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A análise dos momentos de crise é significativa por conta da forma que estes emergem na vida social. O termo faz analogia, simultaneamente, a atividade crítica das pessoas e a peculiaridade que esses momentos carregam. Nessa perspectiva, o argumento está na reflexividade do momento crítico, uma situação que começa no cotidiano das maneiras mais corriqueiras. As pessoas envolvidas nas mais diferentes situações sociais

75 têm que coordenar suas ações até que surge um evento que as faz perceber que algo está errado, que elas não conseguem mais concordar, i.e., que algo mudou. Perceber aí tem um duplo significado, pois quer dizer tanto um movimento para uma reflexão interna quanto para uma ação no mundo exterior. Nesse processo, é inevitável um distanciamento da situação presente e o remonte ao passado. Tais momentos são, todavia, impreterivelmente transitórios porque ninguém consegue viver em um estado de crise constante. Isto posto, uma das alternativas a esses momentos é o retorno a uma maneira acordada de convivência. Nesse sentido, a ideia não é estudar os acordos e os desacordos apenas no seu âmbito linguístico, pois essas disputas envolvem pessoas e objetos concomitantemente (BOLTANSKI; THEVENOT, 1999, 2006).

Além disso, um caractere básico dessas situações é que os envolvidos estão sujeitos a um imperativo de justificação. Quem critica alguém precisa produzir justificativas que apoiem suas críticas para que a pessoa-alvo precise, por seu turno, esclarecer suas ações e defender sua causa (BOLTANSKI; THEVENOT, 1999, 2006). Essas justificativas seguem determinadas regras para serem aceitas, não sendo possível dizer, por exemplo, que não se concorda com alguém sobre as políticas públicas de um governo porque o tamanho da sua cabeça é desproporcional ao corpo.

Ao enfatizar o processo de justificação, os autores focalizam também na questão da legitimidade dos acordos que nos permitem viver em sociedade. Apesar de não subestimar a importância da dominação, da força, da mistificação e dos interesses na vida em sociedades, parte-se do pressuposto que as vivências cotidianas não são exclusivamente fundamentadas nessas categorias (BOLTANSKI; THEVENOT, 1999, 2006; BOLTANSKI, 2011).

A ação social começa a ser analisada a partir de regimes de ação e das operações críticas que ressaltam como os indivíduos justificam suas práticas no dia-a-dia. A proposta enfatiza a capacidade crítica e reflexiva dos autores nos momentos em que lhes é pertinente defender determinados posicionamentos. As situações de disputas (os momentos de crise) são investigados para que se possa descrever e entender como as ações são operacionalizadas e legitimadas (VANDENBERGHE, 2006; MARTINS; AMARAL, 2009; CORREA; DIAS, 2016).

Nessas situações, argumentos contundentes precisam ser elaborados e mobilizados para justificar práticas ou apresentar criticismos, tomando como referência princípios e realidades objetivadas, e o pesquisador precisa escrutinar esses momentos se tem como objetivo compreender como a reflexividade ocorre (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999,

76 2006). Outrossim, se reforça que essa proposta sociológica não é um rompimento com a crítica bourdieusiana, mas seu aprofundamento, na medida que não insula a pertinência da realidade historicamente incorporada nas percepções e julgamentos dos atores, apesar de considerar a referência que eles fazem a princípios que são essencialmente normativas morais sobre a ação.

Ademais, são nesses momentos nos quais a ordem se rompe que o acordo estabelecido socialmente é suspenso por meio das críticas e disputas que acompanham as atividades cotidianas. A análise desses desacordos e críticas é tão pertinente quanto dos mecanismos contrários, isto é, aqueles que levam aos equilíbrios e constroem os acordos que sustentam as ações sociais. Para isso, Boltanski e Thévenot (1999, 2006) delineiam o imperativo da justificação, pois ele tem como função sustentar e coordenar a conduta dos indivíduos. No escopo dessa lente teórica, é preciso atentar às resultantes do que acontece quando as pessoas são confrontadas com a necessidade de justificar suas ações.

Essa perspectiva reconhece que nas crises somos incentivados a apresentar argumentos convincentes para justificar ou legitimar nossas ações. A teoria da justificação reflete sobre as discordâncias sugerindo que essas interações têm como referencial o bem comum. Para inferir como os indivíduos interpretam o que seria esse bem comum, os autores estabelecem o conceito de ordens de grandeza para definir que existem referenciais idiossincráticos sobre o que seria tal bem. Esses princípios compartilhados caracterizam e orientam, por sua vez, os modos como sustentamos os direcionamentos das nossas ações, elevando umas práticas sobre outras (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999, 2006; MARTINS; AMARAL, 2009; NORDACHIONNE, 2017)

Corcuff (2017) ressalta que essa lente teórica se inspira claramente em Bourdieu, mas faz com que o estrutural-construtivismo com o qual o autor se definia pese muito mais para o lado construtivista do que para o estruturalismo. Nessa direção, Boltanski e Thévenot sublinham a hipótese que sobre os debates públicos (e privados) pesam constrições de legitimidade e generalidades dos argumentos que podem ser utilizados, levando os indivíduos envolvidos a ter que superar a situação específica na qual elas participam.

Salienta-se, mais uma vez, que o objetivo central aqui não é apresentar todo o aparato conceitual de Luc Boltanski para preencher a lacuna teórico-metodológico que se identificou nos pensamentos de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. A intenção é trazer o argumento fundamental do primeiro sobre os imperativos normativos e as consequências operacionais que o engendramento da reflexividade tem na vida social dos indivíduos, algo

77 que falta nos últimos. Dito isso, remontar-se-á muito brevemente ao conceito de cidade para chegar na articulação que esse conceito representa com a ideia de compartilhamento de normativas acerca do bem comum.