos da História têm a sua raiz na própria epistemologia da História, verificando-se a sua existência nos ME europeus, sobretudo da Europa Ocidental e da Europa do Norte das duas décadas em análise no nosso estudo e a sua ausência nos ME da Europa de Leste da década de 1980, notando-se a sua introdução nos ME desta área geográfica da Europa durante a década de 1990.

A crítica às fontes

Contudo, como é que o historiador consegue, de facto, garantir a cientificidade do conhecimento histórico? Que processos hermenêuticos aplica na construção do conhecimento histórico? Já compreendemos que o historiador tem o papel de decisão sobre a importância que se atribui aos factos, havendo, assim, sempre uma expressão do livre arbítrio individual, do puro subjectivismo. Segue-se depois a fase hermenêutica que testa a autenticidade e a veracidade da fonte histórica, que situa-se, portanto, no âmbito da crítica histórica, o momento de aplicação de rigor na análise das fontes para encontrar o passado objectivo. Na fase da crítica histórica impõe-se um interrogatório aos documentos ou fontes históricas e estas, na verdade, “só falam quando se sabe interrogá-las” nas palavras de M. Bloch (s.d.). Aqui desenrolar-se-á, por um lado, a chamada crítica da autenticidade, em que o historiador procura responder às seguintes questões: o autor da fonte histórica estava bem colocado para testemunhar a verdade, ou foi um testemunho indirecto ou parcial?; por outro lado, a crítica da sinceridade indagando sobre se o autor da fonte histórica estava convencido que estava a emitir a verdade, ou se pelo contrário, sabia que estava a transmitir uma visão deformada. Neste momento sabemos que é muito importante o historiador atender ao contexto de produção da fonte histórica, pesquisando sobre os interesses específicos que caracterizam o meio social de produção do documento; de que assunto era permitido falar; que enunciados são seleccionados e quais são os omitidos; e ainda, que enunciados são reconhecidos como válidos, discutíveis ou inadequados pela comunidade científica.

Todo o processo da crítica histórica é de tal modo importante para a objectividade da História que “passa a ter o sentido quase novo de prova de veracidade” (Bloch, s.d., 76). A crítica da autenticidade e a crítica da veracidade não pode dar lugar a um historiador juiz, encarregado de elogiar ou de reprovar. Ou seja, a História distancia-se de juízos de valor e de referências morais, procurando sim encontrar as razões profundas de determinada realidade histórica, numa palavra – “compreender” (Bloch, s.d.). O historiador não é um juiz, embora os factos históricos pressuponham uma certa dose de interpretação, a qual envolve sempre um juízo de valor. Porém, essa emissão de juízos de valor relaciona-se com acontecimentos, instituições e não com indivíduos e tal

não implica a submissão da História a um padrão de valor supra-histórico. Os juízos de valor são elaborados dentro de uma estrutura conceptual criada pela própria História, variando ao longo desta, de acordo com diferentes épocas e lugares (Carr, s.d.). Por um lado, os acontecimentos podem ser verificados, confirmando a exactidão das afirmações, seguindo normas de rigor e de imparcialidade, ou seja, o historiador procura não imprimir ao real vivido os seus conceitos. Ser objectivo é aquilo que é cognitivamente válido para todos os indivíduos, independentemente do historiador, portanto, isento de afectividade e de parcialidade. Por outro lado, a subjectividade está presente na interpretação histórica. Estamos longe dos dias do Positivismo, em que a História era reduzida a uma objectividade que implicava apenas a aceitação do acontecimento histórico que fosse devidamente comprovado como algo que tivesse acontecido. Na verdade, toda a História é bem contemporânea na medida em que o passado é apreendido no presente (Le Goff, 1974).

