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A sociologia disposicionalista de Bernard Lahire: justificativas para uma

A solidez do programa de pesquisa de Pierre Bourdieu se atesta na potência da teoria do habitus para explicar como as continuidades nos comportamentos dos agentes se engendram, como o sistema de ensino colabora para isso ou como o consumo de arte pode ser expressão produtora e reprodutora de uma posição social ou ainda sobre a maneira a qual a divisão social (e sexual) do trabalho na sociedade se configura (BOURDIEU, 1996, 1989, 2002, 2007). Dessa forma, a nível macrossociológico, o edifício teórico bourdieusiano continua uma ferramenta poderosa para a análise dos mais diversos objetos. Entretanto, a teoria do habitus, quando alterada em seu escopo de observação, apresenta certas lacunas que precisam ser problematizadas e, na medida do possível, preenchidas tanto epistemológico quanto empiricamente.

É mudando esse foco para o nível individual que Bernard Lahire salienta o problema central da transferibilidade do habitus, ou seja, como esta fórmula se expressa

52 nos mais variados campos e como ele é reconstituído nesses processos de socialização (LAHIRE, 2004a, 2006, 2012). Nesse sentido, o autor explicita que dada a pluralidade dos contextos nos quais os indivíduos são socializados, e como seus comportamentos emergem (ou reagem) em diferentes contextos de ação, é um tanto inviável empiricamente pensar no

habitus como um conjunto, fórmula ou matriz mais ou menos homogênea de esquemas

disposicionais que os agentes carregam e atualizam ao longo de suas vidas (NOGUEIRA, 2004, 2013).

Se assim fosse, não seria possível ver (ao contrário do que as pesquisas de Lahire mostram) agentes que possuem maneiras distintas de consumo de cultura ou que operacionalizam comportamentos heterogêneos nos mesmos espaços de socialização. Ademais, quando as biografias sociológicas dos agentes se remontam, Lahire denota que até nos mesmos contextos de ação certas disposições para crer e agir se ativam mais que outras, ocorrendo até que algumas sejam desativadas ao ponto do “esquecimento” (LAHIRE, 2004a, 2004b, 2006, 2012).

Em Lahire assim como em Bourdieu, as escolas, a mídia, congregações religiosas e agremiações políticas continuam colaborando para a constituição das disposições e dos esquemas que as compõem. Posteriormente, quando já estão constituídas, tais esquemas são mais ou menos confirmadas pela experiência, suportadas pelas múltiplas instituições e suas forças que variam em função do seu grau de aprendizagem e posterior confirmação. Em ambos ainda, as disposições dos agentes também se diferenciam entre si segundo seu grau de força e fixação, aquelas mais fortes ou fracas dependem da recorrência de sua atualização, ou seja, da frequência com a qual os agentes se expõem a elas. De acordo com Lahire (2015), os patrimônios de disposições e competências individuais estão submetidos a restrições variáveis por conta dos contextos de ação e são rotineiramente ativados pelas variadas características desses contextos.

A diferença central entre os autores é que enquanto para Bourdieu o habitus é um princípio homogeneizante de práticas, para Lahire, o habitus é um patrimônio de disposições que tende a heterogeneidade.

Por conta dos objetivos desta proposta, enfatizar-se-á centralmente a questão da transferibilidade do habitus e da ativação do patrimônio de disposições em diferentes contextos de ação. Este elemento é seminal, pois se as barreiras para a consecução da Sustentabilidade emergem por conta de uma diacronia entre o habitus dos alunos e o contexto no qual as aulas ocorrem, quando observamos certos indivíduos é notório que eles reconhecem as práticas da Sustentabilidade e se engajam nela no decorrer de suas vidas,

53 levando-as para outros contextos, se tornando, por exemplo, ativistas em prol das práticas supracitadas.

Contudo, para entender a proposta lahireana de uma sociologia a nível individual (e seu papel nesta proposta de tese), é pertinente que alguns elementos epistemológicos fiquem esclarecidos.

