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Dessa forma, segue-se a perspectiva que as trajetórias individuais estão imperativamente inscritas na História, pois nada ocorre fora dela. Sendo assim, com a vida de Milanez não é diferente e ele acaba por reconfigurar também sua militância na medida que o quadro contextual vai tendo sua dinâmica social e histórica reconfigurada. Os movimentos e os processos vão se transformando e ele próprio acaba mudando com essa

155 dinâmica. Por exemplo, com o avanço do debate sobre a entrada dos transgênicos, ele passa a se dedicar às discussões relativas e reformula sua luta de forma a confrontar o que vinha do mainstream com um debate centrado nos conhecimentos e práticas engendradas aqui no Sul global.

As lutas e forças que se estabelecem no metacampo do poder reverberam naquelas que se estabelecem nos outros espaços das relações sociais no sentido que dentro dos debates sobre a questão da transgenia, tanto no âmbito dos movimentos sociais quanto da academia, havia uma disputa pelos termos a ser apropriados e utilizados tal qual ocorreu com a questão da Agroecologia, por exemplo. Essas lutas refratavam, por seu turno, a dinâmica homóloga que se engendrava no campo geopolítico historicamente estruturado. Isso quer dizer que os conhecimentos sistematizados, mesmo aqueles que concerniam a luta ambiental, eram aportes do mundo desenvolvido e esse problema incomodava profundamente Milanez. É necessário remontar aqui que para ele a produção de teoria genuína é essencial para a ciência de um país, pois um país que não produz a própria ciência acaba por se tornar escravo de outros que a produzem.

Dessa forma, ele passa a fazer parte das disputas por termos que, embora não fossem tão recentes, se difundiam. Ele passa a brigar para que, por exemplo, o termo Desenvolvimento Sustentável fosse devidamente problematizado. Milanez sabia que a difusão do termo em si não seria aparentemente negativa, mas tinha ampla consciência da necessidade de problematizar essa difusão. Milanez deixa isso claro quando denota que:

“Pra mim era assim, nós estávamos em um momento que de um lado o discurso do Desenvolvimento Sustentável falso, né? [...] Porque nós estávamos vendo que o Desenvolvimento Sustentável vinha era para o status quo. Pra continuar tudo igual e botar esse nomezinho, né? Então, nós éramos contra o discurso”.

Essa prática de Milanez se estendia também para problematizações sobre a Educação Ambiental que, conforme exposto anteriormente, não poderia adotar os mesmos padrões daquilo que vem sendo difundido, mas deveria ser visto de forma holística e transdisciplinar, ou seja, deveria transversalizar todas as disciplinas que compõem a grade curricular do sistema formal de ensino. Considerando que para engendrar esquemas mentais diferentes seriam necessárias socializações diferentes, seria importante que a proposta de Educação Ambiental sugerida por Milanez ocorresse em todos os espaços de socialização que o sistema formal de ensino oferecesse. Além disso, esse processo possibilitaria a transformação do próprio sistema dialeticamente e da sociedade, por conseguinte.

156 A disputa pelos termos e seus significados também fazem parte da dinâmica agonística dos campos, logo, era pertinente que Milanez mantivesse a postura combativa de sustentar o significado que a Educação Ambiental tinha na sua visão de mundo. Uma metodologia alinhada com seus valores e com suas disposições passa também por termos que estejam devidamente consoantes com esses mesmos valores. Isso fica ainda visível quando ele delineia o que ele vê como os problemas da maneira que muitos veem a Educação Ambiental e como ele a enxerga: “Separar lixinho, não sei o que lá... isso aí é

obrigação de cidadão! não precisa educar, tu tem que obrigar! Nós estamos falando de outra coisa!”. Os caras ‘Ah!’, ficou todo mundo ofendido, porque a Educação Ambiental, a maioria, continua assim! Fazer hortinha e não sei quê... aí tu diz ‘Ah, mas tu é contra?’ não! Eu sou totalmente a favor de horta! Mas fazer hortinha não leva a nada, o que tu vai extrair da experiência, aí tu pode até... só que essas pessoas tarefeiras não extraem nada!

Entendeu? E ainda dizem que fazem educação ambiental, vão num congresso pra apresentar uma porcaria dessas! ‘Ai, nós separamos lixo em cinco latinhas...’, entendeu? ‘O que vocês fizeram pra não gerar lixo?’, nada! Sabe?”.