Face a esta especificidade do conhecimento histórico, Paul Veyne (1987) considera mesmo que existe uma duplicidade na História – a da memória colectiva e a dos historiadores. A ciência histórica tem por tarefa esclarecer a memória e ajudá-la a rectificar os seus erros. Ou seja, a objectividade histórica constrói-se pouco a pouco através de revisões incessantes do trabalho histórico e da acumulação de verdades parciais (Le Goff, 1974). A História que se vai construindo depende da racionalidade do ser humano: este tem o poder de utilizar a memória, fixando os dados adquiridos; aplicando o seu poder de abstracção e de consciência. Tal como o passado não é a História, mas o seu objecto, também a memória não é a História, mas um dos seus objectos e é, simultaneamente, um nível elementar da elaboração histórica.

De facto, a riqueza da pluralidade de análises historiográficas presta um contributo para o ensino de uma História crítica, conduzindo a múltiplas posições sobre a História entre professores e alunos (Lautier, 1997).

Ora, estes procedimentos do historiador na construção do conhecimento histórico encontram-se também estimulados em muitos ME, sobretudo os da Inglaterra, encontrando neles propostas de experiências de aprendizagem que revelam a preocupação de desenvolver na aula de História momentos da oficina do historiador e procurando recriar no aluno o ofício de historiador. Senão, vejamos o exemplo de proostas de experiências de aprendizagem em ME ingleses (MGB2, 1989, 153; 155; MGB3, 1991, 85):

“2. One of the tasks of the historian is to discover what happened in the past. In other words, to establish the facts about the past. Historical facts can be supported by evidence and no-one disputes that they are true.

a) Which of the three statements below is a fact?

i) The Berlin Blockade was a Soviet attempt to take over the whole of Europe. ii) Roads and railways between Berlin and the west were closed in June 1948. iii) There is little doubt that the Soviet government was attempting either to force the western powers out of Berlin or, at least, test their determination to stay there.

Another of the historian’s tasks is to explain why something happened. In other words, to interpret the facts about the past and explain why they are important. Two of the statements above are explanations of the cause of the Berlin Blockade. One is an opinion, the other is a judgement.

An opinion is not always founded on through knowledge. It may be one-sided and have little or no evidence to support it. A judgement attempts to be fair, balanced and impartial. It is made after weighing up the evidence and can be supported by different sources.

b) The second of the three statements above is a fact. Is it possible to tell which of the other two statements is an opinion and which is a judgement? Explain your answer.

c) What more would we need to know in order to be more certain about which is which?”

“2. a) What are the advantages and disadvantages to the historian of using extracts from politicians’ speeches (like source 6).

b) Are they more or less useful than extracts from international treaties (like source 12) for an understanding of the Cold War?

Explain your answers fully. […]

It is the task of the historian to establish facts and make judgements about what happened in the past. Both have to be rooted in the evidence. Good history is based on the study of a wide variety of different sources. One useful primary or first-hand source is the newspaper. Here is an extract from the Daily Mail of 3 July 1947 reporting on the Soviet reactions to the Marshall Plan.”

“3. a) Look at source B. Do you think television was right to show this picture? Explain your answer.

b) Vietnam has been described as the first television war because viewers saw films of battles soon after they happened. Does that mean they saw what really happened? […]

c) Find any recent newspaper story which you think is not objective. Stick it in your book. Then, write down how this report might one day be useful to a historian.”

Interessante é verificarmos como nos ME se encontra toda a conceptualização da História que fomos aqui abordando, desde a questão terminológica de “causa” e “explicação”; ao apelo à importância das fontes históricas e à sua diversidade para a fundamentação do discurso histórico; à formação da opinião e à sua diferenciação de juízos de valor e todo o processo de construção do conhecimento histórico, procurando envolver o aluno em saber como se constrói a História e no seu próprio processo de construção do seu conhecimento histórico, imbuído de um espírito de oficina da

História, em que o aluno progressivamente “adquire” o ofício de historiador. Há uma notória preocupação em introduzir o aluno no processo de construção do conhecimento histórico e em fazê-lo compreender o papel e trabalho do historiador.

Relativamente à consonância entre as concepções acerca da História e a sua prática através do ME, o nosso estudo verificou, que também o método historiográfico