Em primeiro lugar, Lahire (2004b) não defende, similar a propostas pós-modernas, conceitos como “identidades múltiplas” ou que existe a multiplicidade de “referências identitárias”. O programa de pesquisa lahireano se alinha com a tradição disposicionalista nas ciências sociais, porém propõe a pluralidade e heterogeneidade de um patrimônio de disposições incorporadas, fruto de sociedades complexas com forte diferenciação social.

Por exemplo, embora a família e a escola possuam papel central na socialização das crianças, é inegável a existência de uma diversidade de contextos socializantes que não apenas eram negligenciados pela pesquisa macrossociológica (como babás ou grupos religiosos). Além disso, Lahire (2004b) também reconhece a importância de outros que não existiam há duas décadas atrás, como as comunidades de jogos virtuais. Se Bourdieu pensava o habitus familiar como um construto coerente, por meio do qual as experiências adquiririam sentido, Lahire evidencia que os esquemas de socialização são mais heterogêneos e cada vez mais precoces.

Em segundo lugar, uma breve digressão metateórica se faz necessária para ressaltar que Lahire, assim, sincretiza as definições de habitus tanto de Norbert Elias (1994) quanto de Pierre Bourdieu na medida que admite que os indivíduos carregam consigo o resultado de relações incorporadas de interdependência que formam, no agregado, configurações sociais específicas (e são construídos também a partir dessas relações), além de somar a essa definição a ideia de que os indivíduos tem seu habitus composto pelo volume e estrutura dos seus capitais econômico e cultural, respectivamente.

Com efeito, o avanço teórico-metodológico de Lahire se consolida na incursão sociológica tanto disposicionalista quanto contextualista ao preconizar a reconstrução das experiências individuais em quadros socializadores precisos. No âmbito da pesquisa empírica, para a construção desse patrimônio, é imperativo fazer emergir elementos que conduzam a problemática existencial que orienta as ações do indivíduo nos contextos de ação. A transversalização do patrimônio de disposições (o habitus) por tal problemática leva em consideração aspectos práticos, institucionais e políticos (no sentido de relações de poder), pois tais aspectos aparecem nos contextos de ação nos quais os agentes se

54 socializam e contribuem para o sucesso de certas representações culturais (LAHIRE, 2010).

Dessa forma, Lahire (2012) reforça algo que já aparece em Bourdieu: as crenças, saberes e representações variam com a história, porém a aprendizagem que ocorre no decorrer da historicidade não é dissociável dos contextos nos quais elas se tecem, fica claro, assim, que as representações sociais são sempre objeto de apropriações socialmente diferenciadas. Um outro avanço epistemológico que Lahire (2012) faz, relativo ao habitus bourdieusiano, é considerar, tal qual Piaget, o caractere cognitivo por trás da incorporação de disposições pelos indivíduos no decorrer das socializações, porém ao invés de recorrer a estágios mais ou menos estáticos que estariam presentes no processo de desenvolvimento humano (como sugere Piaget), o sociólogo francês enfatiza a importância das construções sociais que conectam os modos de percepção ou de representação individuais às formas de vida coletiva, seguindo a linha durkeheimiana.

Nesse sentido, Lahire (2004) ressalta que, uma vez que as disposições são socialmente distribuídas, é também sobre os coletivos que repousam, em função dos domínios das práticas, um outro tipo de distribuição diferenciada e hierarquizada das competências que os indivíduos constroem e reconstroem para se organizar no mundo social.

Por exemplo, o comportamento de uma pessoa numa organização pode ser produto da combinação de duas disposições: uma que se associa ao apreço àquela organização e uma outra que se conecta a percepção dos objetos (materiais e simbólicos) gradualmente organizados como mais ou menos dignos. Portanto, para o enriquecimento da teorização sobre as disposições é relevante considerar três grandes modalidades distintas que se originam a partir dos processos de socialização.

A primeira é o treinamento prático direto na escola, na família ou no trabalho, pois estes são locais onde os indivíduos compartilham (construindo e reconstruindo) modelos comportamentais e mentais. A segunda pode ser resultado de uma difusão do ordenamento de uma situação, ou seja, de uma socialização “silenciosa” que não é necessariamente produto de inculcação moral, ideológica ou pedagógica, um exemplo disso são aquelas orientadas pelos mecanismos que separam os sexos. Por fim, a terceira forma de socialização assume a faceta de inculcação no sentido clássico, na qual crenças (normas culturais) são difundidas por todo tipo de instituições ao mostrarem ou imporem discursivamente e/ ou iconicamente aos agentes modos ou atitudes específicas.