Esses mesmos princípios convergem para as lutas que termos como desenvolvimento, sustentabilidade ou até mesmo desenvolvimento sustentável passam a ter ao saírem da esfera fundamentalmente acadêmica e se condensarem a uma determinada modalidade de senso comum. Os termos se tornam opacos e seus significados originais passam a se refratar nos esquemas mentais de quem os utiliza, assim como se refratam os interessem dos grupos dominantes daquele campo no qual é empregado. Esses movimentos e processos ocorrem, segundo Milanez, tanto com a Educação Ambiental quanto com o termo Desenvolvimento Sustentável em proporções distintas. Ele explica esse fenômeno assim: “Então, é uma briga hercúlea! Eu te diria que a da Educação Ambiental é mais

difícil do que a do Desenvolvimento Sustentável! Porque a do Desenvolvimento Sustentável, muita gente já desconfia, né? [...] Entendeu? Se tudo é sustentável, economicamente sustentável, essas bobagens, a palavra sustentável não significa mais nada!”.

Apesar de não ter elaborado teoricamente, de forma mais aprofundada, sobre essas questões, Milanez tem consciência da relevância na dinâmica de luta não apenas pela apropriação e utilização dos termos, mas também pelas posições políticas que se estabelecem nas organizações que compõem o próprio campo. Dito de outra maneira, seria preciso ter uma prática vigilante diante de determinadas organizações que emergiam com fins oportunísticos, sustentadas e orientadas por interesses daqueles possuidores de uma

157 posição dominante no campo e que, por isso, teriam o poder maior de influência em diversas frentes das disputas.

Francisco cita uma experiência ilustra com exatidão essa dinâmica agonística que se estabelece tanto na esfera simbólica, conforme descrito anteriormente, quanto nesses espaços protagonizados por organizações, aqueles que interagem dentro e com elas, assim como com aqueles que as representam: “Então, são lutas chatas que a gente faz, que parece

não ter sentido, mas tem muito sentido. Senão o movimento hoje ia ser uma grande piada... tu sabe que a [grande multinacional ligada ao agronegócio] criou em Tupãciretã, tem um clube chamava antes [ONG financiada pela empresa], aí teve um processo judicial e agora eles são [ONG financiada pela empresa com novo nome], que é pago pela [grande multinacional ligada ao agronegócio]! Os caras era pró-transgênicos, imagina a confusão na cabeça, mas os [ONG financiada pela empresa]. E existe ainda, o cara é um picareta,

eu já tive vários debates com ele na TV, é um bagaceiro de último grau, se precisar ele dá um tiro em ti, faz qualquer coisa. Então, isso tudo são detalhes que não aparecem no todo,

entendeu? Mas são coisas que são vários momentos cruciais do movimento que podia ter degringolado”.

Uma outra questão, que se relaciona com um nível moral acerca da percepção do mundo social, é a relacionada às dinâmicas potencialmente corruptoras que se estabelecem em cenários institucionais específicos. Milanez transitou (e transita) durante sua trajetória, em especial na sua vida adulta, em quadros contextuais nos quais denúncias de crimes relacionados a corrupção não são raras, logo, uma pergunta que emergiu no nosso processo de entrevistas e conversas informais foi como ele lidou com determinados convites para fazer parte de esquemas ilícitos ou imorais. A resposta dele se enquadra na esfera da preservação de valores morais que estão ligados à sua socialização na infância, mas também da legalidade que é gradualmente inculcada, em maior ou menor grau, em todos aqueles devidamente socializados, especialmente nos quadros mais formalizados (em geral ligados ao Estado) dos processos de socialização.

Milanez não crê que a honestidade seja uma qualidade digna de mérito, pois seria um atributo imperativo na constituição de uma sociabilidade saudável. É possível interpretar também que tal honestidade é um valor moral que ele traz como herança da educação parental, tanto do pai quanto da mãe, uma vez que ele foi educado a reconhecer valor de verdade nas condutas tomadas coletivamente como honestas. Mila explicita bem isso quando sinaliza que: “Então, eu quero dizer que não é mérito, eu acho que eu sou uma

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quando alguém me diz assim “Bah, como é que tu lida com um troço desse?” nunca me aconteceu, sabe? É que nem em aula, às vezes, assim... eu sou bonzinho e monstro ao mesmo tempo, né? [riso contido] mas é o meu jeito, sei lá, é o jeito que cola, entendeu?”.

5.11. Muitos caminhos, uma só busca - A vida reconectada e feliz numa nova