55 Lahire (2015) discorre também sobre a importância conceitual da socialização, enfatizando que esta não pode negligenciar as condutas empíricas dos atores. Para isso, é essencial descrever e analisar os quadros (universos e instituições), as modalidades (maneiras e técnicas), os tempos (momentos nos percursos individuais, duração das ações socializadoras, grau de intensidade e ritmo dessas ações) e os efeitos (disposições para acreditar, sentir, julgar, representar e agir) da socialização. A socialização é entendida como um processo que precisa ser estudado em cada um desses quadros.

Além disso, Lahire (2015) admite que os momentos de socialização dos indivíduos não podem ser significados de forma simetricamente proporcional. O esforço sociológico seria em direção a diferenciação dos tempos e quadros de socialização, distanciando o período de socialização familiar, a socialização primária, dos momentos secundários, aqueles que se seguem após o período vivido principalmente junto ao seio familiar.

Embora reconheça o papel da família e da escola na constituição do habitus individual, Lahire critica incisivamente uma certa tradição bourdieusiana que tende a definir o habitus como um sistema de disposições duradouras e transferíveis que tenderia, erroneamente, à homogeneidade. O autor afirma que, na verdade, estas disposições variariam em força e durabilidade de acordo com estímulos externos exercidos em contextos de ação específicos. Se esse elemento for levado em consideração e analisado em escala individual, fica claro que o habitus que se desvela a partir da pesquisa empírica rigorosa é um conjunto possível dos patrimônios de disposições.

Nessa perspectiva, a construção lahireana da socialização primária (a familiar) descortina que são heranças diferentes e contrastantes, oriundas de cônjuges que raramente dividem as mesmas propriedades sociais, que formam esses patrimônios, algo que implica na socialização daqueles os quais as herdam, por sua vez. Além disso, nas sociedades complexas e cada vez mais diferenciadas, a socialização secundária se inicia cada vez mais cedo, isto é, outros universos sociais passam a integrar o universo familiar (LAHIRE, 2004).

A dificuldade em apreender essa dinâmica contemporânea gera dois erros por parte dos cientistas sociais. Primeiro, o estudo das socializações ignorando os efeitos de socializações anteriores. Segundo, a redução das socializações secundárias como simples espaços de atualização ou desenvolvimento ou mesmo de mera expressão de disposições previamente adquiridas.

Lahire (2005) enfatiza que o primeiro tipo de erro é fruto de uma tradição interacionista que se interessa pelos processos de aprendizagem, interiorização e

56 constituição de competências assim como de disposições sociais, mas o faz iniciando a partir da entrada na carreira que se evidencia primariamente, porém, esta carreira é, de fato, uma trajetória social de socialização que se inicia em quadros familiares e escolares. O segundo tipo de erro, contudo, segue na esteira do disposicionalismo mecanicista que subestima a transformação ou construção que pode ser engendrada a partir de novos quadros de socialização. Ademais, negligencia-se que as disposições interagem dinamicamente com restrições contextuais e levam a entrada numa carreira específica, não constituem deterministicamente o todo das disposições solicitadas por esse contexto.

Os erros citados acima expressam também a complexidade inerente a análise de indivíduos em sociedades altamente diferenciadas, imersas em regimes de concorrência educacional e confrontadas com normas socializadoras crescentemente distintas. Esses elementos implicam em uma maior probabilidade da constituição de disposições incorporadas heterogêneas e/ ou contraditórias (LAHIRE, 2005).

Considerar a complexidade das experiências e da estrutura multicamadas permite questionar o modelo síncrono de ajuste dos habitus aos contextos nos quais ele evoluiria. Dito de outra forma, as correspondências ideais ou de cumplicidade ontológica entre estruturas objetivas e subjetivas são raras e Lahire (2002) ressalta que o domínio das práticas mistura condições favoráveis e desfavoráveis simultaneamente.

Dois elementos que interagem relacionalmente com as disposições para Lahire, porém são diferentes delas, são o que o autor denomina de competências e apetências. Sobre a diferença entre competências e disposições, a nível elementar, ela se dá na medida que saber fazer e estar disposto a fazer algo não se convertem automaticamente um no outro. As competências se evidenciam quando se lida com um saber ou com um saber-fazer que pertence a um contexto prático muito específico (saber escrever um tipo específico de gênero textual ou ser capaz de resolver uma determinada forma de problema matemático, por exemplo).

Já sobre as apetências, Lahire (2015) ressalta que esta distinção é importante para investigar como os indivíduos relacionam suas ações e suas disposições. Por exemplo, é possível que um ator esteja disposto a apreciar um certo tipo de arte com fervor o faça porque isto o apetece (disposição + forte apetência). Inversamente, existem atores que vão ao trabalho diariamente por rotina ou obrigação (disposição sem apetência). Além disso, há indivíduos que tem manias que eles mesmos consideram desagradáveis ou repugnantes (disposição + nojo, desgosto e rejeição). Na verdade, as apetências também não são redutíveis às disposições, mas podem ser motores poderosos das práticas.

57 Lahire (2015) também distingue três tipos principais de disposições: para agir, para crer e para sentir. Dessa forma, as disposições se tornam mediadoras das práticas dos atores tanto se pensadas como maneiras de falar e pensar (até porque elas também são práticas) quanto das formas de sentir e perceber a realidade. Com efeito, a crença pode ser um tipo de disposição, pois não existe nenhuma distância relevante entre crer de fato e estar disposto a crer. Em outras palavras, a crença pode operar como força motriz para a ação prática, porém não é possível entender bem fenômenos como a ilusão, a frustração ou a culpa sem fazer uma distinção transparente entre crenças e disposições para agir. Isso ocorre porque os atores vivem em uma sociedade na qual a incorporação de crenças e os meios para realizar essas crenças não são diretamente relacionados (ou mesmo prováveis). Portanto, a justificativa para uma investigação sociológica em escala individual nasce do fato de que os próprios indivíduos, seu foro interior e sua subjetividade (como lugar seminal de liberdade pessoal) seriam um dos grandes mitos contemporâneos. A sociologia em escala individual nos permite a “escolha” entre a participação ou o abandono de tais mitos (LAHIRE, 2005).

O que se descortina com a investigação a nível individual, por exemplo, é que o que determina a ativação de uma disposição específica num certo contexto é, na verdade, a interação das relações entre forças internas (disposicionais) e externas (contextuais). Desvelam-se as relações entre forças internas constituídas durante as socializações passadas associadas a maiores ou menores apetências e forças externas entre elementos do contexto (características objetivas da situação, que podem estar inclusive associadas a pessoas diferentes). Essas interações “pesam” sobre os atores individuais, no sentido que os habilitam ou os constrangem. Com efeito, a constatação sociológica é que os indivíduos são multissocializados e multideterminados, algo que impede da pesquisa aderir a qualquer forma de determinismo (LAHIRE, 2005).

Em suma, a investigação sociológica em escala individual se justifica a partir de três pontos centrais. Primeiro, porque cada ator social pode ser portador de uma multiplicidade de disposições que não encontra sempre os contextos ideais de sua atualização (pluralidade interna insatisfeita). Segundo, os atores podem ser desprovidos de disposições que os permitam fazer face a certas situações inevitáveis num mundo social que é multidiferenciado (pluralidade externa problemática). Terceiro, os múltiplos investimentos sociais objetivamente possíveis podem se tornar incompatíveis (pluralidade de investimentos ou de envolvimentos problemáticos). Entretanto, não se exclui aqui o papel da reflexividade para o engendramento dos movimentos e processos de atualização

58 do patrimônio disposicional, tal importância será melhor debatida na próxima seção teórica. Acredito que esse processo de atualização é um engendramento que é construído a partir de objetividade e subjetividade, em amálgama com esquemas morais estabelecidos socialmente.

3.6 A reflexividade na sociologia bourdieusiana – Limites e possibilidades de avanço